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“Se eu pudesse, eu corava”: TIC’s, assistentes digitais e violências de gênero

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16 de março de 2020

Pesquisas demonstram que mulheres ocupam somente cerca de 20% dos altos cargos no ramo da ciência e da tecnologia. O que acontece quando esse protagonismo é ocupado pelo gênero masculino?  A falta de incentivo e reconhecimento das mulheres no setor é um problema que começa desde a educação básica, deixando lacunas nos níveis de apropriação e habilidades para o uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs), que se somam aos estereótipos de que assuntos de tecnologia são do domínio masculino. A seguir serão discutidos os problemas que essa lacuna pode fomentar, desde a diferença de oportunidades num contexto de sociedade da informação, até a concepção e aplicação de tecnologias que contribuem para a manutenção dessa desigualdade a partir do caso de assistentes virtuais como a Siri, da Apple, a Alexa, da Amazon ou a Google Assistant, da Google.

Brecha digital e brecha de gênero

Em 2019, a UNESCO lançou um relatório sobre a desigualdade de gênero nos indicadores de letramento e habilidades para o uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs). O texto apresenta dados sobre a diferença no acesso, uso e apropriação das tecnologias levando em consideração indicadores de gênero. O documento traz informações importantes, como a permanência de um abismo entre os cargos de tecnologia ocupado por mulheres e no nível de letramento digital das pessoas considerando a variável do gênero. Segundo as estatísticas, é 25% menos provável que mulheres adquiram educação para o uso básico das TICs, as chances de uma mulher vir a ser programadora é 4 vezes menor, e, quando falamos em registro de patentes, por exemplo, há 13 vezes menos chance de ser registrada por uma mulher. Quanto maior a complexidade da atividade, maior a disparidade entre gêneros registrada pelos indicadores.

A inserção das TICs na educação das crianças é descrita pelo relatório como uma estratégia importante para superar essa desigualdade. É preciso, no entanto, que esse esforço se inicie na educação básica, e não no secundário, quando, em muitos contextos, a evasão escolar cresce. Isso pode contribuir para que haja maior interesse e oportunidades para as mulheres que desejem ingressar nas carreiras de tecnologia. Em países como o Brasil, a falta de habilidades para o uso das TICs é um empecilho para a inclusão digital. Contudo, observando-se a questão de gênero nesse cenário, é possível perceber que esse problema é maior entre as usuárias, dentre as quais é 1,6 vezes mais recorrente a falta de habilidade para uso das TICs como empecilho para o uso da internet.

Além desses e outros indicadores, o documento também apresenta problemas com tecnologias cujas configurações reproduzem violências de gênero e reforçam estereótipos. O exemplo apresentado no relatório são as assistentes digitais, cada vez mais presentes nos domicílios para o conforto dos usuários.

“Eu corava, se pudesse”

Um levantamento de 2018 demonstrou que 20% dos domicílios norte americanos já contavam com pelo menos uma máquina de assistente digital conectada. Programadas automatizar tarefas do dia a dia, as máquinas obedecem a comandos do usuário para desempenhar tarefas como ligar para alguém, pedir comida no app de delivery, acender a luz, ligar o ar condicionado, dentre outras funcionalidades que podem ser vinculadas ao aparelho. Uma das funções que atribuiu popularidade às assistentes digitais na internet é a possibilidade de interação com a máquina que está programada para responder a algumas perguntas de forma descontraída ou até mesmo engraçada. A frase que dá nome ao relatório costumava ser a resposta automática da assistente digital Siri a determinados tipos de comentário que soavam como assédio. O que parece ter sido pensado para soar como uma “piadinha”, emerge como uma evidência do imaginário sexista partilhado pela nossa sociedade. A empresa responsável corrigiu essa resposta em uma atualização em 2019, depois de oito anos de lançamento da tecnologia.

Em um texto de 1986, Winner explicita maneiras pelas quais artefatos tecnológicos podem carregar em si mesmos atributos políticos. O autor argumenta que as propriedades técnicas de um objeto manifestam escolhas políticas. Isso acontece, por exemplo, quando se traça um plano estratégico de mobilidade urbana que desenha pela cidade os locais que serão atendidos de forma adequada pelas linhas de ônibus. Apesar de se tratar de uma medida de ordem técnica, isso não se desvincula de consequências políticas, uma vez que afetará a vida de pessoas de forma diferente. No caso das assistentes digitais, fazer com que ela responda de forma tolerante e gentil a assédios, contribui para a solidificação do imaginário da mulher cordial e submissa, além de que tende a associar o lugar feminino como o da subserviência e de recebimento de ordens para o desempenho de tarefas, como seres sempre prestativos, dóceis e prontamente disponíveis.

