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Entenda o que é Populismo Digital e como ele tem afetado nossas decisões

Escrito por

29 de novembro de 2021

Líderes políticos têm se tornado heróis. Como provimento, carregam discursos com promessas capazes de salvar a sociedade contra males comuns, sejam eles a corrupção, a pobreza, o desemprego ou qualquer outra injustiça social. Contra eles, existe sempre a figura dos ditos vilões, opositores a qualquer avanço social e incumbidos de manipular e atrasar o povo, afetando sua soberania com palavras de enganação e mentiras.

Esse cenário, apresentado em tom ilustrativo, constitui o discurso populista em sua forma típica. Assim, embora já tenha permeado contextos históricos diversos, sua disseminação via internet na contemporaneidade garante-lhe atributos e elementos inéditos, que, por sua vez, fazem surgir uma nova categoria: o Populismo Digital.

Nesse post, irei abordar as principais características desse fenômeno, bem como sua relação com o capitalismo de vigilância, com a disseminação de fake news e as práticas de moderação de conteúdo na internet pelas plataformas.

Contextualizando o Populismo Digital 

 O Populismo Digital pode ser definido como um fenômeno político na qual o uso das plataformas e demais recursos da internet são utilizados para a propulsão de discursos populistas de caráter antidemocrático

Para a visualização desse fenômeno na prática, basta refletir sobre o uso das plataformas Twitter e Facebook por líderes políticos como Jair Bolsonaro, atual presidente brasileiro, Donald Trump, ex-presidente estadunidense e Santiago Abascal, presidente do partido político espanhol Vox, de extrema direita. Através das redes sociais, eles propagam, continuamente, discursos desinformativos de caráter racista e xenofóbico, os quais apresentam alto impacto político e demonstram seu viés populista principalmente através de narrativas de salvação da sociedade (por vezes implícita) e nas lógicas dicotômicas, em que um grupo ou personalidade se torna um inimigo comum, além de responsável úncio por questões sociais diversas.

Assim, eventos como a invasão ao Capitólio em Washington (EUA) após a derrota de Trump nas eleições presidenciais estadunidenses de 2020 demonstram o impacto político e o caráter manipulador que alguns posts podem apresentar. No caso em questão, os tweets do ex-presidente culminaram no banimento de sua conta, pelo Twitter, ao passo que incitavam atos de violência e deslegitimavam os resultados da eleição presidencial – um ataque direto ao Estado Democrático de Direito.

Outro caso a ser levado em consideração é quanto às manifestações do presidente Bolsonaro frente à pandemia do Covid-19. Características antidemocráticas do Populismo Digital são observadas nos pronunciamentos virtuais do presidente brasileiro, tal como a criação de opositores ideológicos – que devem ser combatidos – e, assim, o caráter dicotômico de seus discursos, A partir disso, elementos como a não responsabilização do Estado, o caos informacional e a normalização das contradições são fortalecidos.

De acordo com a autora Anne Applebaum, em seu livro O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política, as estratégias utilizadas nesses contextos se apropriam das mídias sociais para a criação de uma busca pelas sensações de unidade, harmonia e tradição. Através dessas falas, tais líderes políticos conseguem atrair indivíduos incomodados com qualquer tipo de complexidade social e em busca de uma ordem tradicional e conservadora. Em conjunto, os algoritmos das mídias são aproveitados para a popularização de falsos discursos que, por sua vez, oferecem aquilo que seus leitores desejam ler. Como resultado, há uma radicalização de grupos sociais e suas representações, aumentando a polarização das redes e, logo, dos usuários. Vejamos mais sobre esses pontos:

Populismo Digital e Capitalismo de Vigilância 

Para uma apresentação ou retomada do conceito de Capitalismo de Vigilância, sugiro nosso post que pode ser acessado aqui.Em linhas gerais, o fenômeno – que tem a pesquisadora de Harvad, Shoshana Zuboff, como expoente – nomeia uma lógica de acumulação inédita, em que o lucro não é mais o objeto final. Nesse sistema, os dados se tornaram o novo objeto de cobiça, e o Big Data, um componente fundamental. Assim, a própria cotidianidade se tornou uma estratégia de comercialização, submetendo os usuários à lógicas de coleta, extração e agenciamento de dados que culminam em um controle de comportamentos, fazendo surgir novas modalidades de mercantilização e monetização.

