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Os PLs contra fake news e seus riscos para a internet

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23 de junho de 2020

Recentemente, o IRIS publicou um post para apresentar algumas das questões centrais relativas aos PLs que atualmente tramitam no Legislativo a fim de regular e impedir a disseminação de fake news. O objetivo deste texto é discorrer sobre o tema à luz das repercussões mais recentes envolvendo esses projetos de lei. Também serão traçados comentários adicionais sobre como a aprovação de regulações descuidadas pode resultar em danos profundos para o ambiente digital brasileiro.

A atual situação dos PLs sobre fake news 

Desde o surgimento dos PLs, houve uma intensa discussão acerca dos enunciados incluídos em cada um. No momento atual, a maior parte das atenções está voltada para o PL nº 2.630/2020, que aguarda votação no Senado.

Observou-se até agora diversas alterações e propostas de substitutivos ao texto original do PL, ao ponto de que algumas das sugestões propostas chegam a descaracterizar o texto inicial quase que em sua totalidade. É o caso, por exemplo das propostas realizadas pelo senador Angelo Coronel, que sugeriu, por exemplo, previsões de alteração do Marco Civil da Internet e a necessidade de cadastramento de documentos de identidade para criação de contas em plataformas digitais e para compra de chips telefônicos, entre outros.

A votação no Senado está prevista para esta semana, visto que o senador Angelo Coronel parece ter finalizado seu relatório – que, contudo, ainda não teve seu conteúdo publicizado. A publicização tardia do relatório que potencialmente será votado nos próximos dias, inclusive, ilustra bem um fenômeno que tem sido recorrente na tramitação dos PLs sobre fake news.

Trata-se da falta de transparência na tramitação desses textos legais. Essa característica culmina, finalmente, na impossibilidade de que haja uma participação democrática da sociedade civil na elaboração dessas regulações. A gravidade disso aumenta, ainda, com a constante menção de um suposto teor amplamente democrático do projeto por parte de seus proponentes: algo que claramente não se está concretizando.

Nesse sentido, as mobilizações da sociedade civil e da comunidade técnico-científica desde o surgimento dos PLs sobre fake news têm sido constantes. Diversos pareceres e notas técnicas foram publicados por entidades como  a Coalizão Direito na Redes, o Lapin, o Intervozes, o IP.Rec juntamente com a Coding Rights e o próprio IRIS, apontando os diversos riscos decorrentes dos enunciados que compõem os textos legais propostos. 

A falácia da “coalizão do não faça nada”

Apesar de toda a discussão do meio técnico sobre o tema, bem como os apontamentos de possíveis repercussões catastróficas caso seja aprovada uma lei da forma como estão sendo propostos os PLs, essa pauta legislativa tem sido fortemente enfatizada por parte daqueles que buscam uma solução emergencial para o problema das fake news. Algo que se tem ouvido recorrentemente em reuniões com parlamentares e apoiadores dos PLs é que mostra-se necessário aprovar alguma previsão legal contra a desinformação online, mesmo que ela não seja “ideal”.

Nesse sentido, o diretor da Avaaz, Ricken Patel, manifestou-se recentemente defendendo a aprovação dos PLs da forma como foram originalmente propostos. Segundo Patel, os esforços para barrar a aprovação desses textos legais representam o surgimento de algo que ele denomina como uma “coalizão do não faça nada”.

O executivo, em resumo, argumenta que a resistência aos PLs das fake news se restringe às massas de manobra daqueles que se “venderam” aos interesses das plataformas, bem como a integrantes de grupos de extrema direita que estariam se beneficiando da disseminação de conteúdo inverídico online. Basicamente, portanto, o diretor assume que todos aqueles que são contrários aos PLs – e, mais especificamente, à forma como eles foram inicialmente redigidos – são automaticamente favoráveis à disseminação de fake news na rede.

