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Depois de março, ainda falamos sobre gênero na governança da internet?

Escrito por

26 de abril de 2023

Estamos quase no final de abril, momento propício para refletirmos sobre como todo ano as importantes pautas da igualdade de gênero são renovadas sazonalmente, tendo como marco o mês de março, da luta por direitos para mulheres, e, logo em seguida, esquecidas ou propositalmente invisibilizadas no cenário público. O resultado é um aprofundamento do sexismo no mercado de trabalho, do assédio sexual e da exclusão de mulheres, pessoas trans, travestis e não-binárias. Esses abismos sociais decorrentes das desigualdades de gênero são visíveis em diversos âmbitos: seja no mercado de trabalho, entretenimento, veículos de notícia e, inclusive, na Governança da Internet.

Um contexto tão opressor não pode ser superado com ações apenas um mês a cada ano, seja ele março, com a luta das mulheres, ou janeiro, com a visibilidade trans/travesti. É necessário nos comprometermos todos os dias, a fim de que o Brasil  possa deixar de ser um dos países que mais matam pessoas trans/travestis e mulheres em todo o mundo.

Por isso, convido você a se juntar a mim e analisarmos juntes a conjuntura do Gênero no contexto da Governança da Internet no Brasil.

Contexto, para entender de onde e porque partimos

Meu nome é Wilson Guilherme, mais conhecido como Wil. Sou uma pessoa negra e trans não-binária. Fiz essa breve apresentação para explicar de onde venho e o motivo pelo qual escrevo este texto.

Recentemente, tenho me questionado sobre o papel dos meses comemorativos ou de conscientização, como o mês de junho, dedicado ao Orgulho LGBTQIA+, o mês de novembro, da Consciência Negra, o mês de janeiro, da Visibilidade Trans – e, neste caso, o mês de março, dedicado à Luta das Mulheres. Embora esses meses tenham o potencial de lembrar que “nossos passos vêm de longe“, como ativista e pesquisadore, tenho experimentado um grande cansaço, que carinhosamente chamo de “mês do cansaço”.

Afinal, por um lado, nossas agendas nesse período são preenchidas com numerosos pedidos para palestras, debates, transmissões ao vivo, vídeos e outras ferramentas de sensibilização sobre o tema. O que é positivo, já que várias pessoas tiveram que lutar duramente para chegarmos até aqui. Todavia, é em igual medida desgastante, tanto pelo fato de que nossos trabalhos nessas ações geralmente não são remunerados, quanto pelo fato de que – para quem se vê fora dessas lutas – somos lembrades apenas nessas datas, quando na realidade as violências que enfrentamos acontecem o ano inteiro.

E como se não bastassem as agendas, ainda passamos por esses períodos com o alarme completamente ativo e em postura de luta. Afinal, a cada nova publicação, palestra ou ação, chovem comentários e falas preconceituosas, que tentam reafirmar o status quo. Prova disso é o mês de março de 2023, atravessado por diversas práticas trans-excludentes, que buscaram reafirmar a cisgeneridade e o apagamento de pessoas trans e travestis do cenário público. Cito, por exemplo, o uso jocoso de uma peruca por um deputado homem branco cis no Congresso Nacional, além do voto de louvor aprovado pela Assembleia Legislativa de Rondônia, ao mesmo deputado, por sua conduta, e da fala de dois desembargadores durante uma sessão de julgamento no Tribunal de Justiça do mesmo estado, onde vivo. 

Essa conjuntura presente me convoca a olhar para o passado e o presente, em busca de um futuro mais diverso, cheio de possibilidades e da esperança, como diria Paulo Freire:

 … É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…

Um panorama de gênero e tecnologia no Brasil 

A internet e a tecnologia, por seu potencial (re)inventivo, foram vistas por muitos como um “outro espaço”, recebendo inclusive um nome específico: ciberespaço. Essa noção de um território ficcional construído pela interação do ser humano com a tecnologia, a partir das possibilidades de criar novas identidades se utilizando de avatares, emojis, e até mesmo da “ocultação” da identidade offline, atrasou muito a análise da tecnologia a partir de marcadores identitários sociais, construindo e alimentando abismos dialógicos. Muita gente se acostumou, por exemplo, a pensar o mundo online como um território separado e ocupado apenas por pálidos homens brancos jovens cis magros, ao estilo “Neo” de Matrix. 

