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Algoritmos de distribuição de processos: Entre a opacidade e a demanda por transparência

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11 de setembro de 2018

O Supremo Tribunal Federal lançou, em maio deste ano, um edital para avaliação e aperfeiçoamento de seu algoritmo de distribuição de processos. Esse sistema é responsável por atribuir, por meio de sorteio, as causas aos ministros que serão seus relatores. Este post discute algumas das questões envolvendo transparência e segurança no uso de algoritmos para a distribuição de processos pelo Poder Judiciário.

 

A distribuição de processos e os algoritmos

Uma das bases do Estado Democrático de Direito é a expectativa de que os julgadores sejam independentes e imparciais em relação aos casos que julgam.

Para julgar determinado processo, o magistrado deve ter competência objetiva (atribuída previamente pela lei) e capacidade subjetiva (ausência de vínculos pessoais com as partes e de interesse nos resultados dos processos). Tais condições são garantidas por princípios como o do juiz natural (art. 5º da CF, incisos XXXVII e LIII) e da imparcialidade (garantido nas hipóteses de suspeição e impedimento do CPC).

É vedado, portanto, às partes decidir sobre o julgador do processo, e aos magistrados decidir sobre quais processos exercerão julgamento.

Na distribuição de uma nova ação judicial, verifica-se inicialmente se há alguma condição especial que demande sua atribuição a um juiz específico. Isso ocorre, por exemplo, quando a ação se encontra legalmente conectada a alguma causa que já foi atribuída a um certo juiz (regra de prevenção do juízo). Caso não haja condição especial, a distribuição deve ocorrer de forma alternada e aleatória, podendo ser feita por via eletrônica (art. 285 do CPC, caput).

Como alerta o professor Dennys Antoniali em entrevista para o podcast Caixa-Preta, não somente o STF, mas grande parte dos tribunais estaduais do Brasil realiza o sorteio eletronicamente. Muitos desses algoritmos tem código fechado, o que significa, em linhas gerais, que o código-fonte que controla seu funcionamento não está disponível publicamente.

Isso levanta diversas questões relativas ao funcionamento desses sistemas. Quais critérios são considerados pelo algoritmo? Como podemos ter certeza que a atribuição é, de fato, aleatória e alternada? Quem tem acesso ao código e quem o executa?

 

Entre a opacidade e a demanda por transparência

Antes de lançar edital para avaliação de seu sistema, o STF ignorou e negou pedidos realizados por meio da Lei de Acesso à Informação para acessar o código-fonte do algoritmo, alegando não haver “previsão normativa” para tais pedidos. O Superior Tribunal de Justiça também já afirmou que “no intuito de mitigar os riscos de ataques ao código em referência, em virtude da criticidade e sensibilidade da operação processual, o STJ reserva-se ao direito de não divulgá-lo”.

Dessa opacidade decorrem problemas, pois em processos de grande importância social, como as ações julgadas em tais tribunais frequentemente são, a definição do relator influencia amplamente o andamento do processo. É sabido que alguns ministros têm posições declaradas abertamente sobre determinados temas, e também vínculos pessoais com pessoas que eventualmente podem ser parte em ações que o tribunal julgará.

A idoneidade da distribuição processual está relacionada, portanto, com a integridade do devido processo legal. Por esse motivo, ela tem especial relevância democrática.

 Ademais, a recomendação de abertura do código encontra amparo na lei 11.419/2006 (art. 14º, caput), a qual prevê o uso preferencial de programas de código aberto nos sistemas desenvolvidos pelo Poder Judiciário. Destaca-se também que não existem incentivos competitivos para a não-abertura do código, como ocorre em software proprietário. Finalmente, há o fato de tais algoritmos serem desenvolvidos e mantidos com verba pública, o que sustentaria a legitimidade de sua abertura.

 

O problema da segurança por obscuridade

Num debate de tamanha relevância também devem ser considerados argumentos técnicos de segurança da informação. Embora a abertura nem sempre seja a melhor opção para a segurança, sistemas cujo código é aberto apresentam algumas especificidades em relação àqueles cujo código é fechado. Eles podem, por exemplo, ser auditados por pesquisadores, o que facilita a identificação de vulnerabilidades, bugs e distorções em relação a seu funcionamento pretendido.

Além disso, não se pode assumir que o ocultamento do código seja, em si mesmo, uma proteção eficaz contra ciberataques. Atacantes sem acesso ao sistema, mas com conhecimento técnico suficiente, não raramente são capazes de identificar vulnerabilidades exploráveis em sistemas fechados. Além disso, é comum que ataques bem-sucedidos sejam realizados por pessoas com acesso ao sistema, como funcionários insatisfeitos, por exemplo.

Se o desconhecimento presumido do atacante em relação ao sistema é o único ou o principal recurso para garantir a segurança, fala-se (usualmente de forma pejorativa) de segurança por obscuridade ou segurança pelo desconhecimento. O professor Vinicius Serafim exemplifica esse conceito com a seguinte situação: alguém sai de casa e deixa a porta destrancada, assumindo que o desconhecimento de terceiros em relação à condição da porta e a seus pertences bastará como proteção.

Quando a obscuridade é articulada a medidas sólidas de segurança, ela pode ter um papel protetivo importante. Em sistemas completamente fechados, porém, a sociedade não consegue saber quais medidas são empregadas.

 

Conclusão

Os algoritmos de distribuição de processos são desenvolvidos e operados por órgãos públicos. Esses sistemas tem especial relevância democrática e social, pois sua confiabilidade está relacionada à credibilidade do próprio Poder Judiciário. A defesa da abertura de seus códigos-fonte encontra sustentação em argumentos de ordem política, jurídica e técnica. Trata-se de uma questão de transparência, segurança e democracia.

Neste sentido, há iniciativas em curso buscando efetivar tal abertura. O projeto de lei 8503/2017 do deputado Edmilson Rodrigues (PSOL/PA), por exemplo, visa alterar a Lei de Acesso à Informação para, dentre outros, tornar obrigatória a abertura dos códigos-fonte desses algoritmos. A própria avaliação convocada pelo STF foi um passo positivo neste sentido. Resta esperar agora que outros órgãos sigam pelo mesmo caminho, rumo a maior transparência nas relações entre o Poder Judiciário, a sociedade civil e a tecnologia.

Gostou do post sobre algoritmos de distribuição de processos? Agora entenda melhor as relações do Poder Judiciário com as novas tecnologias em nosso post sobre o tema.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.

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