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Internet e Sociedade: visibilidade e relevância das pessoas pretas

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21 de novembro de 2022

No Brasil, novembro se estabeleceu como mês dedicado ao enfrentamento do racismo, tendo como ápice a data de 20 de novembro, denominada oficialmente desde 2011 como “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra“. Nessa oportunidade, e a partir de quatro momentos de minha experiência pessoal, ofereço uma reflexão a respeito da participação de pessoas negras na governança da internet e em outros debates sobre tecnologia digital e sociedade.

Quem somos e onde estamos?

Em julho de 2020, ao final da gravação do episódio 245 do podcast Segurança Legal, ressaltou-se a importância de mais diversidade entre participantes de videoconferências e as famigeradas lives, tão comuns durante a pandemia. Em especial, agradeci aos amigos do podcast por me convidarem para falar sobre um tema em que sou pesquisador atuante.

Era ano de eclosão do Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd, e eu já vinha me incomodando ao reparar nas imagens de divulgação que praticamente só havia pessoas negras se o assunto central fossem as dificuldades do racismo. O lugar de fala importa, e o protagonismo do enfrentamento à discriminação e ao preconceito deve ser valorizado. Mas parte central de uma postura antirracista envolve assegurar que não tenhamos voz apenas nesse assunto. Afinal, a voz das pessoas negras deve ser ouvida em todos os assuntos, inclusive quando se trata de internet e sociedade.

Mas não se pode ignorar o obstáculo do apagamento e da invisibilização. É muito mais fácil encontrar e acessar pessoas brancas interessadas e disponíveis. Por isso, participei da elaboração de uma [Lista para diversidade de Gênero e Raça em Direito e Tecnologia], com recorte interseccional de nomes que poderiam ser chamados para tratar dos muitos assuntos relacionados a direito e tecnologia: fake news, proteção de dados pessoais, LGPD, Marco Civil da Internet, cibercrimes, criptografia, blockchain, bitcoin, comércio eletrônico, direito autoral, inovação, inteligência artificial, big data, privacidade, liberdade de expressão, redes sociais, segurança da informação, entre muitos outros.

A lista deve ser atualizada em breve, como parte de um projeto do qual passei a fazer parte logo em seguida.

Como problematizar a questão racial em tese?

Ao final de 2021, na busca por incluir mais pessoas negras na [Lista para diversidade…], acabei conhecendo alguns nomes incríveis, cujo trabalho maravilhoso eu simplesmente desconhecia. Entre os destaques, soube de celebridades como Mara Karina e Nina da Hora; percebi como negras pessoas amigas como Ana Camelo, Gabriel Sampaio, Marcos Urupá e Natália Neris; fiquei encantado com a energia da Bianca Kremer, do Diego Cerqueira e da Karolyne Utomi; e me atualizei sobre as produções muito relevantes de Pablo Nunes e Tarcísio Silva, os quais acabaram me colocando em contato com um grupo de pessoas negras que estava se organizando justamente para racializar a discussões sobre direito e tecnologia: a ong Aqualtune Lab, batizada em homenagem à princesa africana escravizada no Brasil, uma das líderes do Quilombo dos Palmares, e avó materna de Zumbi.

Passados dois anos desde que passei a interagir informalmente pelo WhatsApp, hoje sou co-Diretor na organização. Alcançamos algumas conquistas básicas na nossa estruturação formal, chegamos à quarta edição do nosso curso de Formação Antirracista No Direito E Na Tecnologia, e produzimos alguns materiais temáticos, com destaque para o Documento Preto I, com contribuições para o debate sobre regulação de Inteligência Artificial no Brasil.

Tenho muito orgulho de contar com parcerias incríveis na construção desse âmbito virtual e presencial de aquilombamento, em que posso dedicar energia para refletir de modo específico sobre a questão racial. Mas como eu mesmo disse acima, é necessário que as pessoas negras tenham oportunidades de atuação livre, em quaisquer das muitas áreas de conhecimento – incluindo as várias facetas do universo da governança da internet.

Como respeitar a questão racial na prática?

Foi então que no final de 2021 me vi divulgando vagas incríveis, exclusivas para pessoas pretas, em uma seleção de pesquisadores bolsistas para o Instituto de Referência em Internet e Sociedade, com a missão de “explorar, estudar e entender os impactos da internet sobre a sociedade contemporânea: seu desenvolvimento, suas dinâmicas, suas normas e seus padrões“. Apenas no último dia do prazo percebi que eu também poderia me inscrever, e qual não foi minha surpresa ao ser escolhido, juntamente com as incríveis Fernanda Rodrigues e Rafaela Ferreira.

Sem exagero, é o melhor lugar em que já trabalhei desde a minha primeira experiência remunerada, em 2000, dando aulas particulares enquanto ainda estudava para o vestibular. Com a vantagem de se tratar de um centro de pesquisa pequeno e com já alguns anos de atuação, o grande diferencial do IRIS é o enorme respeito efetivo às condições de trabalho, cuidando ao máximo para assegurar um ambiente agradável e muito humanizado. Esse fator se reflete também na busca por diversificar o olhar, por incluir mais vozes, e por promover a equidade na equipe. Além dos recortes de gênero e orientação sexual, a quantidade de pessoas negras no instituto é um motivo pessoal de orgulho.