Todavia, como apontam Valente e Néris, nos últimos anos, tem-se avançado na percepção de que “A divisão entre o ‘real’ e o ‘virtual’ pode ser uma armadilha metodológica para compreender a experiência humana transformada reiteradamente pelo domínio do tecnológico, já que, nos parece, a experiência não, é algo que se possa cindir.”.

Essa mudança de percepção entre real versus virtual se dá especialmente como resposta às crescentes  violências na internet contra grupos sociais vulnerabilizados. Ou seja, em termos práticos, não há uma descontinuidade nas desigualdades e violências: como gênero, raça, sexualidade e classe, que são marcadores sociais de desigualdade tanto com quanto sem a tecnologia digital

Seguindo os estudos da professora estadunidense Kimberle Crenshaw, ao olharmos o panorama de Gênero e Governança da Internet (GI) no Brasil, é preciso não se desconectar de elementos como raça, sexualidade e classe. Afinal, como aponta a 2º Coletânea de artigos “TIC, Governança da Internet e Gênero”, emboras mulheres negras representem 28% da sociedade brasileira, elas são apenas 3% das matrículas em Engenharia da Computação, e somente 11% desse percentual está de fato trabalhando em empresas de tecnologia no país.

Segundo correlação feita pela Quem Coda Br, comparando dados obtidos e os números do Censo feito pelo IBGE em 2015, homens são 48,5% da população, mas no setor de tecnologia ocupam 68,3% dos postos; o que aponta para a inversão da proporção numérica. A mesma investigação indica ainda que as pessoas trans, não binárias, gênero fluído, genderqueer, travestis e outros que não se identificam no aspecto cis, representam apenas 2% da indústria.

Quando se trata de mulheres e tecnologia, duas principais frentes de análise são traçadas nos debates ativistas e nas produções científicas:

  1. discurso de ódio e violências online;
  2.  promoção do empoderamento feminino e mudança da cultura na Governança da Internet

Discurso de ódio e violências online

Para a identificação dessas frentes foi observado que os principais debates emergentes no FIB12 sobre gênero foram: [FIB12] Discurso de ódio contra mulheres na Internet; [FIB12] Diversidade e gênero nas TIC: agenda para inclusão e representatividade. Além disso, observei os principais temas que compõem as Coletâneas da TIC, Governança da Internet e Gênero, por ser um material do NIC.BR/CGI.BR, apontando caminhos ao debate público sobre gênero e tecnologia: 1ª Coletânea de Artigos – TIC, Governança da Internet e Gênero – Tendências e Desafios e   2ª Coletânea de Artigos – TIC, Governança da Internet e Gênero – Tendências e Desafios

Os discursos de ódio são

[…] manifestações que avaliam negativamente um grupo vulnerável ou um indivíduo enquanto membro de um grupo vulnerável, a fim de estabelecerem que ele é menos digno de direitos, oportunidades ou recursos do que outros grupos ou indivíduos membros de outros grupos, e, consequentemente, legitimar a prática de discriminação ou violência.

Discursos de ódio não são práticas restringidas ao meio online, mas encontram na internet um meio de propagação mais célere, em razão da vazão virtual de informações, e da resposta dos algoritmos ao alto engajamento que discussões online geram.

As reflexões sobre tais violências no contexto da tecnologia estão especialmente contornadas pelos debates sobre:

  1. discursos sexistas;
  2. violências sexuais online (sextorsão, pornografia da vingança; cyberstalking e outras práticas de exposição ou manipulação sexual online);
  3. violência política de gênero.

De certa forma, toda violência contra mulher motivada no fato de seu gênero no âmbito da internet é em igual medida uma violência sexista. Entretanto, utilizaremos a categoria discursos sexistas para restringir ao campo exclusivo de narrativas que questionam ou ofendem mulheres. 

