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A infodemia do coronavírus: desinformação em tempos de pandemia

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30 de março de 2020

Um pouco de contexto

Desde o dia 26 de fevereiro, o Brasil convive com a nova ameaça global chamada coronavírus. Um novo vírus, que primeiro apareceu na China, e que tem provocado catástrofes de saúde pública em várias potências mundiais, como todos devem estar cientes a esta altura, já que, não apenas na TV no rádio ou nos jornais, mas principalmente nos grupos de Whatsapp, a pandemia se tornou o assunto mais comentado nas últimas semanas.

Ocorre que, justamente por causa dessa pulverização de informações possibilitada pela internet e por suas diversas ferramentas, vive-se, atualmente, um estado de infodemia. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) está se vendo dividida entre o combate ao vírus e a conscientização sobre as informações falsas que circulam sobre o assunto. “A eclosão do COVID-19 e as reações geradas têm sido acompanhadas de uma massiva ‘infodemia’ — uma superabundância de informação, algumas precisas e outras não — que torna difícil para as pessoas encontrarem fontes e orientações confiáveis quando precisam”, expressa a OMS em relatório sobre o novo coronavírus.

A OMS se vê nessa encruzilhada, tendo que dividir seus esforços entre a contenção da pandemia e o controle da desinformação sobre o tema, porque a disseminação de informações equivocadas ou que não possuem base científica podem, nessa situação, prejudicar tanto ou mais que a própria doença.

Um grande problema ocorre quando a desinformação é disseminada por pessoas influentes e de destaque na sociedade. Foi o caso, por exemplo, quando o presidente dos EUA Donald Trump publicizou um estudo que afirma que a hidroxicloroquina, medicamento comumente utilizado no tratamento de lúpus e de artrite reumatóide, teria apresentado boa resposta em pacientes com COVID-19. Ocorre que o estudo carecia ainda, do ponto de vista científico, de resultados mais robustos, considerando que a amostra de pacientes utilizada foi muito pequena, razão pela qual não poderiam os cientistas responsáveis concluírem que o medicamento seria realmente efetivo no tratamento do novo vírus. Mas Trump, ao divulgar o estudo, provocou uma onda de confiança que levou o presidente brasileiro a reproduzir a informação, o que provocou uma corrida em massa às farmácias, fazendo o medicamento esgotar rapidamente no comércio, prejudicando, assim, aqueles pacientes que necessitam do medicamento para seus tratamentos regulares para lúpus e artrite reumatóide.

Como resultado da divulgação do estudo, da corrida pelo medicamento e da ilusão de que ele traria a cura para os portadores do coronavírus, um homem morreu e sua esposa ficou internada nos Estados Unidos depois de ingerirem uma forma de cloroquina usada para limpar aquários, na tentativa de ficarem “imunes” ao vírus. No mesmo sentido, vinte e sete pessoas morreram no Irã após ingerir álcool adulterado, porque acreditaram num boato que bebidas alcoólicas curariam a COVID-19.

Além disso, aqui no Brasil o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente da República, passou a reproduzir a falácia, primeiramente levantada pelo presidente norte-americano, de que o novo coronavírus teria sido criado e espalhado de propósito pela China para derrubar as principais economias ocidentais e tomar o protagonismo mundial. O deputado trouxe para sua fala inclusive o apelido pejorativo de “vírus chinês” para desqualificar a pandemia, que passou a ser reproduzido por seus principais apoiadores, tidos como influenciadores de direita. Tal atitude do filho do presidente quase causou um incidente diplomático com a China, cujo embaixador fez questão de responder aos absurdos espalhados pelo deputado.

Como se não fosse suficiente, o presidente brasileiro faz questão de duvidar das autoridades médicas e científicas que recomendam o distanciamento social como a única forma até agora efetiva de diminuir a contaminação pelo coronavírus, incitando a população a voltar às suas atividades normais, pois, em sua visão, a economia brasileira vai quebrar caso as atividades normais não sejam retomadas imediatamente.

Isso tudo para dizer que…

Desinformação é um mal que precisa ser combatido energicamente, tanto quanto a pandemia do coronavírus. Especialmente quando a disseminação de informações falsas vem dos mais altos cargos do governo.

