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“Tão especial para não compartilhar com o mundo”: como o sharenting pode afetar a vida das crianças

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13 de dezembro de 2021

Primeiramente, imagino que você pode estar se perguntando o que é “sharenting”. Então, vamos responder isso, antes de começar a falar sobre o tema. Trata-se de um anglicismo composto por duas palavras: share (compartilhar) e parenting (poder parental). A expressão se refere ao compartilhamento de imagens e informações sobre sua filha ou seu filho nas redes sociais. Algum tempo atrás, toda mãe orgulhosa e pai orgulhoso mostravam as fotos 3×4, que carregavam na carteira, para as suas amigas e amigos. Atualmente, essas pequenas (e inofensivas) fotografias foram trocadas por conteúdos nas redes sociais.  Nesse texto, vamos conversar sobre o que é e o que não é classificado como sharenting, também vamos apresentar os efeitos dessa prática na vida das crianças e os possíveis impactos nas suas vidas futuras. Para ilustrar a questão, apresentaremos dados coletados por meio de pesquisas que tratam sobre sharenting. Vamos lá?!

O poder da diferença: o que é e o que não é sharenting?

Mas, então, sempre que uma mãe ou pai compartilha foto dos seus filhos nas redes sociais está praticando sharenting? Não, não, é bem assim! Vamos explicar melhor!
Compartilhar fotos e/ou vídeos de nossas filhas e filhos não é (sempre) sharenting. Essa prática se dá quando alguém (importante pontuar que não precisa ser a mãe ou o pai, pode ser algum tio ou tia, por exemplo) documenta e compartilha de maneira constante (e sem autorização) a rotina diária da criança.

Apesar de não existir uma quantidade exata de conteúdos postados para que o sharenting seja enquadrado, em geral, a prática acontece quando há compartilhamento de imagens e/ou vídeos de forma contínua. Tal falta de número exato caracterizando a prática acontece porque uma única postagem pode viralizar e ter um alcance muito maior do 500 imagens postadas na rede, por exemplo. 

Percebe-se, então, que a diferença para determinar o que é e o que não é sharenting está na quantidade e no ritmo com que se publica, atentando, também, ao teor do conteúdo. As redes sociais, muitas vezes, podem ser usadas como um espaço de recordação e bons momentos, e não há problema nisso. A problemática consiste em utilizar as redes sociais sem o cuidado e precaução necessários.  

Como dito anteriormente, mães e pais compartilhando conteúdo das filhas e filhos não são novidade. No entanto,  atualmente, devido ao alto alcance das redes sociais, o compartilhamento dessas informações pode atingir um número inimaginável de pessoas e causar sérios impactos na vida da criança. 

Tal mãe, tal filha? As pegadas digitais deixadas nas vidas das filhas e filhos

Quanto o comportamento da mãe e do pai reflete no comportamento e na construção da personalidade de uma criança? Na pesquisa realizada pelo instituto Working Mother Research Institute (WMRI), alguns dados interessantes foram revelados. O estudo, realizado com 950 homens e 932 mulheres, constatou que pessoas abaixo de 40 anos de idade (39%) compartilham mais informações sobre suas vidas do que pessoas com mais de 40 anos (26%).  Sendo assim, durante a infância das crianças, a maioria das mães e dos pais tende a postar mais conteúdo sobre suas vidas (o que inclui, também, a vida da filha ou do filho).

De acordo com o relatório da UNICEF , uma pesquisa realizada em 2010, 81% das crianças entre 2 e 10 anos em países de alta renda (Austrália, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Nova Zelândia, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos) tinham pegada digital. Isso quer dizer que essas crianças tinham imagens suas postadas ou tinham perfil em alguma rede social.

“Mas o que pode acontecer? No máximo, vão achar minha filha fofa!”

Se a pergunta é: o que pode acontecer? A resposta é: mais do que você pensa. Os efeitos que o sharenting pode provocar são a nível psicológico e a nível de segurança.

Vamos citar alguns exemplos:

  1. Criação de perfil da criança no futuro 

As informações fornecidas através das imagens e vídeos compartilhados podem facilitar a criação de um perfil dessa criança no futuro. Dessa forma, é possível que haja reflexos em vagas de emprego ou concessão de crédito.  

