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O Brasil na contramão da agenda global da inclusão digital: perspectivas e retrocessos de um projeto negligenciado

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29 de agosto de 2018

A recente política brasileira para a transformação digital

Em meio a turbulências políticas, de radicalismos e ruptura com antigas expectativas em terras brasileiras, o Poder Executivo lançou, no decorrer do primeiro semestre deste ano, o programa intitulado “Estratégia para a Transformação Digital- E-Digital“, como forma de catapultar uma pauta palaciana aparentemente limpa, politicamente correta e super antenada com as demandas atuais da sociedade da informação. Com amparo no Decreto nº 9.319/2018, e na criação de uma nova instância burocrática – o Comitê Interministerial para a Transformação Digital-, o governo teria objetivado estabelecer renovado “ambiente para impactos transformadores em agricultura, comércio, educação, finanças, indústria e serviços”, tendo como pano de fundo as estruturas de inovação no segmento de informação e comunicação e da economia digital.  

Tão mais curioso ainda, a corrida eleitoral para a Presidência da República, em outubro próximo, também gera enormes expectativas em torno do tema. Candidatos contemplam o mote “transformação digital” como chave de campanha, mas talvez a maior parte deles sequer saiba do que se trate, como tudo de resto no Brasil no campo da história, sociedade, economia, política e cultura.  Na essência, o conceito de transformação digital tem sido elaborado há mais de trinta anos, passando pela ideia de sucessão de estágios tecnológicos em torno da “digitização” (técnica pela qual há conversão da informação analógica para digital em formato numérico, binário) até chegar à moderna compreensão sobre “digitalização”. Esta, por seu turno, representa o processo de mudanças tecnologicamente induzidas, forjadas e ajustadas para inúmeros setores da indústria, como o financeiro, das telecomunicações, mídias, saúde e medicina, educacional, engenharia e tantos outros, e que organizam os espaços de atuação dos agentes econômicos nos mercados da economia digital.

De toda maneira, é a transformação digital que impulsiona também seus múltiplos derivados: internet das coisas, indústria 4.0, computação em nuvem, aprendizado de máquina, blockchain, criptomoedas, e em maior escala, potencializa irreversível movimento do Big Data, que reúne as infraestruturas e técnicas para geração, processamento, armazenamento e análise dos dados, inclusive dos usuários de internet.

O fato é que a proposta advinda do Executivo no chamado “E-Digital” parece pretender o relançamento das bases do que também já existe no campo mais amplo da inclusão digital, teoricamente tão promissor e diariamente afetando a sociedade, por iniciativas que datam do início dos anos 2000 no Brasil. Segundo o Decreto n. 9.319/2018, a E-Digital  objetiva harmonizar as iniciativas ligadas ao ambiente digital no Brasil e “aproveitar o potencial das tecnologias digitais para promover o desenvolvimento econômico e social sustentável e inclusivo, com inovação, aumento de competitividade, de produtividade e dos níveis de emprego e renda no País”.

Os percursos da inclusão digital no Brasil

Modismos e “impactos” à parte, o binômio inclusão/transformação digital não é novidade. Ele reproduz e transpõe certos mantras, formulados a partir de ações e políticas corporativas transnacionais para um sistema institucional já em funcionamento, estruturado sobre leis e regulamentos promulgados sob a presidência do ex-presidente da República Luíz Inácio Lula da Silva. Em forte sintonia com os trabalhos realizados por organizações internacionais (a exemplo da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, UNESCO, UNCTAD e a União Internacional das Telecomunicações), organizações não governamentais, foros e redes de especialistas em distintas frentes na academia e indústria, a posição brasileira, sedimentada e reproduzida inicialmente Lei n. 11.012, de 21 dezembro de 2004, centrou as bases do “Programa Inclusão Digital” em uma concepção originalmente equilibrada a respeito de práticas inclusivas. Ao tempo de sua incepção, respondeu por uma percepção mais consistente com os interesses de vários atores representativos (stakeholders) no segmentos da indústria, da educação, da ciência, tecnologia & inovação, e, invariavelmente, elevou políticas públicas nas áreas de informática e internet para patamares significativos de transformação na esfera social.

De um lado, importante destacar, a posição brasileira foi gestada a partir de uma série de eventos: a universalização de serviços de telecomunicações (na esteira das privatizações no segmento de telefonia, iniciadas após a entrada em vigor da Lei Geral de Telecomunicações); gradual aumento da conectividade à internet e expansão da banda larga, aperfeiçoamento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) em redes; e a estabilização de políticas regulatórias e concorrenciais, como instrumentais ao funcionamento dos mercados envolvendo serviços de utilidade pública. De outro, ela também se conformou com objetivos de promoção do acesso ao conhecimento, no interesse da ciência e educação e movimentos da sociedade civil em torno da expansão do uso do software livre e licenças abertas em escala nacional; flexibilidades nos regimes de proteção da propriedade intelectual; de fortalecimento da transparência e acesso à informação para cidadãos na esfera da administração pública, e, acima de tudo, de promoção e concretização de direitos humanos para as comunidades a serem incluídas.

