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Evidências para formulação de políticas digitais de comunicação antirracistas

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2 de abril de 2024

Construir e aplicar políticas digitais de comunicação antirracistas é uma pauta urgente. Saiba mais sobre a nossa colaboração com o governo federal.

No último dia 7 de março, fui convidada, enquanto pesquisadora na área de tecnologia e questões raciais a participar do encontro do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) formado pela Secretaria de Comunicação do Governo Federal (SECOM) e o Ministério da Igualdade  Racial (MIR), formado para a elaboração de um Plano Nacional de Comunicação Antirracista.

Fonte: Ana Luísa Pontes/MIR

O tema é extremamente relevante, na medida em que ano a ano crescem as denúncias de discurso de ódio na internet, em especial de racismo. Com o papel que tecnologias digitais têm desempenhado enquanto ferramentas de informação e comunicação, é fundamental empreender mecanismos e estratégias capazes de permitir que essas ferramentas possam ser utilizadas por pessoas negras, sem que isso implique na reprodução de violência sobre seus corpos – agora em ambiente virtual.

Assim, se você se interesse pelo tema e quer saber quais evidências e propostas conversamos, visando a construção de políticas públicas para serviços digitais de comunicação antirracistas, vem comigo nesse texto.

Comunicações antirracistas: sobre qual problema nós estamos falando?

Segundo uma pesquisa de Luiz Valério Trindade, de 2018, 81% das vítimas de racismo no Facebook no Brasil são mulheres negras de classe média, com ensino superior completo e na faixa de 20 a 35 anos. Sobre o perfil dos agressores, são predominantemente homens (65,6%) com 20 e poucos anos e que tendem a utilizar vocabulário mais pesado, com palavrões, do que usuárias do sexo feminino. Tais dados foram corroborados pela pesquisa feita pela Faculdade Baiana de Direito, JusBrasil e PNUD, que analisou mais de 100 decisões judiciais sobre racismo e injúria racial online, no período de 2010 a 2022, conforme gráficos abaixo:

Fonte: Pesquisa Faculdade Baiana de Direito, PNUD e JusBrasil.

Fonte: Pesquisa Faculdade Baiana de Direito, PNUD e JusBrasil.

 

Ainda segundo a pesquisa conjunta das três instituições, a rede social mais utilizada para cometer esses ilícitos foi o Facebook (63 casos), seguida do Whatsapp (26 casos). Em relação ao gênero, 58,54% eram mulheres negras. Luiz Valério Trindade destaca que muitas ofensas ocorrem quando essas mulheres “ascendem socialmente e passam a ocupar ‘espaços de privilégio’”, de modo que “suas conquistas são ridicularizadas e desqualificadas”. Veja os exemplos abaixo:

 

Fonte: Luiz Valério Trindade, 2020.

 

Nesse sentido, a violência digital também está entre aquelas que mais afetam parlamentares negras no Brasil, reforçando a ideia de que mesmo a ascensão a cargos de poder não impede que sofram agressões racistas no ambiente virtual. Isso é o que demonstram os dados da Pesquisa Violência Política contra Mulheres Negras, feita pelo Instituto Marielle Franco em 2020:

violência políticas contra mulheres negras reforça a necessidade de comunicação antirracistas

Apesar de todos esses dados, é importante pontuar que, atualmente, não há nenhuma pesquisa realizada pelo próprio governo, a fim de dimensionar quantas denúncias sobre racismo e injúria racial são registradas no país todos os anos. É fundamental que pesquisadores e pesquisadoras possam se debruçar e ajudar a colher informações, mas indivíduos ou ONGs não podem assumir uma responsabilidade que deveria ser do Estado, de organizar e compilar dados sobre esses casos de forma institucionalizada.

Esse papel tem sido cumprido hoje por organizações como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que elabora o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que conta com dados sobre a quantidade de denúncias de racismo e injúria racial registradas no país. No entanto, essas informações ainda não se dedicam a compreender quantos desses casos são cometidos na internet. Então como enfrentar uma realidade que não se sabe a dimensão verdadeira?

Com o avanço do uso de sistemas algorítmicos, não é possível desconhecer que as novas tecnologias também se tornaram mecanismos capazes de reproduzir e potencializar o alcance do racismo. Junto à opacidade que ferramentas de IA tendem a apresentar, soma-se a opacidade do próprio preconceito no país (Silva, 2022), sobre o qual se evita falar e se ignora, mesmo sabendo que ele existe. O mito da democracia racial que se sustenta desde o século passado e máscara relações de poder que promovem a manutenção de um grupo social no lugar de subjugado e marginalizado.