Exemplo: se você posta um conteúdo compartilhando que sua filha sofre de determinada comorbidade, você já pensou que o possível chefe dela, em algum par de anos, pode acessar essa informação? Você acha que ela gostaria que as pessoas que trabalham com ela tivessem essa informação?

  1. Utilização da imagem para fins distintos do pretendido
    Se a criança for retratada sem roupa ou, mesmo, com pouca roupa é possível que o conteúdo seja sugerido, por meio de algoritmos que verificam as preferências do usuário, à pessoas que têm comportamentos sexuais direcionados à pedofilia. O que você acha disso?
  2. Dificuldade para que a criança desenvolva sua personalidade
    A criação de perfis por parte da mãe e pai pode interferir na capacidade de livre e pleno desenvolvimento da identidade e personalidade da criança. Afinal, a narrativa exposta nas redes sociais é unilateral e contada a partir de uma perspectiva alheia, e sem o consentimento, da(o) menor. 

É chato quando não perguntam nossa opinião porque a gente é criança, né? 

  1. Bullying
    As redes sociais, dependendo do contexto em que a criança está inserida, têm papel significativo em sua vida. Portanto, uma superexposição por parte dos representantes legais da(o) menor pode causar bullying ou mal-estar no seu círculo social.

O perigo mora na mesma casa, ama e cuida

Um estudo realizado pela instituição financeira inglesa Barclays estima que, em 2030, aproximadamente, ⅔ dos casos de fraude de identidade serão associados ao excesso de informação causado pelo sharenting. O banco adverte que as mães e pais que superexpõem as filhas e filhos estão comprometendo sua segurança financeira no futuro.  Nessa direção, a instituição financeira prevê que, até 2030, isso poderá custar, aproximadamente, £ 670 milhões em fraudes online.

Diversas informações podem ser fornecidas quando conteúdos são compartilhados nas redes sociais: nome e sobrenome, data de aniversário, cor da pele e dos olhos, ou lugares que a criança costuma frequentar (nome da escola), por exemplo. Dessa forma, torna-se fácil a criação de perfis falsos em redes sociais ou utilizar essas informações para fins que prejudiquem a criança. Caso tais informações cheguem até (ou sejam encontradas por) pessoas que tenham intenções maliciosas, a própria segurança física da criança pode estar em perigo.

Não é sobre não utilizar as redes sociais, é sobre usá-las com moderação

Parece clichê, mas é verdade: use com moderação. Não devemos, apenas, controlar a quantidade de conteúdo que postamos sobre as crianças, como também devemos ter controle sobre o tipo de conteúdo que nós compartilhamos sobre elas.  

Certamente, não são todas as informações que podem comprometer o futuro e a construção da personalidade da sua filha ou do seu filho. Não obstante, é preciso ter em conta que você, se não tiver cuidado, pode estar colocando quem  você mais ama e proteje em perigo.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Líder de pesquisa em proteção de dados pessoais e pesquisadora no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS 2022), vinculado ao Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Realizou pesquisa de campo em Amsterdam, Holanda, durante o Mestrado para fundamentar estudo comparado realizado na dissertação. Especialização em Direito do Consumidor pelo Centro de Direito do Consumo (CDC) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC 2021). Pós-graduação (lato sensu) em Direito Digital na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP 2021). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS 2019). Colaboradora no projeto de pesquisa “Proteção de Dados Pessoais nas Américas”, idealizado em parceria pelo Grupo de Pesquisa CNPq “Observatórios da Lei Geral de Proteção de Dados e do Marco Civil da Internet”, vinculado a Universidade de São Paulo (USP), e pelo Grupo de Pesquisa CNPq “Mercosul, Direito do Consumidor e Globalização”, vinculado a UFRGS. Realizou período de mobilidade internacional na Universidad Internacional de Cataluña, Barcelona, Espanha (UIC 2017). Durante a graduação, realizou período de estudo de língua estrangeira em Vancouver, Canadá. Foi bolsista de iniciação científica do Programa de Bolsa Pesquisa – BPA (PUCRS 2016-2018). Prestou serviços de assessoria jurídica voluntária no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU UFRGS) – Direito do Consumidor (G7) – durante os anos de 2019 e 2022. Atua e pesquisa nas áreas de proteção de dados pessoais e privacidade, Direito da Informática, criptografia, Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e Direito do Consumidor.

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