A relação desse fenômeno com o Populismo Digital, por sua vez, está na influência exercida diante da maneira como os discursos populistas são veiculados nas plataformas, além de como os usuários se deparam com tais (de maneira estratégica) e, ainda, quem lucra com esse movimento.

Vemos assim que posts que alcançam, de imediato, uma grande repercussão, seja por seu caráter polêmico, controverso ou mesmo equivocado, são incentivados pelas redes a um compartilhamento contínuo, de maneira a continuar atingindo diferentes públicos. Esse fluxo, por sua vez, é guiado por filtros bolhas, o que aumenta sua capacidade de atingir usuários interessados e, assim, reverberar em grupos específicos. O resultado disso, por sua vez, é uma rede polarizada e usuários incentivados a uma hiperpartidarização. Do outro lado, as plataformas lucram, visto que o conteúdo é recebido por grupos interessados que mantém a popularidade e o alcance das publicações.

Por fim, temos que nosso engajamento em conteúdos virtuais é incentivado por uma lógica implícita, a qual se apodera de informações que vão desde o número de likes e compartilhamentos que geramos para um conteúdo específico até o tempo gasto em cada post e o número de clicks efetuados em certo website. Concluímos assim que não é por acaso que, durante períodos eleitorais, por exemplo, nossas comunidades de amigos nas redes sociais parecem atingir um consenso e nossos feeds ecoam posts que nos levam a pensar que alguns candidatos seriam mais ou menos populares do que na verdade são. Quem nunca levou um susto ao ver uma notícia ou presenciar uma conversa entre estranhos que demonstrou o quão opiniões aparentemente ultrapassadas são na verdade bastante comuns e ainda presentes na sociedade? Vemos assim que as informações que chegam até nós nos meios virtuais contemplam apenas uma pequena parcela do todo em que estamos inseridos.

Populismo Digital e Fake News

No contexto de popularização de discursos populistas, não por acaso, notícias falsas e conteúdos desinformativos tornam-se frequentes nas redes. Sua influência é tão notável que, nas eleições brasileiras de 2018 e estadunidenses de 2016, as fake news atingiram uma popularidade inédita, tendo sido consideradas como ferramentas essenciais para a tomada de decisão de muitos eleitores e, de acordo com alguns estudos , como determinantes para o resultado das eleições.

Para entender a relação do Populismo Digital com as fake news, é preciso antes considerar que ambos os fenômenos, em suas versões originárias – o populismo e a propulsão de notícias falsas – são anteriores à contemporaneidade. No entanto, com a adoção da internet como canal, passam a adquirir características inéditas, transformando sua estrutura e alcance. Dentre elas, a viralidade, alocação estratégica e ressonância, elementos garantidos por fatores únicos das redes, tal como a possibilidade de enviar mensagens por listas de transmissão, as publicações em anonimato, o compartilhamento induzido pelos filtros bolhas, câmaras de eco e pelas lógicas algorítmicas de cada plataforma. 

Dessa forma, no contexto do Populismo Digital, tem-se que o apelo popular é um dos elementos principais dos discursos dos líderes políticos. Assim, em prol de alcançar um maior apoio e alcance, suas falas dicotômicas e controversas abrangem questões que se sobrepõem ao cenário político, contemplando crenças pessoais, emoções, preconceitos e demais recursos discursivos e psicológicos para a criação de um vínculo com o eleitorado, construindo assim a imagem de um líder próximo do povo e contrário aos ditos inimigos comuns

Essas falas, muitas vezes expressas em posts nas redes sociais (espaços em que há comunicação direta com os indivíduos, sem quaisquer intermediações), dão margem à propulsão de conteúdos desinformativos por diferentes agentes, que vão desde os próprios líderes políticos até o povo. Além disso, como oposição à mídia tradicional, muitos líderes populistas contemporâneos acusam variados canais de informação como fontes de fake news, a exemplo do ex-presidente Donald Trump que, desde a criação da sua conta no Twitter (em 2015) até janeiro de 2020, , utilizou o termo fake news em 647 tweets, majoritariamente fazendo referência a canais da mídia tradicional estadunidense, como The New York Times e The Washington Post (você pode conferir a pesquisa aqui). Observa-se assim que a desconfiança para com a mídia é um elemento recorrente nos contextos do Populismo Digital, a qual costuma ser acompanhada pela descrença e desafeição em relação às instituições públicas, gerando um cenário político frágil na qual os indivíduos encontram-se mais susceptíveis a acreditar em narrativas falsas e, assim, contribuir para que tais atinjam um maior alcance.