Nem precisaríamos ir muito longe no tempo e espaço. As fases de elaboração, aprovação e promulgação do Marco Civil da Internet também podem ser admitidas, concomitantemente à participação brasileira nos foros internacionais e regionais em negociações diplomáticas e multissetoriais (e.g. Cúpula da Sociedade da Informação e Fórum de Governança da Internet), como resultado do processo em torno de dupla abordagem de inclusão – social e digital, como será examinado a seguir. A partir dele, cultura, educação, tecnologias – todas integrantes da ordem social da Constituição da República – se funcionalizam em normas e princípios relativos ao uso da internet no Brasil.  

Tanto é assim que certos dispositivos da Lei, ainda hoje deixados à margem do debate sobre interpretação e aplicação do Marco Civil, encontram-se ancorados em racionalidade inclusiva máxima. Seus Artigos 26 e 27, por exemplo, reconhecem deveres do Estado na prestação de educação integrada a práticas educacionais “para o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, a promoção da cultura e o desenvolvimento tecnológico”, além de iniciativas de fomento à cultura e promoção da internet como ferramenta social, a partir de promoção da inclusão digital, redução das desigualdades no acesso e uso de tecnologias da informação e comunicação – ICTS e estímulo à produção e disseminação de conteúdo nacional.

O equilíbrio de interesses encontrou-se originariamente com o Programa Brasileiro de Inclusão Digital, sobretudo por compor orientação estratégica de uma “política de Estado”, e que poderia ser mantida independentemente de sucessões governamentais e divergências ideológico-partidárias, sobretudo pela posição ocupada pelo Brasil como ator relevante entre as dez maiores economias do globo e a quarta maior comunidade digital integrada à Internet.

Um programa de ação e iniciativas setoriais em inclusão digital deveriam ser acompanhada de uma série de objetivos ancilares, como a melhoria de indicadores essenciais a desenvolvimento socioeconômico e desenvolvimento humano, promoção de direitos humanos e redução de assimetrias características de regiões desatendidas em países emergentes.  Apenas para corroborar essa proposição, a Lei No. 11.012/2004 estabelece, como parte do macro-objetivo “Inclusão Social e Redução das Desigualdades Sociais”, integrante do Programa, diversos objetivos conexos, tais como:

(i) combate à  fome visando a sua erradicação e promoção da segurança alimentar e nutricional, assegurado o caráter de inserção e cidadania; (ii) promoção do acesso universal, com qualidade e eqüidade à seguridade social (saúde, previdência e assistência); (iii) ampliação do nível e da qualidade da escolarização da população, promovendo-se o acesso universal à educação e ao patrimônio cultural do país; (iv) redução da vulnerabilidade das crianças e de adolescentes em relação a todas as formas de violência e aprimoramento dos mecanismos de efetivação dos seus direitos sociais e culturais;

(v) promoção da redução das desigualdades raciais, com ênfase na valorização cultural das etnias;

(vi) promoção da redução das desigualdades de gênero, com ênfase na valorização das diferentes identidades; e

(vii) ampliação do acesso à informação e ao conhecimento por meio das novas tecnologias, com a promoção da inclusão digital e garantia de formação crítica dos usuários.

Dupla abordagem da inclusão: social e digital

O objetivo de inclusão social como vetor de intervenção característica de política de Estado, serviu, desde a década de 2000, como catalisador de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, dentro de uma agenda consistente com a própria prática, efetividade e observância de direitos humanos pelo Estado brasileiro. Nos ambientes computacionais e de internet não haveria de ser diferente.

Descendo aos detalhes, o Programa Brasileiro de Inclusão Digital encontrou-se com pretensões positivas de inclusão social e econômica de parcelas desatendidas da sociedade brasileira, sem que representasse mero apelo assistencialista, e pelo qual poderia ser desavisadamente acusado. Antes, ele se alinhou ao objetivo de implementação de políticas sociais: a expansão do atendimento, com qualidade, e garantia de tratamento prioritário para aqueles segmentos tradicionalmente excluídos dos benefícios das ações públicas e discriminados por preconceitos sociais. Segundo a justificativa do Programa:

“A efetiva universalização dos direitos sociais básicos requer implementar de forma criativa um conjunto de medidas que visem a: (…) (iv) promover um atendimento diferenciado para os grupos mais vulneráveis por meio da transferência de renda, políticas afirmativas, políticas urbanas e de inclusão digital”.