Nesse sentido, encontro no IRIS um espaço absolutamente único, uma bolha ideal, na qual posso direcionar meus esforços para o que mais gosto de fazer: pesquisar e atuar na temática da governança da internet. E nesse contexto, nem preciso problematizar em palavras a questão racial, pois a simples existência do meu corpo negro basta para fazer de mim uma pessoa que questiona, na prece do filósofo pan-africanista Frantz Fanon ao final de seu livro de 1952, Pele Negra, Máscara Branca. Ao mesmo tempo, tenho plena consciência de que se trata de um privilégio muito excepcional, até porque frequentemente sou lembrado da realidade nada inclusiva do mundo “lá fora”.

Como articular pequenas resistências significativas?

Na metade de 2022, o Fórum da Internet no Brasil foi muito catártico. Era a primeira vez, desde o início da pandemia, que a comunidade multissetorial brasileira se reencontrava presencialmente para debater a governança da internet. Foi bastante significativo perceber o crescimento da presença de pessoas negras no evento, em decorrência direta da política da organização de valorizar propostas de painéis e oficinas que expressem a pluralidade, não apenas em termos dos setores acadêmico, empresarial, governamental e cívico-social, mas também em relação a regionalidade, raça e gênero. Ainda assim, mesmo com todas as condições favoráveis, é notável a hegemonia de pessoas não-negras no evento. O claro padrão da branquitude é percebido como universal, evidenciando o racismo estrutural que tanto marca a sociedade brasileira.

A fim de viabilizar alguma forma de reflexão crítica, e obviamente animado pelos humores do Aqualtune Lab e do meu ingresso por cotas no IRIS, resolvi criar um grupo Telegram só para pessoas negras que participariam. Somamos 25 pessoas, em comparação com as 162 do grupo para todas as pessoas do FIB 12. Conseguimos nos reunir para um breve almoço de conversa estratégica, e após o evento seguimos compartilhamos oportunidades e dicas.

Como resultado prático é quase nada. Mas simbolicamente, essa experiência permite alguns ensinamentos mas, principalmente, levanta muitas questões sobre como viabilizar o antirracismo no contexto dos debates sobre internet e sociedade.

O antirracismo é um imperativo da democracia

2022 trouxe uma crucial renovação política da esperança em um Brasil democrático. Mas, como afirma o mote da Coalizão Negra por Direitos, “enquanto houver racismo não haverá democracia“. De igual modo, a diversidade, pluralidade e vibração comunitária depende de as pessoas que se preocupam com o presente e o futuro da internet abraçarem a causa do antirracismo como um tópico social central.

A desumanização, a invisibilidade, o apagamento, o preconceito e a discriminação são aspectos de uma ampla chaga geral, que se manifesta de modo bastante peculiar no contexto da internet, especialmente considerando todas as promessas utópicas de revolução imaginadas nos seus anos iniciais. Assim, do reconhecimento facial na segurança pública à regulação das plataformas digitais, passando pela inteligência artificial e a proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes nas escolas: todos os temas ficariam mais completos se contassem com a contribuição ativa de vozes e perspectivas negras. Tenho boas referências e tive algumas conquistas pessoais, mas qualquer mudança social  efetiva extrapola qualquer experiência individual.

Embora tenha muita facilidade em afirmar que o racismo ainda não é percebido por todo mundo como um problema sério, não tenho nenhuma pretensão de sugerir respostas prontas sobre como resolver o problema, nem mesmo sobre como convencer as pessoas em geral a admitir a necessidade de enfrentar o problema. As situações favoráveis decorreram de pessoas e grupos que assumiram sua responsabilidade e, seja indo à luta e arriscando muito, seja se valendo de seus privilégios, contribuíram para a luta. Pequenas mudanças são importantes e simbólicas, mas qualquer mudança social estrutural exige compromissos coletivos.

De minha parte, pretendo apenas que esse texto possa servir de inspiração para outras pessoas negras se engajarem e se reconhecerem nos esforços antirracistas; e de pulga atrás da orelha para todas as pessoas não-negras, tão beneficiadas pela estrutura racial do Brasil, inclusive no contexto da governança da internet.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito, Inovação e Tecnologia e líder do grupo de pesquisa Cultura Digital & Democracia no Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pesquisador bolsista no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS); integrante voluntário do Aqualtune LAB: Direito, Raça e Tecnologia; ex-Diretor Presidente do Instituto Beta Internet e Democracia (IBIDEM), três ONGs componentes da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Consultor Sênior de Políticas Públicas do Capítulo Brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) para os temas Responsabilidade de Intermediários e Criptografia. Conselheiro Consultivo do centro de pesquisa Internetlab. Consultor Associado da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ).

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