Tem voz “de mulher”, nome “de mulher”, responde “como uma mulher”. Afinal, a inteligência artificial tem gênero?

Ao ser perguntada se a assistente digital é uma mulher, a Siri, por exemplo, diz não ter gênero, “como cactos e certas espécies de peixes”. A máquina da Google responde “eu não tenho sexo”, e a Alexa, da Amazon, responde ser uma personagem feminina. Independentemente dessas respostas, os traços de feminilidade programados pelos fabricantes são facilmente percebidos. Não há uma responsa consensual, por exemplo, sobre o porquê de as assistentes digitais manifestarem uma voz feminina, como tratado nesse texto do portal The Atlantic, ou por terem nomes tipicamente associados à mulheres.

Não é a primeira vez que são atribuídos a máquinas traços de uma concepção de feminilidade que reforça estereótipos e violências. A sexualização de robôs também já foi tema de filmes que exploram de forma mais evidente os limites cada vez mais tênues entre humano e máquina (como no filme Her, ou, no mais recente, Ex-máquina). Da mesma forma, polêmicas surgiram quando as famílias perceberam que a interação com a assistente digital dentro de casa estava afetando a forma como as crianças aprendiam a lidar com os outros. Sem que se precise dizer por favor, ou obrigado, as crianças aprendiam sobre como dar ordens, mas não como interagir com terceiros de forma polida. Após a manifestação de insatisfação de usuários, algumas empresas incorporaram ao sistema que a ferramenta agradecesse pela gentileza quando alguém se dirigisse a ela com cordialidade – usando “por favor”, ou “obrigada”. Isso nos coloca a refletir, no entanto, se isso não contribuiria para uma percepção ainda mais humanizada de artefatos tecnológicos e como isso pode alterar a forma como interagimos.

Para a autora feminista Donna Haraway, somos corpos híbridos, atravessados por nuances da natureza de cultura, do digital e do analógico, da máquina e do corpo biológico. Para a autora, isso não se expressa somente quando temos uma prótese anexada ao membro, ou nas figuras de ficção científica equipadas com artefatos super potentes, nem mesmo quando nos valemos de tecnologias para o trabalho ou para o cotidiano. Mas também quando tomamos remédios, fazemos dietas, frequentamos academias e adotamos muitas medidas de potencialização das nossas capacidades biológicas. Ferramentas de inteligência artificial como essa, que participam da nossa casa e da nossa rotina e possuem nome, uma voz semelhante a humana, que tenta responder às perguntas com naturalidade se aproximando de características humanas, nos levam a um cenário onde essas fronteiras se tornam cada vez mais opacas e tênues.

Conclusão

Ao fomentar que as mulheres aprendam e se insiram nas carreiras e mercados de tecnologia temos mais chances que, aumentando a igualdade de gênero nas equipes responsáveis por novas tecnologias, teremos produtos mais coerentes à realidade diversa e complexa que partilhamos. Isso não quer dizer que todos os problemas de desigualdade de gênero e machismo estarão, então, resolvidos, mas é um passo importante em compromisso com uma sociedade mais igualitária.

Enxergar nessas tecnologias os nossos desafios e controvérsias sociais é um caminho necessário. Não distinguimos mais entre mundo real e virtual: tudo isso faz parte de uma realidade que partilhamos. Compreender os entraves entre tecnologia e sociedade nos permitirá enxergar melhor quais são os nossos desafios, bem como perceber como eles se manifestam ao nosso redor. Só então estaremos aptos e aptas a pensar caminhos e soluções para tecnologias mais inclusivas e representativas.

O incentivo à presença das mulheres na tecnologia, seja pela carreira ou pela sua apropriação adequada, é um passo importante para o nosso desenvolvimento social e político e pode nos ajudar a superar imaginários sexistas do papel da mulher na sociedade. Que tal dar o primeiro passo? Confira a campanha #MulheresNaGovernança, que existe para trazer visibilidade e criar uma rede entre mulheres engajadas na promoção de uma internet mais positiva e inclusiva.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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