Um argumento tão generalista, contudo, resulta de uma análise demasiadamente rasa da situação. As críticas dirigidas ao modelo de regulação que se pretende obter com os PLs das fake news da forma como foram propostos até agora constituem muito mais do que oposição cega e infundada às propostas de leis. Do contrário: representam um movimento em favor da defesa de direitos constitucionalmente garantidos, bem como da manutenção de salvaguardas jurídicas que permitam a perpetuação de um modelo operacional viável para os atores que figuram no meio digital.

Regular fake news a que preço?

A necessidade por uma regulação que se aplique às notícias falsas é amplamente reconhecida. O próprio IRIS, por exemplo, já publicou diversos conteúdos apontando o risco que as fake news representam para a democracia e a sociedade em geral.

O que se defende, contudo, é a criação de mecanismos regulatórios mediante a adoção da devida cautela, para que se evite resultados catastróficos para o ambiente digital. Não é questão de aprovar “alguma lei” e sanar quaisquer problemas a posteriori: mostra-se necessário um esforço para a criação de uma legislação adequadamente ponderada – que cumpra seu propósito sem representar um retrocesso em diversas outras áreas.

Para além das preocupações quanto à liberdade de expressão na internet, derivadas da extensão dos efeitos dos PLs aos usuários comuns da rede – ao invés de limitar a abrangência dos enunciados legais aos centros de financiamento e criação de fake news –, um tema que se destaca é o da responsabilização das próprias plataformas pela desinformação causada por usuários. Essa é uma previsão que afronta diretamente o art. 19 do Marco Civil da Internet, por exemplo, e que representa riscos severos à resiliência do modelo de responsabilização civil na rede ao deixar de lado o mundialmente adotado sistema de “notificação e derrubada” (notice and takedown).

As emendas ao PL propostas pelo senador Angelo Coronel chegam a prever a alteração do art. 19 para que a responsabilização das plataformas por conteúdo de terceiros seja possível desde o momento em que estas sejam notificadas extrajudicialmente. Em outras palavras, a responsabilização passa a ser possível mesmo antes que seja proferida uma ordem judicial obrigando a plataforma a tomar providências quanto a um conteúdo compartilhado por usuários. Essa alteração, por si só, representa não apenas um ônus desarrazoado para as plataformas, como também abre espaço para a necessidade da filtragem massiva de conteúdos compartilhados digitalmente, o que repercute diretamente no usuário comum.

Na entrevista anteriormente mencionada, o diretor da Avaaz também menciona que, da forma como estava previsto originalmente, o texto dos PLs das fake news não previa a responsabilização das plataformas pelo conteúdo gerado por terceiros, e que “houve muita desinformação sobre essa lei contra desinformação”. Contudo, apesar de não contar com a previsão explícita da responsabilização dos provedores (como veio a ser proposta posteriormente), o primeiro texto legal apresentado também trás – talvez involuntária, mas inequivocamente – essa consequência para as plataformas de compartilhamento de informações. Isso porque a determinação de que as plataformas devem vedar de ofício o funcionamento de contas inautênticas resulta – novamente – na necessidade do uso de filtros e outros mecanismos automatizados para controlar a atividade de todos os usuários na rede, sob o risco de serem responsabilizadas judicialmente em momento posterior.

Conclusão

Como se pode perceber, os textos legais apresentados para os PLs das fake news constituem, justificadamente, motivo para a preocupação generalizada da sociedade civil e dos setores técnico e acadêmico. Propostas de legislações como as que temos em pauta hoje – aprovadas às pressas, em inobservância dos devidos princípios de transparência e democracia legislativa e cegas às preocupações técnico-científicas apresentadas por entidades atuantes na área – representam riscos severos para o ambiente regulatório do meio digital no Brasil. Não se trata de uma “coalizão do não faça nada”, mas sim de um movimento para que não se faça nada prejudicial ao ponto de serem necessárias profundas correções em um momento futuro.

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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).

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