A abordagem dupla de inclusão – social e digital- ali existente também permitiria estimular o comportamento da indústria no segmento das tecnologias de informação e comunicação. Ela seria suscetível de induzir inovação, reconhecendo a existência de efetiva demanda nos mercados e ambientes sociais desatendidos. As justificativas textuais para o Programa, segundo a Lei n. 11.012/2004, contemplariam interesses plurais de uma política pública direcionada ao acesso à informação em suas distintas dimensões:

˜(…) uma política pública de inclusão social e digital deve considerar como aspectos essenciais para o acesso à informação três dimensões distintas e complementares.
Há a dimensão tecnológica, segundo a qual o acesso à informação significa a disponibilização de tecnologias e meios de acesso. A televisão digital permitirá a convergência tecnológica, praticamente anulando as diferenças entre radiodifusão e telecomunicações.
A dimensão educacional deve prover e garantir a capacidade das pessoas em utilizar os meios e as tecnologias e transformar informação em conhecimento. O aspecto educacional abrange questões educacionais básicas – ler e escrever – e a utilização das tecnologias de informação.
E a dimensão cultural que deve se preocupar com o conteúdo disponibilizado como forma de garantir o efetivo acesso à informação – a maior parte dos conteúdos estão em língua inglesa – e garantir a preservação cultural de cada comunidade e da sociedade brasileira. A informação abrange conteúdos distintos: econômico, político, artístico-cultural, entretenimento etc.”

Esse pequeno trecho, que poderia representar mera transcrição textual dos Anexos da Lei, na verdade, captura e reaviva boa parcela do debate contemporâneo em diversas frentes – inclusão digital, abismo (ou brecha) digital, e exclusão digital.  São tão relevantes que até mesmo a invariável realidade das comunidades de nativos digitais, em amplo crescimento no Sul Global, como entre alguns países emergentes (Brasil, China, Índia, África do Sul), é contrastada com assustadoras falhas e marcantes assimetrias. Entre elas destacam-se o analfabetismo digital, as carências em torno do letramento digital (i.e. as habilidades, capacidades em torno do uso adequado das tecnologias de informação e comunicação e da construção do conhecimento a partir das redes informáticas e digitais).  

A literatura, nesse campo especificamente, tem recorrido à acurada expressão “desigualdades digitais” (digital inequalities), que aparentemente representa o aperfeiçoamento da compreensão teórica e empírica sobre o abismo e a exclusão digitais na sociedade contemporânea e em escala global.  Expressam nada mais do que a própria projeção e replicação das desigualdades socioeconômicas, regionais, afetando as pretensões de validade da Sociedade Global do Conhecimento e de sua estrutura.  

“Desiguais digitais” formam, pois, a horda humana dos excluídos, que ficaram à margem não apenas da inclusão tecnológica e informacional em sentido estrito, mas também – e mais fortemente – das oportunidades de educação e de letramento digitais (digital literacy), de participação na vida econômica (desde aquisição de bens e serviços ou possibilidade de engajar-se em atividade empresarial ou trabalho na área), de participação na vida política; no todo são aqueles que ainda encontram dificuldades ou barreiras de fruição de direitos civis e políticos e de manifestar expressões culturais representando suas respectivas identidades.

As reflexões acima sugerem, em termos bem práticos, que não bastaria prover cidadãos com acesso à internet e ferramentas ICTs, cursos de capacitação técnica, expansão de banda larga nos lares/ambientes domésticos, em espaços rurais e urbanos, ou com a oferta de mais computadores pessoais, tablets ou smartphones para os desatendidos, excluídos ou marginalizados.

Muito pelo contrário. Qualquer êxito de políticas e práticas inclusivas dependeria mais da conjunção de ações no campo da inclusão civil, política, social, econômica e cultural, e redução das autênticas/reais distâncias que ainda afastam espaços, sujeitos e instituições: o campo da cidade, a margem da periferia, os cidadãos da administração e dos centros de poder.

No limite, trata-se da própria afirmação, observância e conformidade dos direitos humanos em sintonia com papéis desempenhados pelos atores da sociedade do conhecimento, a qual, no século XXI, é inexoravelmente acometida pelas profundas chagas da desigualdade.

