Blog

Digitalização do serviço público: uma solução para quais problemas?

Escrito por

23 de novembro de 2020

Tecnologias da informação não são automaticamente uma solução para o serviço público, mas poderiam ser uma parte dela, se estivéssemos olhando para os problemas certos.

O digital como solução

De maneira geral, pensamos em uma suposta oposição entre serviços presenciais e lentos x serviços digitalizados e rápidos. O imaginário é que há serviços prestados em prédios não muito acolhedores, com filas de espera e necessidade de se deslocar várias vezes aparentemente sem motivo; em contraste, no nosso ideal, poderíamos resolver algo em poucos toques na tela ou botão, de onde quer que se estivéssemos, e sem qualquer indisposição. 

Qualquer problema que uma pessoa tenha com um serviço público será respondido, por alguém entusiasta da tecnologia da informação, que “é culpa da burocracia do poder público, se fosse digital essa situação não aconteceria”. Esse pensamento é chamado “solucionismo tecnológico”. O problema é que, às vezes, é digital, ou muito se investe para tornar digital, e essas situações continuam acontecendo. 

O post de hoje trabalha com essas hipóteses, em que a tecnologia não resolve automaticamente os problemas dos serviços prestados pelo poder público. Do topo dos meus pensamentos idiossincráticos, consigo pensar aqui em alguns exemplos: assinaturas digitais não evitam burocracias e dificuldades na autenticação e validação de documentos, títulos de eleitor eletrônicos não evitam que eleitores precisem se deslocar para justificar o voto, processos judiciais informatizados não tornam o judiciário mais responsivo. 

A solução pode ser essa, mas para outros problemas

Isso não quer dizer que a informatização não possa resolver problemas. Longe disso. As tecnologias da informação disponíveis são poderosas ferramentas, que podem servir para se chegar a soluções inimagináveis no mundo analógico. Mas essas medidas, sem políticas orientadas pelo potencial democrático dessas ferramentas todas, são como qualquer outro uso inconsequente de tecnologia: pode ter efeitos colaterais indesejáveis. E ao contrário de termos apenas projeções, potenciais e teorias sobre esses efeitos, estamos vivendo eles dia a dia. 

Basta ver os ataques digitais a serviços do governo vivenciados nos últimos dias, que, por falta de segurança adequada da informação, ficam vulneráveis. Isso pode prejudicar o atendimento prestado, que fica paralisado ou pode sofrer entraves diante de acessos indevidos às configurações dos sistemas eletrônicos. Quando se fala em um serviço público sofrendo ataques no âmago de seu funcionamento, as consequências são coletivamente sofridas, pois muitos desses envolvem serviços essenciais, direitos fundamentais.

Outra consequência potencial de práticas de segurança da informação mal-implementadas no governo também é a exposição de cidadãos quanto a seus dados e informações pessoais. O poder público coleta e trata, para prestar serviços e garantir direitos, inúmeras informações pessoais. Toda vez que um sistema com bancos de dados é fragilizado, pode ocorrer o vazamento dessas informações, que podem ser muito valiosas e fonte de vulnerabilidades – seja pela discriminação ou pela possibilidade de assédio e de perda da autodeterminação que possibilitam.

Isso sem aprofundar no desafio que é prestar serviços públicos pelo meio digital em um país em que mais de um quinto da população não tem acesso a internet em casa. Muitos desses serviços são obrigatórios para o exercício da cidadania, o que torna impossível pensar na pauta da informatização do governo apartada da inclusão digital.

Todos esses revezes tem algumas razões de ser, e uma delas talvez seja que estamos olhando para os problemas errados. E é muito difícil encontrar a solução certa sem saber o que é que estamos tentando resolver, exatamente.

Tecnologias não são apenas catalisadores de tempo

Isso tudo nos faz pensar em o quanto a informatização é vista apenas como uma forma de dar vazão a tudo o que tramita no setor público. Ou seja, etapas seriam automatizadas e isso tornaria possível dar conta das demandas da população com maior eficiência, porque o tempo para uma resposta demoraria menos.

Isso ocorre na adoção de sistemas de gerenciamento digital em repartições públicas. Por exemplo, em grande escala, o poder judiciário brasileiro aposta na informatização de processos. Entretanto, um fator muito relevante dessa migração é deixado de lado: a sua potencialidade na produção de informação. Ainda que muito seja coletado para relatórios como o Justiça em Números, é sintomático que os problemas relatados não mudem ano a ano. Se tem uma dimensão do problema de morosidade e acúmulo de processos, mas não uma visão panorâmica que permita compreender os motivos disso e como isso se reflete na sociedade.

A tecnologia da informação no governo tem, na realidade, um potencial imenso para organizar e produzir conhecimento: sobre nós mesmos, sobre como nossa sociedade lida com questões públicas – e sobre em que medida se podem desenhar soluções melhores. Mas apenas digitalizar o que já existe no formato presencial/analógico, sem perceber que a vantagem dessa mudança seria a facilidade em conhecer e avaliar processos e políticas, não é a melhor forma de aproveitar esse potencial. Muito pelo contrário: com uma visão estreita focada apenas na instantaneidade, além de persistirem os problemas e suas consequências, ainda se criam novos déficits para serem resolvidos – como o da proteção de dados, da segurança dos sistemas, da alfabetização digital.

A informatização de serviços públicos faz pensar em um ideário de agilidade e praticidade. Na concretude, a abstração de seu potencial enquanto tecnologia dá lugar a novos desafios. Se você quer saber mais sobre outros efeitos do solucionismo tecnológico, também falamos disso neste post.

* As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

Escrito por

Coordenadora de Pesquisa e pesquisadora no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestra em Direito da Sociedade de Informação e Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Membro dos grupos de pesquisa Governo eletrônico, inclusão digital e sociedade do conhecimento (Egov) e Núcleo de Direito Informacional (NUDI), com pesquisa em andamento desde 2010.

Interesses: sociedade informacional, direito e internet, governo eletrônico, governança da internet, acesso à informação. Advogada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *