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Quem vai tributar as Big Tech?

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30 de dezembro de 2019

2019 foi um ano e tanto para os debates sobre o sistema internacional de tributação. As brechas do atual sistema permitem que indivíduos ricos e corporações multinacionais empreguem paraísos fiscais e outros mecanismos financeiros de forma sistemática para reduzir o nível de impostos que pagam. Tal cenário se agrava ao pensar o caso das grandes multinacionais de serviços digitais, as chamadas Big Tech, pois, apesar de possuírem níveis de lucro impressionantes, pagam impostos extremamente reduzidos. 

Em resposta a esse cenário, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) elaborou neste ano um projeto de reforma do sistema internacional de tributação – quem tem sido chamado de BEPS 2.0 – voltado aos desafios tributários postos pela digitalização da economia. Mas o que significa essa mudança? Qual o tamanho e o impacto potencial dela? E principalmente, ela será capaz de reverter algumas das desigualdades que vigoram hoje?

No post  de hoje, contamos um pouco sobre o motivo dessas iniciativas se tornarem necessárias, como se deu o processo de construção delas e tentamos apontar algumas as perspectivas pro ano que vem.

Como chegamos até aqui

Em 2018, a empresa Amazon, apesar de ter lucrado mais de 10 bilhões de dólares nos Estados Unidos, não chegou a pagar um centavo em imposto de renda federal. Chocantes, esses números são o extremo de uma prática que se tornou bastante corriqueira. Escândalos dessa natureza já atingiram a maior parte das multinacionais de produtos e serviços digitais. A Apple, por exemplo, foi condenada em 2016 pela União Européia por receber benefícios tributários ilegais da Irlanda entre os anos de 2004 e 2014, resultando em uma multa de 13 bilhões de Euros (mais juros), que à época significou a maior multa já paga por uma empresa em decorrência de crimes tributários. Uma recente campanha britânica pela justiça tributária, chamada Fair Tax Mark, apontou que, na última década, as seis grandes multinacionais de serviços digitais dos EUA (Amazon, Facebook, Google, Netflix, Apple and Microsoft) evitaram pagar, através de planejamento tributário agressivo, 100 bilhões de dólares.

A arquitetura do sistema internacional de impostos que vigora atualmente foi elaborada, em um primeiro momento, em 1920s, no âmbito da Liga das Nações. Naquele momento, a preocupação central que permeava as discussões era evitar a dupla tributação. Isto é, que uma pessoa ou uma empresa não estivesse submetida a impostos sobre uma renda que já havia sido tributada em outra jurisdição. Essa preocupação era particularmente importante para empresas que operavam em mais de uma país, empresas que conhecemos como transnacionais ou multinacionais. Nesse contexto, estabeleceu-se o princípio que hoje se conhece como arm’s length.

 O princípio de arm’s length prevê que cada filial ou subsidiária seja entendida, para fins de tributação, como uma empresa separada, e nesse sentido, esteja sujeita a impostos de acordo com as regras locais. Ditas regras são o fundamento que possibilitou o fenômeno do profit shifting, através do qual empresas multinacionais transferem seus lucros para jurisdições nas quais possuem presença econômica insignificante, mas onde gozam de impostos zero ou extremamente reduzidos. Isso é realizado a partir da supervalorização de produtos e serviços em filiais que operam em jurisdições com impostos reduzidos e subvalorização desses em locais em que os impostos são altos. Como resultado, essa prática gera a impressão de que o lucro é produzido apenas em jurisdições com impostos baixos. De acordo com uma pesquisa recente, mais de 40% dos lucros de multinacionais são transferidos para paraísos fiscais. Algumas estimativas apontam que a perda de arrecadação tributária em termos globais situa-se em torno de 500 bilhões de dólares por ano, sendo que isso afeta proporcionalmente mais países em desenvolvimento.

Imagem retirada de infográfico disponível em: https://www.taxjustice.net/2019/11/21/unitary-tax-explained-infographic/

O fortalecimento da economia digital enfraquece ainda mais o sistema em vigor. Os negócios de empresas digitais normalmente empregam ativos intangíveis, isto é, que não possuem uma presença física clara, como patentes, marcas, algoritmos, entre outros. A intangibilidade representa um desafio importante para sistemas tributários historicamente pensados sob bases territoriais. Ao dificultar a identificação de onde os impostos devem ser pagos, a economia digital aumenta a erosão da base tributária dos países, assim como a transferência dos lucros para países com impostos reduzidos ou zero. 