Nesse panorama, torna-se válido fazer referência ao autor Evgeny Morozov, em Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Para o acadêmico, a popularização das fake news se trata de uma consequência da sociedade atual, na qual há a persistência de democracias imaturas e a transformação de práticas de todos os vieses em ativos rentáveis. Assim, a própria disseminação de narrativas falsas se torna parte desse contexto, uma vez que compartilhar notícias com caráter viral é algo lucrativo para as plataformas e demais agentes inclusos nesse sistema. Com essa reflexão, por sua vez, torna-se possível enxergar uma relação direta com os elementos e consequências do Capitalismo de Vigilância.

Moderação de conteúdo pelas plataformas

Como publicado recentemente em nosso post , a moderação de conteúdo não é apenas a decisão do que será removido das plataformas. Antes, é qualquer tipo de seleção de conteúdo para com os usuários, envolvendo assim diferentes técnicas, a  exemplo da indisponibilização, restrição, sinalização, ranqueamento, dentre outros.

A partir disso, temos que o ato efetuado pelo Twitter ao remover a conta do ex-presidente Donald Trump trata-se de um exemplo de moderação de conteúdo. Logo, faz-se claro a relação entre essas práticas e o Populismo Digital, tendo em vista que as grandes plataformas são os principais canais para esses discursos, sendo elas quem decidem a forma como iremos acessá-los – pode ser que os conteúdos cheguem em nossos feeds mais rapidamente, com maior frequência, através de anúncios e/ou sugestões de contas para seguir e notícias para ler… tudo isso depende de como as plataformas entendem nossas interações e interesses a partir de suas lógicas algorítmicas.

Assim, como as plataformas possuem certa independência e autonomia na construção e execução de suas práticas de moderação, tornam-se importantes agentes no cenário do Populismo Digital e, indubitavelmente, no contexto da governança da internet. Dessa forma, é importante que, a despeito da busca por público e alcance, possuam políticas de comunidade que visem a uma rede livre de conteúdos desinformativos, abrangendo assim recursos específicos ao combate às fake news. Em adição, atitude essencial para uma moderação mais democrática é a transparência por parte das plataformas na criação e execução de suas práticas, principalmente aquelas que utilizam lógicas algorítmicas, facilitando assim a compreensão e aperfeiçoamento de suas técnicas. 

Nesse contexto, relembro que a transparência na moderação de conteúdo é um assunto que já foi estudado pelo IRIS no âmbito das políticas de comunidade das plataformas e das tendências regulatórias nacionais.

Por fim…

Analisar o Populismo Digital é perceber como muitos discursos políticos têm caminhado em uma mesma direção, a qual, por seu viés antidemocrático, apresenta uma ofensa ao Estado Democrático de Direito. O uso da internet, nesse contexto, é aproveitado negativamente, tornando-se uma ferramenta essencial para a popularização de discursos desinformativos e manipuladores. Assim, diante de cenários em que a confiança nas instituições e na própria política encontram-se fragilizadas, os usuários se tornam não apenas alvos, mas transmissores (mesmo que involuntários) de narrativas falsas que fortalecem os líderes populistas. 

Diante disso, a atuação das plataformas se mostra essencial para o desenvolvimento de práticas de moderação eficientes e transparentes com foco na criação de um espaço de interações democrático É preciso, por fim, que os usuários das plataformas sejam conscientes no uso das redes, atentando-se para publicações possivelmente desfundamentadas de verdade, bem como para aquelas que apresentam discursos equivocados ou manipuladores e, ainda, em como seu engajamento pode ser aproveitado – considerando o contexto do Capitalismo de Vigilância.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Escrito por

Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente mestranda em Direito Internacional Privado, pela mesma instituição. Integrante do projeto de pesquisa sobre moderação de conteúdo na internet. É coordenadora do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual (GNet). Tem como áreas de interesse: Direito da internet, Direito Internacional Privado e Direito Político.

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