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Moderação de conteúdo na Tanzânia e o que podemos aprender com outros contextos

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8 de maio de 2023

Ao longo da pesquisa, é comum encontrarmos um número muito grande de informações e dados que, infelizmente, em razão da delimitação do tema e metodologia, acabam por ficar de fora do resultado final. Isso é o que temos enfrentado no novo projeto sobre regulação de plataformas desenvolvido aqui no IRIS e intitulado “Devido Processo na Moderação de Conteúdo”.

O objetivo do projeto é mapear e analisar legislações do Brasil e outros Estados que estabelecem um devido processo na moderação de conteúdo, que nada mais é (de forma bem resumida e apesar do nome difícil) do que normas procedimentais mínimas para as plataformas realizarem esse tipo de atividade. Essas normas podem se relacionar com o estabelecimento de canais de denúncia para usuários, diretrizes de comunidade em linguagem acessível, prazos para plataformas responderem denúncias e para usuários recorrerem de decisões de remoção, dentre outras possibilidades.

Em suma, são regras para fazer com que a moderação de conteúdo – que é a responsável por colocar tags naqueles posts que você vê nas redes sociais e que podem conter desinformação ou por remover ou suspender usuários que violam alguma norma da plataforma – seja mais transparente, democrática e efetiva.

Ocorre que, diante da impossibilidade de análise de todos os países do mundo que criaram alguma norma sobre esse tema, nós tivemos que deixar várias legislações de lado, conforme a nossa metodologia. E é sobre um dos países que não irá para o nosso paper final, mas que chamou a minha atenção, que eu venho falar hoje.

Você conhece a Tanzânia?

Continente africano em pauta: Tanzânia

Antes de falar especificamente sobre normas de moderação de conteúdo na Tanzânia, é interessante conversarmos mais sobre algumas características desse país, para compreendermos um pouco do seu cenário político e social.

A Tanzânia é um país do continente africano relativamente novo (foi formado no século XX), mais especificamente da região denominada África Subsaariana, sendo um de seus países mais populosos. É um Estado considerado um dos mais seguros e com política estável no continente, bem como é governado por uma mulher, Samia Suluhu Hassan, desde 2021. Samia era vice-presidente até o falecimento do presidente John Magufuli, conhecido por sua atuação preocupante em diferentes questões, como em relação à pandemia do Covid-19, contra a atuação de uma mídia independente (essa informação é importante, preciso que você a salve para depois, ok?) e direitos da população LGBTQIAP+.

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Figura 1 – Localização da Tanzânia no globo. Fonte: Vecteezy.

 

Mais especificamente sobre os ataques contra a mídia do país, Samia chegou a reverter decisões do ex-presidente, como por meio da suspensão de proibições sobre jornais relevantes, mas o setor segue bastante concentrado e com pouco espaço para críticas ao governo. No que tange à internet, segundo dados do Internet World Stats, a Tanzânia possuía, em dezembro de 2021, 37% da população usuária da internet, mas sem informações a respeito da qualidade desse acesso. Em relação ao Facebook, por exemplo, o índice era de 10,2% de penetração em janeiro de 2022, representando 6.378.400 usuários.

Em 2021, o governo teria manifestado interesse em expandir o número de usuários de internet para 80% da população até 2025, através do aumento do acesso a smartphones, com incentivo a investidores, para que as pessoas possam acessar a internet através de seus dispositivos. Em 2022, o país também instalou um ponto de internet rápida em um dos seus pontos turísticos mais conhecidos, o Monte Kilimanjaro, a 3.720 metros de altitude.

Todavia, há um longo caminho a percorrer para se chegar a esse número. De acordo com o estudo da Research ICT Africa de 2017, apesar de hospedar o segundo maior mercado de telecomunicações do leste do continente, quase 90% da população rural da Tanzânia estava desconectada, enquanto na área urbana eram 44,6%. Além disso, apenas 27,8% das mulheres usavam a internet e 9,8% utilizavam redes sociais, contra 31,5% e 14,3% dos homens, respectivamente, o que demonstra uma disparidade de gênero.

A fim de auxiliar esse cenário, vale mencionar que o Capítulo Tanzânia da Internet Society (ISOC), junto à Universidade de Dodoma e o Programa de Financiamento Beyond the Net, criou um projeto para implantação de uma rede comunitária, que “conectou quatro instituições educacionais na zona rural da Tanzânia e, ao mesmo tempo, forneceu acesso à Internet aos membros da comunidade ao redor das escolas” (tradução nossa). As redes comunitárias, conforme já mencionado pelo pesquisador Nathan Paschoalini, são iniciativas que se apoiam “na participação ativa de comunidades locais em todas as etapas do processo, desde a sua concepção até a gestão democrática de sua infraestrutura, a qual é compreendida como um recurso comum e pertencente a todas as pessoas da comunidade”, o que representa uma grande força para a promoção da inclusão digital.

Essas são apenas algumas informações para conhecermos alguns dos desafios enfrentados por essa nação, que tem buscado ampliar os esforços para que mais pessoas tenham acesso à internet. O problema é que os desafios para uma internet segura e acessível a todes não param por aí…

A regulação de conteúdo online na Tanzânia

Lembra que eu havia pedido para você guardar uma informação lá em cima no texto? Pois é. Era sobre o fato de que o ex-presidente, John Magufuli, possuía um posicionamento autoritário em relação às ações contra uma mídia independente, por impedir críticas ao seu governo. Em relação à internet, isso não foi diferente.