Esse cenário tem levado a uma série de esforços para tributar as Big Tech tanto a partir da cooperação entre países como unilateralmente, isto é, a partir da ação não-coordenada de um país. A mais famosa das medidas unilaterais foi a francesa, chamada popularmente de imposto GAFA, um acrônimo para as empresas Google, Amazon, Facebook e Apple. A medida cobraria 3% sobre os lucros realizados no território francês e gerou bastante tensão nas relações entre os EUA e a França. O Presidente dos EUA, Donald Trump, chegou a falar em retaliação, sugerindo impor tarifas sobre os vinhos franceses, atitude que o ministro da agricultura francês Didier Guillaume disse ser “completamente imbecil”. A apreensão acerca dos níveis elevados de conflito que medidas unilaterais poderiam causar têm reforçado a necessidade de solucionar esse problema no nível internacional. Mas como – e a partir de que princípios – reorganizar o sistema tributário internacional, principalmente em uma arena conflitiva como é a tributária?

A atual iniciativa da OCDE: quem fica com que?

No início de 2019, a OCDE estabeleceu um plano de trabalho com o objetivo de  estabelecer um novo sistema internacional de tributação, voltado aos desafios que a economia digital apresenta. Em cada etapa, propostas e questões relacionadas à arquitetura institucional de tal sistema foram apresentadas e submetidas consultas públicas, recebendo opiniões de governos, sociedade civil e empresas. Essas propostas não possuem efeito vinculante, de modo que devem passar pelo crivo das autoridades decisórias nacionais. A proposta atual de reforma da OCDE, que pretende chegar a um consenso até final de 2020, possui dois pilares:

  1. O pilar 1 diz respeito à criação de soluções potenciais de realocação de lucros entre as distintas filiais e subsidiárias de uma mesma multinacional. Nesse sentido, propõe a criação de um novo nexo, estabelecendo onde impostos devem ser pagos e sobre qual base. 
  2. O pilar 2, também chamado de mecanismo Globe, busca compelir multinacionais a pagar um mínimo de impostos a nível global. Nesse sentido, o segundo pilar busca estabelecer um nível mínimo de tributação de empresas que teria que ser adotado por todos os países. 

É importante ressaltar que esse tipo de iniciativa é particularmente sensível, pois o sistema e a base tributária de um país costumam ser compreendidos como um espaço de soberania muito importante. Ainda, falar em sistema tributário implica falar sobre redistribuição, isto é, realocar dinheiro das mãos de uns pras mãos de outros. Esforços redistributivos são, quase sempre, marcados por altos níveis de conflito. Nesse sentido, tem havido esforços no âmbito da OCDE para a construção do chamado de Foro Inclusivo, que atualmente possui 137 países membros. A idéia é que a construção de espaço com maiores níveis de inclusividade possa implicar em em soluções mais pactuadas e potencialmente, mais justas. 

As iniciativas em prol da inclusão, no entanto, têm sido bastante criticadas como limitadas por grupos de ativistas como a Tax Justice Network, que ressaltam que propostas de reforma como a do G24 foram menosprezadas. A iniciativa do G24, grupo que compreende 28 países em desenvolvimento, propunha uma abordagem unitária, somando os lucros de cada  empresa multinacional globalmente e depois fracionando por países a partir de uma fórmula de presença econômica significativa. A Presença Econômica Significativa, na proposta do G24, incluiria tanto atividades produtivas como vendas. Isso possui impactos muito importantes pois, como mostrou um estudo recente, diferentes fórmulas de divisão dos lucros por países possuem impactos redistributivos muito distintos. Países em desenvolvimento possuem menos usuários, mas muitas vezes possuem certo nível de atividade produtiva: nesse sentido,  as análises preliminares indicam que a inclusão de emprego, além de vendas, é muito importante para que a iniciativa possua impactos positivos para a arrecadação de países em desenvolvimento. É importante apontar que o sistema vigente é um forte mecanismo de promoção de desigualdade. Nas palavras da  professora Jayati Ghosh do ICRIT (Independent Commission for the Reform of International Corporate Taxation), o sistema tributário global é “uma atualização para o século XXI do sistema colonial”. E, de forma geral, construir instituições não significa apenas resolver problemas de ordem técnica, já que estas carregam consigo diferentes concepções de justiça.

