Responsabilização de intermediários: uma reflexão sobre tipologias
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Júlia Caldeira (Ver todos os posts desta autoria)
26 de março de 2025
Quando se fala sobre responsabilidade de intermediários no campo de regulação de plataformas, quem você entende como intermediário? Haveria apenas um tipo, sujeito às mesmas obrigações? Essas perguntas abrem margem para uma grande reflexão, a qual aponta para certas lacunas no contexto brasileiro.
Esse texto pretende discutir sobre isso, contemplando, em um plano maior, a busca por maneiras de tornar o meio digital mais justo e equilibrado.
Introduzindo o assunto
No dia 18 de março, o Comitê Gestor da Internet (CGI.Br) realizou o “Seminário Responsabilidade de Intermediários e Regulação de Plataformas Digitais”, em Brasília. O evento contou com quatro mesas e com a publicação de uma Nota Técnica sobre a Tipologia de provedores de aplicação, com o objetivo de classificá-los conforme o grau de interferência sobre circulação do conteúdo de terceiros, contribuindo para a correta especificação de regimes de responsabilidade.
Este texto se baseia no evento e na nota do CGI.Br, buscando comentar sobre a situação da responsabilização de intermediários em face à discussão sobre a classificações de provedores. E cabe comentar que, no blog do IRIS, esse assunto já foi discutido antes! Sugiro a leitura deste postblog para uma maior contextualização sobre o tema no Brasil.
Outro ponto importante em termos de introdução é relembrar porque essa discussão é importante. Em um cenário em que as plataformas digitais ainda não têm uma regulação específica no Brasil, abre-se margem para que os provedores de aplicação (empresas responsáveis pelas plataformas) exerçam funções diversas. Essas funções, por sua vez, transcendem a simples mediação passiva do ambiente online.
Assim, ao serem responsáveis pela moderação de conteúdo das plataformas, os provedores podem assumir um papel mais proativo. Nisso, acabam por exercer ações de intervenção no conteúdo (remoção; validação prévia; suspensão de contas) ou de curadoria (modulação de comportamentos; regulação de publicidade; segmentação de públicos). Essas ações apresentam um grande potencial de afetar e mesmo modular a experiência online do usuário. Logo, na medida em que esses papéis mais ativos podem violar direitos ou promover a violação de direitos, um regime de responsabilização adequado torna-se necessário para se alcançar um ambiente digital justo e saudável.
Responsabilidade de intermediários e o Marco Civil da Internet
O termo “responsabilidade de intermediários” (em inglês, o intermediaries liability) alcançou uma forte aderência no tema de Regulação de plataformas. Ele se refere, de forma geral, às discussões sobre responsabilizar ou não os provedores de plataformas pelos danos causados por conteúdos postados pelos usuários. Olhando mais de perto, o assunto apresenta diferentes nuances.
Primeiramente, essa responsabilização pode ocorrer não apenas devido aos conteúdos postados pelo usuário, mas devido a diferentes ações que os provedores podem (ou não) realizar, a depender do regime de responsabilização vigente. Por exemplo, nos Estados Unidos, há quem diga que as plataformas não devem se responsabilizar pelos conteúdos postados, mas sim pelas recomendações feitas por algoritmos.
O segundo ponto de atenção, por sua vez, tem relação com a nomenclatura legal que o termo “intermediário” recebe no Brasil. De acordo com o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), os intermediários são aqui classificados em dois tipos de provedores. E é aí que está o âmago da questão discutida neste texto. A lei determina que existem apenas os “provedores de conexão à Internet” e os “provedores de aplicações de Internet”, sendo que os primeiros não são responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos gerados pelos usuários, de acordo com o art. 18 do MCI.
Para fins explicativos, os provedores de conexão são aqueles responsáveis por oferecer o acesso estrutural à internet. São empresas que fornecem apenas a conexão aos usuários sejam eles residenciais, empresas e/ou órgãos públicos, atuando em três das camadas da Internet: de ligação, de rede e de transporte de dados. Por exemplo, as grandes operadoras de telefonia Claro, Tim, Vivo; pequenos provedores de conexão, como Valenet, Vero e Algar Telecom; .
Já os provedores de aplicação são as empresas ou serviços que oferecem funcionalidades no meio da internet, atuando na quarta camada, onde o amplo potencial da tecnologia se especifica em “aplicações” ou nos chamados “aplicativos”. Assim, esses provedores não fornecem apenas redes sociais, mas também serviços de e-mail, sites de notícias, aplicativos de mensagens e streaming de músicas e vídeos. Já adiantando um ponto de reflexão, é fácil de concluir que provedores de redes sociais, como X e Instagram, apresentam funções e poderes muito distintos dos provedores do Gmail ou da Netflix, por exemplo.
Dito isso, retorna-se à discussão: tal como a “responsabilidade dos intermediários (ou provedores)” envolve diferentes possibilidades de responsabilidade e responsabilizações, também é preciso pensar em quem são os intermediários ou provedores em questão. Uma vez que os provedores de acesso não podem ser responsabilizados no Brasil, o assunto se destina aos de aplicação; no entanto, existem vários deles. Devem todos ser vistos da mesma maneira, em termos legais?
A partir dessa questão surge a Nota Técnica elaborada pelo CGI.Br, a qual se destina a classificar os provedores conforme o grau de interferência diante da circulação dos conteúdos.