O debate recente sobre estatísticas de uso da internet e universalização de serviços de provimento de acesso, conexão por banda larga fixa e móvel no Brasil, por exemplo, também escancara as opacidades da inclusão/exclusão digital. Em certa medida, elas se voltam para o embate de interesses e lobbies das empresas de telefonia (atuantes no segmento das telecomunicações, mas com planos para o segmento de serviços digitais) e gigantes da internet, a propósito dos métodos e escolhas diante do pleito de modernização da Lei Geral de Telecomunicações, passados vinte anos de vigência. Atualmente, esse tem sido o cerne das controvérsias em torno do Projeto de Lei n. 79/2016.  

A Lei vigente não contempla a internet como serviço de telefonia, e passível de universalização como tal. No entanto, nesse período, a emergência da internet como serviço, hoje em larga medida associado à expansão e utilização de banda larga móvel – serviço móvel pessoal- e banda larga fixa pelos usuários, ao lado do serviço de telefonia móvel/operadoras, pressionou mudanças substanciais no setor brasileiro de telecomunicações.  Dados da Anatel relativos a 2017 apontam que 42% dos lares brasileiros contam com acesso à banda larga. Relatório do Comitê Gestor da Internet (2016) considera que 69% dos brasileiros já haviam acessado a web, mas que existem substanciais discrepâncias ou assimetrias relativas à expansão e penetração da Internet: os índices são diferentes nas áreas urbana (72%) e rural (49%), nas classes DE (46%) e A (96%) e nas pessoas com ensino superior completo (98%) e com ensino fundamental (56%).

Ambientes digitais e direitos humanos

Às estatísticas vigentes soma-se a mudança radical na percepção de um bem economicamente valioso na sociedade e mercados em ambientes digitais: desde 2004 o acesso à internet é considerado um direito humano pela Organização das Nações Unidas (ONU). O movimento em torno da positivação do acesso como direito fundamental faz com que países tenham maiores incentivos não apenas para tratamento político e normativo em torno de um serviço a ser coletivamente disseminado (universalização do serviço), mas mas ao mesmo tempo precificado e capturado em seu caráter de mercadoria pelos mercados, nas mais elementares trocas comerciais. Há benefícios, mas igualmente externalidades negativas derivados dessa abordagem.

Não seria paradoxal, portanto, que a nova Estratégia de Transformação Digital – E-Digital no Brasil deixasse de contemplar uma concepção integrada das estruturas que informam práticas inclusivas nos ambientes digitais, ou mesmo revisassem a experiência passada . Apesar de o documento base expor preocupações sobre potencialização do exercício de direitos civis e políticos mínimos (liberdades de expressão, comunicação, manifestação, associação e direitos de acesso à informação e não discriminação) e integração à governança da Internet, em nada avança dentro de concepção universalista e indivisível de direitos fundamentais, negligenciando outras parcelas relevantes e que se integrariam também a ações de transformação digital.   Em certo sentido, é um cenário nada favorável, pois lobbies pouco transparentes, que também se escoram nas paredes e corredores do Congresso, diante da Reforma da Lei Geral de Telecomunicações, caminham para ampliação dos espaços de atuação dos agentes econômicos na oferta de insumos e serviços nos mercados de ICTs e internet, sem a consideração do equilíbrio de interesses a favor de usuários e cidadãos,

E mais além. Ditos lobbies não se preocupam, por exemplo, com fatores que seriam essenciais ao sentido – e ironicamente, “sucesso corporativo” – de uma estratégia de  transformação digital: estímulos e ampliação de investimentos setoriais e a redução de certas barreiras ditas institucionais e burocráticas para atuação de agentes econômicos que seriam os maiores interessados na expansão dos mercados de produtos e serviços digitais no Brasil. As barreiras vão desde complexas estruturas administrativas, empresariais/associativas e tributárias, na maioria gestadas nas décadas de 1960 e 1970, para as quais sucessivos governos brasileiros (em todos níveis da federação – União, estados e municípios) vendem promessas de reforma, destravamento e desburocratização, O Anexo I do Decreto 9.319/2018 almeja certos segmentos que não podem ser explorados sem a articulação de políticas públicas efetivas e investimentos públicos e privados, praticamente abandonados endogenamente no Brasil, a exemplo daqueles representados por aquilo que a Estratégia E-Digital nomeia de “economia baseada em dados”; “conectividade”; “novos modelos de negócio”.

Não haveria surpresa, consequentemente, para o fato de que pouca atenção é dada à reversibilidade para acessos e políticas educacionais que permitam ao cidadão desenvolvimento pleno das identidades e fruição de direitos fundamentais na sociedade do conhecimento. Não há plano ou projeto concreto para redução dos níveis de “desigualdade digital”, representativos de países do Sul Global, como o Brasil, e que seriam essenciais para fomentar estruturas da economia digital.  Nesse sentido, a Estratégia Digital 2018 se fundamenta em objetivos simplistas, por exemplo, de “ensino de TI na educação básica”” “novas tecnologias como ferramentas educacionais”, “habilidades para novas carreiras e empregos do futuro”.

