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A América Latina na frente pelo reconhecimento dos neurodireitos

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20 de setembro de 2023

Em um mundo cada vez mais conectado por avanços tecnológicos, surge um intrigante pioneirismo na América Latina que merece nossa atenção: o reconhecimento de neurodireitos. Nesta região extensa e diversa, movimentos políticos e jurídicos têm dado passos interessantes para assegurar a proteção dos direitos individuais em um contexto de evolução das neurotecnologias. À medida que mergulhamos nas complexidades sociais, políticas, históricas e econômicas que moldaram essa liderança, convido você a embarcar nesta jornada de descoberta, em que o território latinoamericano se revela um laboratório de inovação no cenário global dos neurodireitos.

Evolução das neurotecnologias e o reconhecimento de neurodireitos no cenário global

São cada vez mais abundantes os exemplos de produtos neurotecnológicos utilizados fora do contexto de diagnóstico ou tratamento de saúde. O desenvolvimento e uso de ferramentas para coletar dados e/ou interagir com o cérebro, especialmente com fins não terapêuticos, faz surgir experiências em diferentes países: da China ao Chile, por exemplo, podemos citar casos controversos da aplicação de tais produtos. Em resposta, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tem sido um espaço importante de discussão e difusão do tema.

À medida que as neurotecnologias avançam a passos largos no cenário global, surge um desafio ético e legal fundamental: o reconhecimento dos neurodireitos, ou seja, de uma proteção específica para os bens jurídicos humanos em face do potencial uso abusivo de tais tecnologias.

O aprimoramento das ciências do cérebro e da mente tem desencadeado uma série de questões complexas relacionadas à privacidade, à autonomia e à integridade pessoal. Neste contexto, o crescente debate sobre os neurodireitos representa um marco importante no estabelecimento de princípios éticos no uso de tais tecnologias — até mesmo para quem discorda do potencial de tais tecnologias ou da necessidade de sua regulação específica.

Nesse sentido, especialistas têm defendido que, devido ao potencial de impacto das neurotecnologias em elementos definidores da condição humana, os neurodireitos devem ser inseridos na agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) e regulado como um direito humano, em respeito ao seu caráter universal. Por outro lado, diante da inexistência de consenso sobre o tema e da necessária construção gradativa dos contornos regulatórios internacionais — premissa para qualquer inovação sociojurídica desse porte —, esse pleito ainda está incipiente e merece maior atenção para que seja amadurecido.

Enquanto isso, as neurotecnologias estão sendo desenvolvidas e aprimoradas em um ritmo mais acelerado, característico do mercado tecnológico atual. Consequentemente, os produtos estão sendo comercializados e o seu potencial lesivo está levando a respostas locais, tanto em âmbito regional quanto nacional.

América Latina: pioneira no reconhecimento jurídico dos neurodireitos

A América Latina está sendo palco de iniciativas pioneiras para o reconhecimento jurídico dos neurodireitos, estabelecendo um precedente significativo em um cenário global de rápido avanço das neurotecnologias. Um marco crucial foi a aprovação em 2023, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos  demonstrando um compromisso regional com a proteção dos direitos individuais em face dos avanços da ciência cerebral.

Já no âmbito nacional, o Chile, por exemplo, aprovou uma emenda constitucional inovadora em 2021, que modificou o artigo 19 para proteger a atividade cerebral e as informações associadas, “conforme legislação específica”. Além disso, ao analisar o produto Insight (um dispositivo para monitorar a atividade cerebral) no recente caso Guido Girardi vs. Emotiv Inc., a Corte Suprema do Chile gerou uma decisão histórica: destacou a importância dos neurodireitos e a necessidade de uma análise minuciosa das implicações legais e éticas das neurotecnologias. 

A mobilização do Brasil, com a Proposta de Emenda Constitucional nº 29/2023 e o Projeto de Lei nº 522/2022, assim como os debates em andamento na Argentina e no México, solidificam ainda mais a posição da América Latina. A região se mostra pioneira na promoção e proteção dos neurodireitos, contribuindo para um diálogo global essencial sobre esse tema complexo e em constante evolução.

Os possíveis vetores políticos e históricos que impulsionam a liderança latinoamericana no tema

Essa liderança latinoamericana no campo dos neurodireitos reflete uma mudança significativa na dinâmica global, pois desafia a dinâmica tradicional que a coloca como mera consumidora de inovações tecnológicas e regulatórias provenientes do Norte Global. 

Para tanto, a colaboração regional tem desempenhado um papel crucial, permitindo a troca de experiências e boas práticas entre países dessa região, como visto no seminário 1º Encontro Brasil-Chile de Neurodireito

Além disso, as experiências traumáticas das ditaduras militares recentes na região são citadas como um possível impulso ao reconhecimento dos neurodireitos, devido a um desejo coletivo por proteção de direitos individuais e coletivos em face do uso de tecnologias para controle e vigilância. De fato, a região tem enfrentado desafios significativos em termos de direitos humanos. Contudo, é nítido que o mesmo não se reflete em outras áreas, o que pode ser identificado no uso de tecnologias para vigilância de grupos historicamente marginalizados, como o reconhecimento facial que tem sido largamente utilizado de maneira discrimitatória, como denuncia O Panóptico.

Nesse sentido, a presença de políticos e acadêmicos engajados em pautar e difundir o tema dos neurodireitos aparenta ser um recurso fundamental, considerando o impulso a uma inovação comprometida com o respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento socioeconômico que respeite a realidade local. Nesse sentido, o letramento da população em geral sobre o tema, em conjunto com a participação de instituições da sociedade civil organizada e o diálogo com o setor privado são também muito importantes. 

Em conjunto, esses elementos têm colocado a América Latina na vanguarda global no reconhecimento e proteção dos neurodireitos, fornecendo um modelo valioso para outras regiões do mundo. Esses vetores políticos e históricos estão moldando uma nova narrativa, na qual a América Latina não apenas consome, mas também contribui ativamente para a construção de marcos regulatórios democráticos no âmbito dos neurodireitos.

Conclusão

Em um cenário de rápidos avanços nas neurotecnologias e as complexidades éticas e legais que elas levantam, é importante reconhecer a importância do debate sobre os neurodireitos. As neurotecnologias são uma realidade do presente, não um problema futurista, e com elas vêm riscos e desafios que precisam ser enfrentados de maneira eficaz. A América Latina, ao assumir a liderança no reconhecimento jurídico dos neurodireitos, demonstra um compromisso notável em equilibrar o estímulo à inovação com a proteção dos direitos humanos, estabelecendo um exemplo global de boas práticas regulatórias, tanto da perspectiva regional quanto em países que a compõem.

Para isso, a região tem contado com um movimento político e sociojurídico engajado e comprometido com direitos individuais e coletivos. No entanto, é importante reconhecer que o debate sobre neurodireitos ainda exige, de maneira imprescindível, uma maior difusão entre a população em geral. A conscientização e a compreensão pública são essenciais para promover políticas eficazes e garantir a participação democrática em decisões que afetam a relação entre tecnologia e humanidade. À medida que continuamos a explorar esse território, é crucial conceder tempo para o amadurecimento de nossas conclusões sobre o tema, promovendo um diálogo multissetorial e inclusivo que respeite os valores fundamentais da dignidade e da autonomia humana em um mundo cada vez mais neurocientífico.

Com esse objetivo, convidamos todes a acompanharem as movimentações do IRIS através deste site e de nossas redes sociais. Estamos dando passos nessa direção, diante do compromisso institucional de pensar nos impactos de inovações tecnológicas nos direitos humanos.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Estudante curiosa, atua como graduanda na Faculdade de Direito da UFBA e estagiária de pesquisa no IRIS, liderando o projeto de moderação de conteúdo e devido processo. Sua experiência em pesquisa caminha entre direitos e tecnologias, sobretudo na área de relações trabalhistas e raciais, moderação de conteúdo e proteção de dados.

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