Rumo 2020: em que pé ficamos

Na primeira semana de dezembro de 2019, quando o processo de consulta pública dos dois pilares já havia ocorrido, os EUA anunciaram duas medidas que deixaram o processo de reforma da OCDE ainda mais fragilizado. Em primeiro lugar o USTR, o Representante de Comércio dos EUA, afirmou que as medidas unilaterais da França eram discriminatórias contra as empresas de tecnologia dos EUA, e nesse sentido, propôs tarifas de até 100% sob os produtos franceses importados. 

Por outro lado, o secretário do Tesouro dos EUA, Steven Mnuchin, anunciou através de uma carta ter sérias preocupações sobre o modelo de reforma e o abandono dos princípio do Arm’s Length. Nesse sentido, ele afirmou que o pilar 1 poderia incorporar a ideia de um porto seguro. Se bem a idéia de um ‘porto seguro’ gerou muita confusão, ao que tudo indica, isso parece significar que empresas estadunidenses, as Big Tech incluídas, poderiam se abster de aderir ao novo sistema, sem incorrer em ilegalidades. Se isso se concretizasse, comprometeria a já frágil proposta de reforma da OCDE.

Os desenvolvimentos recentes geraram um impasse já que, por um lado, os EUA se opuseram a medidas unilaterais, reafirmando o âmbito multilateral como o único qualificado para lidar com esse problema. Por outro lado, as recentes críticas do Secretário Mnuchin levantam dúvidas sobre até que ponto os EUA estão de fato dispostos a se comprometer com aquela que é, hoje em dia, a principal proposta de reforma, a da OCDE.

Alex Cobham, da Tax Justice Network, afirmou três cenários futuros possíveis: i) reforma limitada; ii) colapso do processo e, iii) recomeço das negociações. Segundo o especialista, os movimentos recentes dos EUA parecem indicar um enfraquecimento da primeira opção, e um fortalecimento da segunda. A demanda pela construção de fóruns mais inclusivos passa também pela escolha da arena de elaboração das propostas de reforma: Cobham argumenta que demandas para deslocar o âmbito das discussões da OCDE para um fórum da ONU têm ficado mais vocais. 

Em suma, o final de 2019 implicou na incorporação de novas camadas de complexidade a um conflito que já as têm de sobra. O cenário é complexo, mas, por outro lado, trata-se de um processo que dificilmente têm volta. 2020 será o ano chave para ver se as reformas serão bem sucedidas, e, especificamente quais  reformas serão bem sucedidas.

Conclusão

Se bem existe um consenso sobre o fato de que o sistema internacional de tributação não dá conta de lidar com mudanças que causadas pela digitalização da economia e o crescimento de empresas de Big Tech, o mesmo não pode ser dito sobre as respostas no nível da cooperação multilateral. Diferentes abordagens possuem impactos redistributivos distintos, podendo ser ferramentas para aumentar ou diminuir desigualdades sócio-econômicas, tanto a nível global como doméstico. Construir instituições e regras, mesmo quando elas carregam níveis elevados de abstração, não pode ser reduzido apenas a solução de problemas de ordem técnica. Diferentes alternativas implicam em diferentes concepções de justiça e ocorrem em contextos marcados por hierarquias, tanto entre estados, como entre atores não estatais, como empresas multinacionais. 2020 vai ser um ano chave na definição de se essas iniciativas são bem sucedidas – ou não. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik

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Possui graduação em Ciências Sociais pela UFMG. Atualmente, é mestranda do departamento de Ciência Política da UFMG, sendo que sua dissertação é voltada ao estudo do fenômeno dos paraísos fiscais e esforços de cooperação tributária no âmbito do multilateralismo. Participou como pesquisadora na Comissão da Verdade em Minas Gerais e do Projeto Media Bias, sobre viés de veículos midiáticos brasileiros.

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