Por exemplo, a indústria do eSport tem cada vez mais ganhado notoriedade, entretanto, reflete ainda a cultura de violência e sexismo relacional do mundo dos esportes, sendo também contornada por práticas de violências contra meninas, mulheres e pessoas não binárias gamers

Os discursos sexistas em tecnologia escancaram inclusive a necessidade de avançar sobre tais pautas, uma vez que não se restringe às mulheres. Nesse campo de violência, qualquer representação de feminilidade é alvo de agressões, inclusive as assistentes virtuais, como a do Google, a Siri, e tantas outras. Em 2019, um documento da UNESCO apontou que a representação de “voz feminina” nos aplicativos de assistência ajudavam a perpetuar preconceitos de gênero

Já as violências sexuais online, são práticas fundamentadas na percepção do apagamento da moral feminina a partir do viés sexual, uma vez que, enquanto para homens sexo, corpo e prazer representam poder, para a mulher representam vergonha e culpa. 

Assim, violências como o revenge porn (pornografia da vingança) tem como principais vítimas as mulheres. Além dessa prática de vazamento de nuds motivado pela vingança do término de uma relação, outra problemática que transforma a internet em um espaço hostil para meninas e mulheres é a sextorsão, condutas manipulativas em que o sujeito ativo – na grande maioria dos casos homens – utilizam imagens ou textos, que obtiveram em contato com mulheres ou por hackeamento, para chantageá-las, seja com valores financeiros, seja com condutas.

Tenciona-se ainda as relações onlines de meninas e mulheres a partir das práticas de cyberstalking, entendidas como o uso de informações onlines para a perseguição da vítima, de modo inoportuno, que a cause medo e insegurança. 

Outra prática de agressão online é a violência política de gênero, um termo cunhado para explicitar as agressões psicológicas, verbais e até mesmo físicas, sofridas por mulheres com a intenção de restringir ou dificultar sua participação política.

No Brasil, com especial destaque a partir das eleições de 2018, a internet se torna uma rede vital de disputa, o que faz com que as violências políticas de gênero, que já aconteciam antes, se tornem ainda mais acirradas. Essas violências precisam ser entendidas para além de discursos sexistas: – mesmo quando fundamentados em tais aspectos – por seus riscos à democracia. 

É preciso analisar que nesse contexto a violência independe de ideologia política, apesar de grande parte das vítimas no Brasil serem mulheres de partidos tidos como de esquerda. Nesta última eleição, por exemplo, ambas, cônjuges dos principais candidatos à Presidência da República, sofreram ataques de violência política de gênero, mesmo não estando candidatas.

Quanto as violências citadas, o direito brasileiro, especialmente o ramo penal, não tem estado inerte, pelo contrário, articula uma série de normas para a responsabilização dos sujeitos, como a Lei nº 14.132/2021 (Cyberstalking), a Lei nº 13.718/2018 (Pornografia da Vingança e Sextorsão), e a Lei nº 14.192/2021 (Violência Política de Gênero). 

Os obstáculos atuais para combater a violência de gênero podem ser percebidos de três formas: 

  1. na interpretação de tais normas; 
  2. na estruturação do Sistema de Justiça brasileiro, majoritariamente ocupado por homens (cis-hétero-brancos e de classe média alta); 
  3. na falta de promoção do empoderamento feminino no contexto das TICs e mudança na cultura da GI.

Ampliar os gêneros e a diversidade na GI

Pensar as Tecnologias da Informação e da Comunicação – TICs, perpassa, em certo modo, por analisar os contextos culturais que atravessam o uso dessas tecnologias. Em um cenário em que a TICs estão diretamente relacionadas com a Governança da Internet, é imprescindível construir um debate sobre quem assume os espaços centrais da governança, se questionando onde estão as mulheres, em especial mulheres negras e trans, nas tomadas de decisões.