Em 2019, o artista Gabriel Jardim fez uma arte em homenagem a Lewis Hamilton, piloto de Fómula 1, desenhando-o ao fundo de uma comunidade periférica, com um menino negro andando de carrinho de rolimã. Os clientes que contrataram a encomenda contaram a ele que não conseguiram patrocinar a postagem com a ilustração, porque o Instagram proibiu a ação, sob a justificativa de que ela promoveria a venda de armas e munição. No entanto, em nenhum lugar a imagem tinha qualquer relação com esses elementos.

Na ausência de uma regulação vigente e direcionada a plataformas digitais e sistemas de inteligência artificial, há poucos mecanismos disponíveis para obrigar essas empresas a serem mais transparentes. Hoje não se sabe ao certo como suas ferramentas de moderação de conteúdo automatizadas funcionam, o que dificulta cobrar o estabelecimento de um devido processo que permita a quem postou o conteúdo contestar as medidas de moderação.

O que fazer diante desse cenário?

Pensando no ciclo de formulação de políticas públicas, é importante criar propostas capazes de articular as bases legais e mecanismos institucionais que o governo tem a seu favor para endereçar os problemas mencionados. Nesse sentido, busquei apresentar as seguintes sugestões, baseadas nos dados apresentados:

  • Promoção de pesquisas nacionais e estatais sobre denúncias de racismo e injúria racial online, para compreender o cenário e traçar estratégias que podem ser melhor direcionadas para locais com maior incidência.
  • Qualificação ou formação para profissionais de segurança pública dedicados a investigações criminais, para auxiliar no registro e persecução de denúncias de racismo e injúria racial online
  • Reconhecimento da discriminação racial indireta no Plano Nacional de Comunicação Antirracista, para permitir o endereçamento de questões relacionadas à forma indireta de discriminação racial
  • Apoio à construção de uma regulação de plataformas digitais, com foco para um direito ao devido processo na moderação de conteúdo online
  • Programas de conscientização para proteção de direitos humanos no espaço digital e canais de denúncia específicos 

As propostas ressaltam que não há saída única ou bala de prata apta a resolver o problema do racismo na internet e nas comunicações digitais. Pensar em soluções envolve trabalhos desde a ponta, com o profissional que precisa estar formado para receber denúncias sobre esses crimes e não contribuir para uma revitimização das pessoas violentadas, até a elaboração de pesquisas institucionais, programas e canais de conscientização sobre o tema por parte do governo. Ao contrário de uma excludente de responsabilidade, o caráter estrutural do racismo vem para nos apontar que ele é um problema de toda a sociedade e que, como tal, só poderá ser resolvido na medida em que os atores envolvidos adotem uma medida proativa para tanto.

Para não concluir

O Plano Nacional de Comunicação Antirracista ainda não foi finalizado e caberá ao GTI avaliar o acolhimento e/ou implementação dessas e outras propostas, mas as atividades do setor governamental chamam atenção para que os demais interessados se articulem em seus espaços para garantir um esforço conjunto para a eliminação do racismo nos meios digitais de comunicação. Além desse encontro, o GTI já organizou o webinário Racismo na Internet, cujo vídeo você pode assistir aqui e o relatório final pode ser lido aqui.

Como forma de promover um enfrentamento direto ao epistemicídio em torno de saberes negros, eles lançaram também a Biblioteca sobre Tecnologias Digitais e Justiça Racial, que contou com curadoria de uma das maiores referências na área, Tarcízio Silva, e traz uma série de trabalhos de pesquisadores negros e negras sobre o tema.

Por fim, é importante lembrar que quando falamos sobre comunicação, estamos falando de um direito fundamental, que é o direito à liberdade de expressão. Permitir a reprodução do racismo em ambientes virtuais é atacar diretamente a liberdade de expressão de pessoas negras. É impedir a sua plena participação em um espaço que se supõe, desde o princípio, democrático e que, como tal, deveria assegurar a pluralidade de vozes.

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Coordenadora de pesquisa e Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Mestre em Direitos da Sociedade em Rede e Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Membra do Coletivo AqualtuneLab. Tem interesse em pesquisas na área de governança e racismo algorítmicos, reconhecimento facial e moderação de conteúdo.

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