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A internet que afaga é a mesma que apedreja: exemplos de discurso de ódio simultaneamente combatido e perpetuado no ambiente online

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20 de novembro de 2019

Este é um texto para enviar ao colega que diz que a internet é solução de todos os problemas da contemporaneidade. É também texto para enviar ao familiar que afirma que as máquinas tecnológicas estão acabando com o ser humano. Leitura: 10min.

A mão que afaga é a mesma que apedreja. Este é um dos versos do poema Versos Íntimos do brasileiro Augusto dos Anjos e pode ser interpretado como uma afirmativa de que o mundo não é unidimensional. As manifestações expressas na internet não fogem à tal pluralidade de pensamentos e vivências intrínsecas ao ser social. Nesse contexto, com trechos de Versos Íntimos pretendo argumentar que o advento da internet possibilitou o fortalecimento de grupos historicamente marginalizados pela sociedade ao mesmo tempo que é espaço de disseminação de preconceitos e repressões

Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável!

Propostas inovadoras e com alto potencial de impacto social são frequentes -e naturais- alvos de críticas. Portanto, começo inicialmente apresentando 3 iniciativas que demonstram o potencial da internet enquanto ferramenta de coesão de grupos sociais.

  • Creators for change: Iniciativa do Youtube para estimular a criação de conteúdo de impacto positivo para o mundo por meio da utilização da plataforma de vídeos. Youtubers que são inspiração para usuários da rede são convidados a serem embaixadores do projeto que incentiva novos criadores a desenvolverem suas habilidades e aspirarem caminhos por vezes negado Esses embaixadores são multiplicadores por meio de atividades presenciais ou por meio da divulgação de suas jornadas percorridas até o sucesso na plataforma de vídeo ensinam outras pessoas a manifestarem-se na internet e agregarem mais pessoas no objetivo de construir um ambiente online diverso e solidário. Dados do relatório de 2017 divulgado pela empresa apontam que em 1 ano o projeto teve 731.000 horas assistidas de vídeos inspiradores; 25 milhões de visualizações em hashtags como #MaisDoQueUmRefugiado #OrgulhoDeSer #MeninasContam e iniciativas em todos os 6 continentes.
  • Grupos no Facebook: Os grupos, públicos ou privados, existentes na rede social Facebook, frequentemente são utilizados como espaço de escuta e fala de pessoas que identificam-se como minorias sexuais ou raciais. Como parte do movimento feminista, existem grupos dentro da rede sociais de leitura feminista compartilhada, como o grupo que debate o livro Mulheres que Correm Como Lobos; e grupos de estímulo da participação da mulher no mercado de trabalho, como o Mulheres na TI. O movimento negro também se mobiliza por meio da rede que são verdadeiros pontos de encontros digitais, como o Movimento Negro Unificado (MNU), Povo Negro Cultura e Resistência.
  • Whatsapp para o fortalecimento da democracia: Utilizado por cerca de 80% dos brasileiros, o aplicativo é importante ferramenta de poder político e veículo de comunicação. Utilizando-se dessa rede, jovens oriundos da periferia desenvolveram o cocozap, projeto que busca construir um canal de denúncia, debate e proposição sobre saneamento básico na comunidade da Maré. Como Gilberto Vieira afirma, “A ideia é produzir uma nova base de dados e construir diagnósticos mais fidedignos do que os indicadores utilizados como oficiais. Quem sabe as soluções também possam ser mais legítimas, baseadas em evidências fornecidas por quem vive os dados mais extremos no território”

Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera.

Entretanto, conforme mencionado na introdução, não é objetivo deste texto afirmar a superioridade das soluções tecnológicas em detrimento das adversidades virtuais. Por isso, a seguir serão apresentados alguns exemplos em que as mesmas plataformas supramencionadas como ferramentas de coesão social são utilizadas – ou construídas – de modo a permear agressões e preconceitos. Este uso indevido da internet frequentemente está associado ao efeito bolha existente nas redes sociais e sustentado por algorítmos e pelo modelo de negócio baseado em publicidade direcionada. A sensação de anonimização por estar atrás de telas de computadores aliada à dimensão pública dos discursos de ódio disseminados nas redes corroboram o conjunto de fatores que, na perspectiva do psicanalista Contardo Calligaris, as redes sociais sejam também arenas que validam o ódio. Dessa forma, o subtítulo desta seção  “mora, entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera” é metáfora para o entendimento de que conteúdos odiosos divulgados online atingem sujeitos permeados de seus preconceitos e aplaudem tais ofensas alimentando exponencialmente o estabelecimento de uma agremiação negativa.

  • Youtube e radicalismo: investigações do New York Times apontam que a rede do Youtube tem sido fomentador do radicalismo de opiniões na sociedade. Isso ocorre porque após análise das preferências dos usuários na plataforma digital, o algoritmo da rede sugere aos usuários que assistam vídeos majoritariamente de canais de conspiração e extrema direita. O sistema do Youtube foi projetado para maximizar o tempo de audiência e não favorecer ideologias políticas. Entretanto, uma vez que as preferências dos usuários são pautadas em suas emoções, a ferramenta os direciona a assistirem vídeos cada vez mais provocativos. E, claro, os vídeos radicalistas e que distorcem verdades adentram a seara de conteúdo instigante. O impacto dessa ferramenta é tamanho que metade dos 10 canais que mais cresceram no Youtube durante as eleições de 2018 são de extrema direita, de acordo com reportagem do The Intercept.
  • Racismo Algorítmico: Pesquisa realizada pela Universidade do Sul da Califórnia aponta que os algoritmos de segmentação do Facebook (aqueles aplicados para determinar o perfil de um usuário e classificá-lo de acordo com os padrões definidos pela empresa) exibem determinados anúncios, incluindo os de habitação e emprego, de uma forma que se alinha com os estereótipos de raça e gênero. Os pesquisadores criaram um anúncio no Facebook e deixaram a cargo do algoritmo da rede social o direcionamento desse anúncio na rede. “o Facebook entregou nossos anúncios de vagas na indústria madeireira para um público composto de 72% de brancos e 90% homens, empregos de caixa de supermercado foram exibidos para um público 85% de mulheres, e vagas em empresas de táxi, a uma fatia de 75% de negros, muito embora o público-alvo especificado fosse idêntico para todos os anúncios”.
  • Whatsapp e desinformação: A utilização do aplicativo para disseminação de notícias falsas e doenças inverídicas, principalmente, causa grande preocupação por parte de vários grupos. No Brasil, esse tipo de uso malicioso do app iniciou em 2015, quando a epidemia de microcefalia no país foi divulgada na plataforma em dimensões e fatos totalmente desconexos da realidade, demandando interferência do Ministério da Saúde para acalmar a população. Posteriormente, o app foi utilizado como ferramenta política para favorecer candidatos a mandatos eletivos por meio do envio de mensagens e fotos que apontavam mentiras ou ofendiam candidatos opositores. 

Conclusão

Os seis casos apresentados anteriormente são apenas exemplos dos múltiplos usos que podem ser feitos na internet. Conforme Rodrigo Nejm afirma,

“A gente vê na internet o reflexo de contradições e polaridades que vemos na sociedade.”

Sendo assim, qualquer estratégia de combate ao discurso de ódio e qualquer forma de mau uso da internet necessariamente perpassa em educação digital dos usuários para que eles façam uso consciente e respeitoso das ferramentas virtuais, apropriando-se das potencialidades existentes nessa nova esfera social.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik

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Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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