Assim, falar sobre a promoção do empoderamento feminino e do câmbio na cultura da GI é assumir a necessidade de ampliar as redes de trabalho, pesquisa e ativismo sobre internet, de modo a incluir mulheres, negras e trans, não como uma cota específica, mas como vitais, com um potencial disruptivo e criativo

Nesse prisma, é preciso ter atenção ao fato de que, quando falamos em mulheres, damos ainda mais ênfase a mulheres trans, mulheres negras e pessoas não binárias, por serem a base da pirâmide social e possuírem ainda mais dificuldade de acessar e permanecer  nas universidades/espaços de profissionalização e nas empresas de tecnologia

O desenvolvimento de uma cultura que promova a emancipação feminina no meio digital, para avançar no desenvolvimento de novas tecnologias que mitiguem ou agilizem o processo de responsabilização das violências de gênero na internet, perpassa diretamente pela diversidade do quadro das empresas e organizações do ecossistema da internet

Afinal, quando se fala sobre tecnologias de IA e proteção de dados, a ausência de pessoas trans, travestis e não binárias, pode resultar em processos de intensificação de discriminação, uma vez que o desenvolvimento de tais tecnologias, feitas e pensadas a partir de dados cisgêneros, ou de um único “leque” de atributos de gênero tido como feminino/masculino, pode replicar violências, como a que ocorreu com Sasha Costanza-Chockp, identificada  como risco, por não atender os padrões de feminilidade do algorítimo de predição do escaneamento de aeroporto. 

A ausência de diversidade gera um desperdício criativo, que poderia oportunizar o avanço em inúmeras tecnologias, afinal, a ausência de mulheres negras e trans na produção e gestão de tecnologias não apenas representa o preconceito, mas o enviesamento do desenvolvimento e da criatividade tão necessárias em termos de tecnologia.

Considerações finais… ou melhor, breves aportes para aquecer a esperança

Apesar da conjuntura que ainda me desespera e me coloca em movimento preocupada com o futuro, com a governança da internet no Brasil e com os desafios para mitigar o machismo e a transfobia, o final de março trouxe alguns sopros de esperança.

O primeiro foi o lançamento da Cartilha Por Mais #Mulheres Na Governança da Internet, construída pela Campanha Mulheres na GI, uma parceria do IRIS e do IP.rec, que mapeou e divulgou o currículo de inúmeras mulheres, cis e trans, que estão articuladas e articulando a governança da internet no Brasil.

O segundo foi saber que pela primeira vez na história o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR) será coordenado por uma mulher, Renata Mielli, que, apesar de (ainda) não a conhecer, já ouvi vários elogios, então espero e sei que fará um ótimo trabalho.

E o terceiro foi um quentinho no coração mais pessoal: saber que pela primeira vez na história a delegação de Youth do Brasil para o IGF contará com uma pessoa trans não binária (essa que vos escreve) e uma travesti, sim! Entre os dez jovens selecionados para participar do IGF2023, 20% são transgêneros.

Apesar dos desafios e dos cansaços, é sempre importante lembrar que o futuro é ancestral, e a ancestralidade já somos nós, construindo agora o futuro que queremos!

Por fim, aproveito para convidá-lo a acompanhar o lançamento da 3ª edição da Coletânea “TIC, Governança da Internet, Gênero, Raça e Diversidade” do CGI.br, dia 27 de abril de 2023, às 18h30. Além disso, é sempre bom lembrar: engaje-se nas nossas hashtags #mulheresnagi e #internetdeTODES!

Escrito por

Mestrande em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR; Graduado em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho; Pesquisadore Bolsista do Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS; Mentore e ex-embaixador do Programa Cidadão Digital – Safernet Brasil; Ex-Coordenador de Práticas, Pesquisas e Extensões Jurídicas da Faculdade Católica de Rondônia – FCR (2022); Bolsista do programa sobre saúde mental para crianças e adolescentes da ASEC; Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa e Ativista Audre Lorde. Tem como área de interesse: direitos humanos, infâncias e juventudes, sexualidade, raça e gênero, intersecionalização entre tecnologia e educação para direitos humanos.

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