As tipologias de intermediários/provedores propostas pelo CGI.Br
Anteriormente à apresentação das classificações de provedores proposta na Nota Técnica, é válido trazer à tona alguns pontos importantes abordados no Seminário do CGI.Br. Na primeira mesa do seminário, Renata Mielli introduziu o tema explicando como o Art.19º não aborda especificamente sobre regulação de plataformas, mas sobre provedores de aplicações de internet; partindo disso, o CGI decide realizar o esforço para compreender o atual estágio desses agentes.
Outros pontos relevantes foram trazidos por Carlos Affonso, que destacou, primeiramente, o elemento da interferência, usado pelo CGI como fator para a classificação dos provedores – em graus. De acordo com Caff, trata-se de uma noção nova enquanto tipologia, o que pode torná-la vulnerável ou passível de más interpretações. No contexto do CGI, busca-se a classificação pela interferência com foco naqueles agentes que têm grande poder de atuação diante dos conteúdos veiculados no ambiente digital. No entanto, existem outros contextos em que a interferência pode ser debatida, a exemplo da manifestação de Mark Zuckerberg sobre as novas regras de moderação de conteúdo da Meta, em que busca-se, justamente, interferir menos – no entanto, para fins e contextos distintos.
Cabe trazer à tona que a Nota apresenta uma definição do que está sendo compreendido como interferência, a saber:
Qualquer ação tomada pelo provedor que altere a disposição, a circulação e a distribuição deste conteúdo, isto é, quaisquer ações tomadas para ampliar ou reduzir alcance, para exibir ou ocultar conteúdos.
Outra questão destacada por Caff diz respeito à maneira como a Nota aborda “anúncios, impulsionamentos e recomendação de conteúdo”, os quais são elementos que devem ser entendidos de maneira distinta, o que, de acordo com ele, não tem acontecido nos debates atuais no Supremo Tribunal Federal. Em sua visão, algoritmos de recomendação estão presentes em vários ambientes, o que é diferente de plataformas que recebem para fazer anúncios ou impulsionar conteúdos.
Dito isso, avança-se para a apresentação e análise das tipologias propostas; tais são: provedores de aplicação com funcionalidade sem interferência; de baixa interferência e de alta interferência. Assim, os primeiros se definem por serem simples meios de transporte e armazenamento, a exemplo de aplicações de certificação, hospedagem de sites, envio e recebimento de e-mail. O segundo tipo, por sua vez, são representados por funcionalidades que atuam sem o emprego de recomendações baseadas em perfilização e com reduzida capacidade de geração de riscos, a exemplo de aplicações como edição de artigos e verbetes e registro histórico. Por fim, o terceiro tipo diz respeito a atividades de risco, uma vez que envolvem técnicas de coleta e tratamento de dado para perfilização, difusão em massa, recomendação algorítmica, microssegmentação, impulsionamento, publicidade direcionada, etc. Como exemplos, estão os sistemas de veiculação de anúncios e propaganda progmática.
A partir das tipologias propostas, observa-se como elas se relacionam com o modelo de negócios das plataformas e, logo, com as ações executadas por cada provedor. Delimitar e ressaltar essas diferenças é um caminho necessário e, inclusive, já adotado em outros modelos. A Diretiva do Comércio Eletrônico da Comunidade Europeia (Diretiva 2000/31/CE), é um exemplo citado na Nota Técnica, uma vez que faz uma gradação dos regimes de responsabilidade para diferentes tipos de provedores, mencionando os serviços de acesso, de simples transporte ou armazenagem temporária, bem como plataformas online de grandes dimensões.
Paulo Rená participou do Seminário do CGI e ressaltou o princípio do Devido processo no campo, o qual vem sendo defendido pelo IRIS enquanto requisito de uma moderação de conteúdo adequada (para saber mais sobre esse tema, confira materiais como esse relatório; esse guia informativo e esse blogpost). Rená explicou que, de acordo com esse princípio, defende-se a existência de regras legais específicas, bases jurídicas abrangentes disponíveis e a positivação de regras legais específicas para ampliar o acesso.
Em vista a isso, a especificação da categoria de “provedores de aplicação” pode ser interpretada como uma aplicação do princípio do devido processo, na qual se estabelece um conjunto de regras específicas para então ser realizada uma classificação que, por sua vez, distingue os limites da consequente responsabilização de cada tipo de provedor.
Considerações finais
Apesar da proposta de tipologia apresentada pelo CGI ser um importante passo no âmbito da responsabilidade de intermediários, é preciso ter em vista que não se trata de uma solução universal. Pelo contrário, novas questões vêm à tona, a exemplo dos muitos agentes que se enquadram enquanto provedores de aplicação de alta interferência a partir de diferentes ações, o que pode vir a acarretar a necessidade de regras ainda mais específicas.
Outra questão vindoura diz respeito às formas de responsabilização que essa tipologia pode trazer à tona e as consequentes reações dos agentes envolvidos. Independente disso, é preciso frisar que a pauta de Regulação de plataformas deve ser um ponto de atenção no Brasil. Discutir a respeito e pensar em novos caminhos e soluções é essencial para a construção de um ambiente digital melhor.
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Júlia Caldeira (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Direito Internacional Privado, pela mesma instituição. Integrante e liderança de projeto na área de Inclusão digital. Tem como áreas de interesse: Moderação de conteúdo, Inclusão digital, Populismo digital e Direito Político.