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Constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil: Responsabilidade de Intermediários examinada pelo STF

20 de junho de 2022

O Marco Civil da Internet no Brasil (MCI) afirmou direitos de forma pioneira e com importância reconhecida mundialmente. Isso não o exime de a validade de algumas de suas previsões serem questionadas. Um exemplo bastante debatido é o regime de responsabilidade civil de intermediários por ele estabelecido, especialmente a limitação das obrigações impostas aos provedores de aplicações.

Para 22 de junho de 2022, véspera de ​​o MCI completar oito anos de vigência, havia a expectativa de um importante julgamento sobre esse tema no Supremo Tribunal Federal. Todavia, o processo foi excluído do calendário de julgamento no final de maio, e até agora não há previsão de nova inclusão na pauta. Mesmo assim, o tema se mostra oportuno.

O que está em jogo nessa discussão? Qual tema, personagens e possíveis consequências envolvidos nesse  processo judicial? O que já foi decidido antes e quais os possíveis caminhos para o STF? E, finalmente, o que se pode esperar do futuro da responsabilidade civil de intermediários no Brasil

A tramitação processual: de Capivari ao Supremo

Cabe ao Supremo Tribunal Federal examinar o Recurso Extraordinário (RE) nº 1.037.396 e dizer se é ou não constitucional o artigo 19 do MCI (Lei nº 12.965, de 2014). As peças processuais disponíveis no site do STF e o andamento no site do TJSP permitem narrar o caminho desse processo judicial, entender do que ele trata e o que exatamente está em jogo quando o assunto é responsabilidade civil dos provedores.

O Marco Civil havia sido sancionado pela Presidenta Dilma Rousseff em 23 de abril de 2014, na abertura do evento NETmundial – Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet. Sua vigência começou sessenta dias depois, em 23 de junho de 2014. 

Em 17 de novembro daquele mesmo ano, a dona de casa Lourdes Pavioto Correa, moradora da cidade de Capivari, em São Paulo, ajuizou uma ação contra o Facebook. Declarou ter sabido por familiares que um perfil com suas fotos e seu nome, fez-se passar por ela em publicações ofensivas a outras pessoas, entre as quais sua irmã. Então, pediu ao Juizado Especial Cível a determinação de que a empresa excluísse o perfil falso, informasse o IP usado na criação, e a indenizasse pelos danos causados à sua honra e imagem.

Ao apreciar a ação 0006017-80.2014.8.26.0125, a juíza Marcia Yoshie Ishikawa proferiu sentença em 26 de junho de 2015. Acolheu os dois pedidos de exclusão do perfil falso e de entrega do endereço de IP, mas não aceitou o pedido de indenização por dano moral. Tanto o Facebook quanto Lourdes recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Em dezembro de 2015, a 2ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal de Piracicaba/SP, sob relatoria do Desembargador Rogérios Sartori Astolphi, com participação de Maurício Habice e de Gisela Ruffo, alterou o resultado em dois aspectos. Em favor do Facebook, afastou a obrigação de fornecer o endereço de IP usado na criação do perfil falso; e em favor da autora da ação, declarou que o art. 19 do MCI é inconstitucional e condenou o Facebook a pagar indenização de dez mil reais por dano moral, decorrente da omissão em excluir o perfil falso, após ser avisado da irregularidade.

O Facebook, ainda em 2016, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, desafiando a declaração de que o art. 19 do Marco Civil seria inconstitucional. Os autos foram remetidos em março de 2017 e em março de 2018 o STF, na linha da manifestação do Relator, Ministro Dias Toffoli, entendeu que a matéria tem repercussão geral, ao tratar da “necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros“, e estabeleceu o RE 1037396 como caso central do Tema de Repercussão Geral nº 987.

Finalmente, em 25 de setembro de 2018, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se nos autos e defendeu a constitucionalidade do dispositivo:

“Não ofende o art. 5º, X e XXXII, da Constituição Federal o art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que condiciona ao descumprimento de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo a caracterização de responsabilidade civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.”

Responsabilidade limitada de provedores: a regra prevista no art. 19 do MCI

O Marco Civil da Internet fixou um novo modelo para o regime de responsabilidade de intermediários, diferente do que vinha sendo delineado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Primeiro, traçou uma distinção binária entre os tipos de empresas prestadoras de serviços, diferenciando apenas entre provedores de conexão à Internet e provedores de aplicações de Internet.

Os provedores de conexão atuam na habilitação de um dispositivo para navegação na Internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP, ou ainda na transmissão, comutação ou roteamento de pacotes de dados. Estão nas três primeiras camadas da Internet, considerando o padrão TCP/IP: infraestrutura, endereçamento e rede.

provedores de aplicações, na camada de mesmo nome, oferecem as funcionalidades específicas que realizam as possibilidades gerais da Internet, ou seja, aplicam o potencial genérico da rede para utilidades determinadas: pedir comida, ouvir música, fazer buscas, publicar textos curtos, compartilhar fotos, assistir a seriados, encontrar o melhor caminho, etc.

O Marco Civil da Internet se pauta por um princípio, inscrito no inciso VI do art. 3º: cada agente se responsabiliza de acordo com suas atividades. Assim, o art. 18 do MCI estabelece uma isenção total de responsabilidade para provedores de conexão em relação ao conteúdo gerado por seus clientes. Já para os segundos, o art. 19 fixa como regra uma limitação da responsabilidade para provedores de aplicações, que apenas devem ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdos de terceiros caso se neguem a cumprir uma determinação judicial:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

Ressalte-se que essa regra do MCI tem duas exceções: direito autoral e exploração de imagens íntimas privadas. A primeira, prevista no § 2º do art. 19, conta com disciplina legal própria na Lei de Direito Autoral (nº 9.610, de 1998), que esteve sob intenso debate na primeira década do século XXI, mas segue praticamente inalterada nesse ponto. A segunda exceção, prevista no art. 21 do MCI, resultou da comoção social diante de casos de suicídio de duas adolescentes que haviam tido suas intimidades expostas.