Especificamente com relação à abordagem normativa para a inclusão digital, o Decreto n. 9.319/2018 desloca-o dos macro-objetivos de inclusão social do Programa vigente (Lei n. 11.012/2004) para o eixo “Infraestrutura e acesso às tecnologias de informação e comunicação”. Essa mudança pode representar retrocesso, sobretudo porque a inclusão por mero acesso a TCIs é altamente contestada pelas práticas e políticas públicas internacionais e domésticas. As preocupações explicitadas acima demonstram que inclusão digital e práticas a ela relacionadas não podem ser reduzidas aos indicadores de conectividade, acesso à TCIs e a mercados de produtos e serviços digitais.

O que significa, enfim, a Estratégia E-Digital 2018 e quais oportunidades?

A Estratégia E-Digital 2018 parece sair de muitas promessas e lançar poucas expectativas de concretização, talvez muito pela conjuntura pessimista e realista do Brasil: um ambiente sem investimentos traduzido por cortes radicais de despesas em segmentos básicos, de depreciação de políticas de educação, saúde, infraestrutura, ciência e tecnologia, de negação do caráter indispensável da cidadania e engajamento civil, político e social.  

Igualmente, o setor privado, no Brasil, com raras exceções que possam superar o sacrossanto agronegócio ou festejar a expropriação de recursos genéticos e naturais e atração de investimentos especulativos, detém baixíssimos indicadores de inovação. Exaustivamente, no que concerne à base tecnológica, é um setor que se construiu dependente das estruturas de P&D do setor público (laboratórios, universidades, institutos de pesquisa), e tem feito muito pouco para construir uma agenda de caráter inclusivo multidimensional.

Essa agenda, ao contrário do pleito problemático formulado no E-Digital 2018, deveria suportar estruturas minimamente equitativas da economia digital, eliminando os fatores negativos da exclusão, da pobreza e das desigualdades como são conhecidas pelas reflexões teóricas e evidências empíricas. A própria Organização de Cooperação para Desenvolvimento Econômico – OCDE, forte entusiasta da transformação digital, embora concentrando-se muito mais na discussão de estruturas e incentivos para ambiente empresarial empreendedor no segmento, considera a “inclusão social” fator indissociável das estratégias nacionais. Em recente documento, publicado em janeiro de 2017, intitulado ”Questões Centrais para Transformação Digital no G20“, a Organização destaca as as correlações entre tecnologias na economia digital e os efeitos sobre indicadores educacionais e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável- ODMS, das Nações Unidas.

É evidente que qualquer abordagem relativa à transformação digital não poderia se desvincular da inclusão social e práticas inclusivas pelo direito e regulação. As ações implementadas desde a adoção do próprio Programa Inclusão Digital, em 2004, demonstraram as falhas de uma abordagem reduzida a medidas paliativas, de subvenções e incentivos fiscais para fabricação de insumos de computação e telefonia por empresas brasileiras, e de fornecimento direto de infraestrutura computacional, equipamentos, ICTS e acesso à internet a usuários, sem a contrapartida da formação educacional, políticas de inclusão social específicas nesses segmentos e garantia de exercício de direitos fundamentais. No entanto, nem tudo parece desperdiçado. Ainda existe um espaço promissor para se avançar em debate público para os temas da inclusão e da transformação digitais. E esse momento nos permite recuperar a essência de um dos motores e propulsores do desenvolvimento da Sociedade Global do Conhecimento.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

 

Escrito por

Fundador e membro do Conselho Científico do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (‘magna cum laude’, 2010) e Mestre pela Universitá degli Studi di Torino, Itália. Foi também pesquisador visitante – nível Pós-Doutorado – do Max-Planck Institute for Comparative and International Private Law em Hamburgo, Alemanha em 2012.

Professor Adjunto de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito, na mesma instituição. É membro do Comitê de Direito Internacional Privado e Propriedade Intelectual da International Law Association (ILA), da Sociedade de Direito Internacional Econômico e da Associação Americana de Direito Internacional Privado.

Coordenador do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual, da Universidade Federal de Minas Gerais (GNet-UFMG) e Membro do Observatório Brasileiro de Direito Internacional Privado – Brazilian PIL Watch. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e exterior.

Com o IRIS, tem desenvolvido pesquisas colaborativas envolvendo temas do direito internacional, cooperação internacional e direito de internet.

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