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A questão do Telegram sob a perspectiva da moderação de conteúdo

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14 de março de 2022

O Telegram é um aplicativo de mensagens com popularidade crescente, já presente em 60% dos smartphones brasileiros, segundo relatório publicado em fevereiro de 2022. Frente à ausência de representação legal no país e ao não estabelecimento de um diálogo com as autoridades (Tribunal Superior Eleitoral e Ministério Público Federal), seu bloqueio, pelo Poder Judiciário, tem se tornado cada vez mais provável. A principal preocupação é que seus recursos (como a criação de grupos com mais de 200 mil membros e o envio de mensagens em disparo) sejam aproveitados para a propulsão de discursos desinformativos no cenário eleitoral deste ano, intensificando o chamado Populismo Digital.

O objetivo desse post não é ser um artigo de opinião ou um texto noticiário sobre a pauta do Telegram, mas sim analisar a situação trazendo a perspectiva da moderação de conteúdo, tema de estudos no IRIS. 

Primeiro, um pouco sobre o possível bloqueio do Telegram

O possível bloqueio do Telegram tem sido um tema que suscita opiniões acaloradas. Em um contexto pré-eleitoral, muito se diz sobre a popularização de Fake News via grupos e listas de transmissão, um temor justificável após as eleições de 2018. No entanto, a palavra bloqueio traz à tona apreensões relacionadas à liberdade de expressão dos usuários, proporcionalidade e efetividade, bem como questionamentos quanto aos mecanismos legais e técnicos que possibilitem de fato essa ação. 

Nesse cenário, as opiniões favoráveis ao bloqueio chamam atenção para o fato de que os representantes do Telegram, deliberadamente, se recusam a estabelecer qualquer tipo de comunicação com as autoridades brasileiras (até o momento de publicação deste texto), destacando-se como o único grande aplicativo que não concordou em participar do acordo celebrado com o TSE, em fevereiro, para o combate à disseminação de desinformação no processo eleitoral. Diante disso, o Telegram estabelece quase um regime próprio de regras – questão que será aprofundada no próximo tópico. Apesar disso, a empresa opera em solo brasileiro, sendo detentora de dados e estabelecendo serviços de comunicações para milhões de usuários. Ademais, o aplicativo – assim como muitos outros apps de mensagens ou redes sociais – comporta grupos deliberadamente antidemocráticos, os quais defendem discursos fascistas, xenofóbicos, antivacina, pró-ditadura, dentre tantos outros temas que podem ser encontrados por meio de uma simples busca no navegador do aplicativo. Um outro argumento pró-bloqueio é que o Telegram é apenas um dos meios de comunicação ao qual temos acesso, de maneira que sua suspensão não implicaria na impossibilidade de se comunicar nos meios virtuais. 

As opiniões contrárias ao bloqueio, por sua vez, chamam atenção para o fato de que bloquear o aplicativo não seria uma resposta instantânea para as questões em jogo, além de que, seria possível realizar estratégias técnicas para utilizar o aplicativo em território brasileiro mediante troca de VPN (Virtual Private Network), usando uma rede privada de outro país. Ademais, conforme afirma Paulo Rená, apesar dos usos ilícitos, o Telegram comporta também diversos usos lícitos, de maneira que todos os usuários pagariam o preço por apenas uma parcela deles, destacando o caráter abusivo da medida. Ainda, não há consenso quanto ao mecanismo legal que possibilita o bloqueio, havendo especialistas que se manifestam inclusive quanto à inexistência de uma previsão legal. 

E como fica a moderação de conteúdo?

Para introduzir a discussão sobre moderação de conteúdo, voltamos a uma das questões apresentadas por aqueles que defendem o possível bloqueio do Telegram: a ausência de resposta pelos representantes e a aparente criação de um regime próprio de regras. Apesar da notável resistência à comunicação com as autoridades brasileiras, o Telegram de fato desenvolve suas próprias diretrizes e políticas de plataforma de maneira lícita. Isso porque o regime regulatório de moderação de conteúdo apresentado pela plataforma é a autorregulação.

Explicando sobre os modelos de regulação, é possível dividi-los em três categorias principais: autorregulação, heterorregulação e corregulação. O primeiro é aquele em que as plataformas, enquanto agentes privados, podem tanto desenvolver suas diretrizes internas de regulação como aplicá-las, conforme suas preferências. É o modelo preponderante de moderação de conteúdo das grandes plataformas, em que os provedores detêm autonomia e liberdade para aplicar também suas próprias lógicas algorítmicas sem a interferência de outros agentes.

O segundo modelo se trata da heterorregulação, regime em que, quem aplica as regras de moderação é um agente externo a quem está sendo regulado. É o caso dos cenários em que os governos decidem como serão as políticas de cada plataforma.

Por fim, na corregulação, o agente que é regulado participa da moderação de conteúdo, desenvolvendo e aplicando também as regras em questão – mas não o faz de maneira autônoma. As autoridades agem em conjunto aos agentes privados. Esse modelo corregulatório, por sua vez, é defendido nos Princípios de Santa Clara e costuma ser visto como uma via alternativa e equilibrada para a moderação de conteúdo – embora ainda não muito explorado no campo teórico e prático.

Feita essa exposição, voltamos ao Telegram. O aplicativo está inserido no grande conjunto das plataformas denominadas autorregulatórias, ou seja, que desenvolvem, decidem e aplicam suas regras internas sem a participação de agentes externos – elas se autorregulam. Não por acaso, este é o regime de moderação de conteúdo mais criticado – dentre os três apresentados. No entanto, o poder comercial que as plataformas possuem enquanto grandes empresas de mercado é um dos fatores que faz com que esse regime se mantenha predominante, visto que, ceder a uma regulação externa, é também ter interesses econômicos afetados

Uma vez compreendido o regime regulatório no qual está inserido o Telegram, cabe refletir sobre o que pode ser realizado e por quem. Apesar da autorregulação, enquanto plataforma e empresa que opera no Brasil, o aplicativo se sujeita às autoridades e à legislação nacional, de maneira que, o não estabelecimento de qualquer comunicação afeta questões jurisdicionais. Nesse âmbito, embora as autoridades brasileiras não possam, elas mesmas, alterar as políticas internas do Telegram, uma vez efetivado o diálogo, há a possibilidade da indicação de medidas positivas, seguida pela implementação, pelos provedores do aplicativo. Foi o que aconteceu, por sua vez, com o WhatsApp que celebrou, em conjunto ao TSE, um acordo para combate à desinformação nas eleições de 2022. Outro exemplo é o caso do Facebook e Instagram, que firmaram uma parceria com o Tribunal para o mesmo objetivo, o que envolveu a criação de um canal de denúncias diretamente ao TSE.

Acompanhando os desdobramentos

Seja pró ou contra o bloqueio, é importante ter em mente que o Telegram não é um vilão, mas uma ferramenta de comunicação: um aplicativo de troca de mensagens instantâneas. É preciso, assim, desenvolver um senso crítico para analisar as ações antidemocráticas que têm o aplicativo como canal e qual a melhor maneira de efetivar a regulação e enfrentar as questões intensificadas pela sociedade em rede.

 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração de capa adaptada do Storyset.

Escrito por

Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente mestranda em Direito Internacional Privado, pela mesma instituição. Integrante do projeto de pesquisa sobre moderação de conteúdo na internet. É coordenadora do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual (GNet). Tem como áreas de interesse: Direito da internet, Direito Internacional Privado e Direito Político.

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