Esta é a primeira pandemia na era da pós-verdade. O termo, que foi considerado a palavra do ano de 2016 pelo Oxford Dictionaries, foi definido também por esta entidade como um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Portanto, pôr em dúvida as orientações das autoridades sanitárias, como faz o presidente, para evitar a propagação do coronavírus é algo muito particular dessa era da pós verdade, em que as crenças tendem a predominar em relação ao conhecimento, que é, em regra, baseado em evidências.

O conhecimento é construído com base em um conjunto de procedimentos utilizados para estudo da realidade, legitimados por instituições científicas e utilizados, nesse caso, para basear orientações e recomendações acerca da doença que ora se busca combater. A opinião, por sua vez, deriva de crenças pessoais e de percepções sobre como a realidade deveria ser. Não passa de achismo e crença popular e manifesta o princípio “acredito, logo é verdade” norteador da chamada pós-verdade.

E o que a Internet tem a ver com isso?

O problema é que os provedores de aplicação estão repletos de conteúdo baseado em crenças, muitas vezes sendo monetizado, ou seja, a pessoa responsável por sua criação está disseminando informações não necessariamente verdadeiras e sendo remunerada por isso. A remuneração se dá normalmente pela veiculação de anúncios.

Plataformas como Facebook, Twitter, Whatsapp e Youtube favorecem a replicação de boatos e mentiras. O compartilhamento do conteúdo é feito por conhecidos nos quais os usuários confiam, o que aumenta a aparência de legitimidade dos conteúdos falsos ou fabricados de acordo com opiniões pessoais. Os algoritmos utilizados pelo Facebook, por exemplo, fazem com que usuários recebam, em sua maioria, informações que corroboram seu ponto de vista, já que a “calibragem” do algoritmo é feita, entre outras coisas, pelas curtidas, pelas páginas seguidas, entre outros. Com isso, formam-se bolhas que isolam as narrativas dentro do que o usuário já está familiarizado, dificultando a descoberta ou a visualização de conteúdo diferente, oposto à sua visão de mundo.

Algumas plataformas têm tomado atitudes nas últimas semanas em relação à disseminação de conteúdo falso ou sem base científica em relação à pandemia do coronavírus. O twitter suspendeu as contas de Flávio Bolsonaro, Allan dos Santos e do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, por 12 horas, por violar as regras da plataforma, que considerou que postagens feitas pelos três poderiam pôr pessoas em risco durante essa crise do coronavírus. No mesmo sentido, o Youtube apagou vídeo do escritor Olavo de Carvalho, conhecido como guru dos bolsonaristas, em que ele afirma que a pandemia do coronavírus não existe.

Do ponto de vista legal, o Marco Civil da Internet, em seu art. 19, assegura, de forma correta, no nosso entender, a responsabilidade tão somente do criador do conteúdo, a princípio, sendo a plataforma responsável somente no caso do descumprimento de ordem judicial que determine a remoção do conteúdo questionado. Esse dispositivo legal tem o importante papel de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura de conteúdos por parte das próprias plataformas, deixando para o judiciário, a nosso ver, acertadamente, a tarefa de definir o que deve ou não ser removido e porque, no sopesamento dos diversos direitos em análise no caso concreto.

Mas o que fazer diante desse quadro?

A conclusão a que chegamos é que nós, enquanto sociedade, fomos dragados a um cenário social em que a tecnologia domina diversos aspectos da nossa vida e isso se intensificou a partir do momento em que a quarentena nos deixou em casa e transferiu quase todas as nossas atividades externas (trabalho, compras, interações sociais, entre outras) para ambientes online. É preciso educar, primeiramente. Educar as pessoas a checarem informações e a buscarem de fontes confiáveis, como a imprensa formal e os órgãos competentes, nesse caso específico, a OMS, primordialmente.

Em resumo, devemos todos prezar pela responsabilidade no compartilhamento de informações e notícias, já que, como demonstrado no início desse texto, informações falsas podem levar à morte. Em contrapartida, quando feito com consciência e responsabilidade, espalhar notícias pode contribuir para o crescimento de outras pessoas e para a construção de pontes entre uma comunidade. No mesmo sentido, devemos cobrar dos veículos de imprensa o comprometimento com a verdade e com os fatos. Em grandes crises como essa que vivemos agora, a Internet tem um grande potencial de unir propósitos, mas depende de nós a utilizarmos para este fim.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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