Em 2020, o país teve aprovados os Regulamentos de Comunicações Eletrônicas e Postais (Conteúdo Online), uma atualização das normas de 2018, com uma série de novas restrições para o uso da internet, como o “licenciamento e a tributação de blogueiros, fóruns de discussão online, webcasters de rádio e televisão”, assim como a repressão do “discurso online, a privacidade e o acesso à informação” (tradução nossa). A versão anterior já previa a necessidade de que todos os blogueiros e provedores de conteúdo do país tivessem uma certificação e pagassem uma taxa anual de 930 dólares para poder começar qualquer operação online.

Essa limitação, por si só, já fez com que muitas pessoas tivessem de abrir mão de produzir conteúdo, incluindo em fóruns online, em razão da impossibilidade de pagar o valor exigido e obter a licença. Na nova versão de 2020, já foi apontado o quanto a sua redação permanece em desacordo com documentos internacionais de direitos humanos dos quais a Tanzânia é signatária, como, por exemplo, restrições no compartilhamento de informações, definição de tipos penais que podem levar a injustiças, como a criminalização da difamação e fake news, e notificação para remoção de conteúdo independentemente de ordem judicial ou devido processo.

Ainda, a Artigo 19 também denunciou que a nova versão ampliou o número de categorias de conteúdo proibido, trazendo até mesmo evidentes contradições, como impedir “conteúdo que interfere na liberdade de praticar a religião, ao mesmo tempo, em que proíbe o conteúdo relacionado à bruxaria, que pela própria definição da palavra é uma prática religiosa” (tradução nossa). Outro exemplo notoriamente violador de direitos humanos, em especial da comunidade LGBTQIAP+, é a classificação do conteúdo proibido “sexualidade e decência”, que, dentre outros, abarca conteúdo que “motive, promova ou facilite a publicação ou troca de homossexualidade”.

Mais especificamente no que tange as normas de devido processo da moderação de conteúdo, como aqueles exemplos que mencionei lá no início do texto, de regras procedimentais mínimas, é possível verificar que o texto de 2020 determina a remoção de conteúdo nocivo no prazo de apenas 2 horas quando houver notificação pela Autoridade Reguladora das Comunicações da Tanzânia (TRCA) ou pela pessoa afetada pelo conteúdo.

Ainda em relação aos prazos, os licenciados pelo governo para prover conteúdo online também possuem apenas 12 horas para responder a reclamações feitas por indivíduos sobre questões relacionadas a conteúdos proibidos. Se isso não ocorrer, a pessoa pode recorrer à TRCA para tomar as devidas providências.

Todas essas proibições parecem contrastar com algumas obrigações gerais estabelecidas no mesmo regulamento e que aparentemente poderiam contribuir para um cenário de moderação mais democrático, como é o caso da necessidade de que licenciados: I) levem em consideração tendências e sensibilidades culturais do público, além de II) estabelecer e permitir acesso aos usuários a políticas sobre uso seguro de conteúdo online.

De fato, a necessidade de uma moderação de conteúdo mais atenta a contextos específicos, bem como a disponibilização de regras de comunidades explícitas e acessíveis são critérios fundamentais para uma moderação mais eficiente. Entretanto, como se pôde ver, a conjunção com outras normas profundamente autoritárias e cerceadoras impede o exercício de direitos básicos, como a liberdade de expressão.

Para não concluir (e pela aprovação do #PL2630já)

Em um cenário cada vez mais disputado de regulação de plataformas, é fundamental olhar para diferentes experiências ao redor do mundo para aprender como elaborar regras que façam sentido para o contexto a que se destinam. Isso porque, quando se fala na moderação de conteúdo online, trata-se de uma atividade que impacta diretamente em direitos humanos importantes e que precisam de proteção.

Assim, apesar de se esperar que normas estatais sobre moderação pudessem contribuir para um horizonte mais transparente, democrático e respeitoso nas plataformas digitais, é preciso atenção para que tendências de governos autoritários não se reproduzam através de normas excludentes e que inviabilizam o exercício da livre manifestação.

Articular debates, permitir trocas e construções entre diferentes setores da sociedade, estabelecer normas que potencializem os pontos positivos das plataformas digitais e reduzam suas negatividades, que preservem a autonomia e autodeterminação dos usuários são apenas alguns dos exemplos do que podemos fazer para a construção de normas estatais democráticas.

No Brasil, organizações da sociedade civil, como o próprio IRIS, e redes, como a Coalizão Direitos na Rede, têm se organizado de maneira fundamental para garantir que a regulação de plataformas esteja voltada à observância de princípios constitucionais e até mesmo internacionais, a fim de que usuáries do Brasil inteiro possam ter acesso a um espaço digital saudável e acolhedor. Aliás, se você não estiver acompanhando, sugiro que busque saber mais sobre a necessidade de aprovação do #PL2630já, que visa justamente criar direitos e garantias mínimas a todas as pessoas que se utilizam dos serviços de plataformas digitais.

Uma #InternetParaTodes passa por assegurarmos que regulações estatais voltadas a esse espaço reflitam as necessidades da sociedade civil como um todo.

Escrito por

Coordenadora de pesquisa e Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Mestre em Direitos da Sociedade em Rede e Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Membra do Coletivo AqualtuneLab. Tem interesse em pesquisas na área de governança e racismo algorítmicos, reconhecimento facial e moderação de conteúdo.

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