Voltando ao caso de Lourdes Pavioto Correa, é importante derrubar um argumento falso persistente, inclusive, por ter sido alegado pelo Facebook em sua defesa. Desde que recebeu a notificação extrajudicial enviada por Lourdes, a empresa alega que não poderia excluir o perfil apontado como falso sem uma ordem judicial.

O Marco Civil da Internet não impede que provedores de aplicações efetuem a moderação de conteúdo. A lei somente limita a exigência de obrigação ao momento posterior à decisão judicial, mas não traça nenhuma proibição. Logo, em termos de direito civil, essa ausência de proibição implica autorização. Ou seja, as empresas são livres para, caso queiram, moderar ou não o conteúdo de terceiros publicados em suas redes. E na hipótese de incorrerem em qualquer abuso ou equívoco, ficam sujeitas a responderem civilmente.

A Constituição e o Marco Civil: a importância de um diálogo aberto entre sociedade e STF

Essa não é a primeira vez que o Supremo se debruça sobre a relação entre direito e internet. Em 2016, após os bloqueios do WhatsApp no Brasil por descumprimento de ordens judiciais de interceptação, a Corte recebeu duas ações que discutem a constitucionalidade das medidas, cujo julgamento aguarda retorno de vista desde maio de 2020. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527, questiona-se a validade dos incisos III e IV do artigo 12 do MCI, indicados em uma das ordens judiciais como fundamentos para o bloqueio.

E antes mesmo da aprovação do Marco Civil, em 2011, havia chegado ao Supremo um conflito sobre os deveres do Google na fiscalização de uma comunidade do Orkut criada por alunos de Belo Horizonte para falar mal de uma professora. O Recurso Extraordinário 1.057.258 (antigo ARE 660861) será julgado tendo em mira o Tema de Repercussão Geral nº 533, que discute a necessidade de intervenção do Poder Judiciário como requisito para a responsabilização de provedores de aplicações por conteúdo gerado pelos usuários.

Retomando o caso específico do art. 19, o tema ganha tração com o intenso debate público sobre a regulação das plataformas online, no contexto do combate à desinformação, ao discurso de ódio e a outras formas de conteúdo online nocivo. A fim de captar as diversas perspectivas sobre a questão, o STF admitiu seis amici curiae no processo: são institutos de defesa de direitos do consumidor, empresas de tecnologia, e organizações de defesa dos direitos humanos que, mesmo não sendo partes no processo, terão espaço para manifestar suas preocupações. Todos “amigos da corte” já apresentaram seus argumentos por escrito, e ainda terão alguns minutos de sustentação oral durante as sessões de julgamento. Mas isso não basta, considerando não apenas a complexidade técnica do tema, mas sua enorme relevância pública.

Em meados de 2019 o julgamento do RE 1037396 (TRG 987) chegou a ser pautado para 04 de dezembro daquele ano, mas foi suspenso justamente para se realizar uma audiência pública, a fim de receber mais subsídios para sua decisão, marcada para 23 e 24 de março de 2020. Mas às vésperas desses dias, o evento foi desmarcado pelo Relator, Ministro Dias Toffoli, em razão da pandemia de COVID-19. Passada a maior gravidade da situação de emergência, no final de 2021, o STF havia incluído o processo na pauta de julgamento de 22 de junho de 2022, mas acabou sendo novamente retirado de pauta no final de maio. Nesse cenário, segue sendo crucial para uma boa decisão que o STF ouça as muitas visões sobre o tema, e se abra para as manifestações da sociedade.

A possibilidade de o julgamento ocorrer sem essa audiência pública seria um grave risco, e preocupa especialistas e ativistas. Vale destacar que a experiência brasileira na governança da internet é referência mundial tanto por sua qualidade técnica quanto por seu caráter plural e democrático. Assim, qualquer decisão, administrativa, legislativa ou judicial, que impacte tal ecossistema deveria ser também amplamente debatida, garantindo-se que sejam ouvidos e considerados os interesses dos diversos setores sociais afetados.

O que esperar do futuro? 

O debate sobre a constitucionalidade do artigo 19 certamente continuará a ser um dos temas mais relevantes da agenda de governança da internet no Brasil nos próximos meses e anos, independentemente do resultado do julgamento. Esse ano, a aproximação do período eleitoral intensificará a discussão sobre o papel dos intermediários e sobre qual o modelo regulatório mais adequado para promover o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate a ilícitos na rede. Mas as questões extrapolam o tema do direito eleitoral, e certamente terão novas nuances e trarão novas controvérsias. Por isso, uma decisão do STF agora importa tanto: ela ditará as bases constitucionais para se interpretar a disciplina do Marco Civil da Internet.

O melhor caminho para uma decisão justa e adequada à realidade tecnológica, cada vez mais, passa por respeitar os parâmetros e valores característicos básicos da democracia, incluindo os princípios para a governança e uso da internet no Brasil, a exemplo da governança participativa e colaborativa e a inimputabilidade da rede. Ao iniciar de fato o julgamento do RE 1037396 (TRG 987), o cumprimento do papel institucional do STF demanda buscar por aportes multissetoriais e interdisciplinares. Apenas assim se poderá compreender toda a dimensão dos efeitos de qualquer alteração no modelo estabelecido pelo Marco Civil da Internet. Nesse sentido, seria inestimável o valor da audiência pública.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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