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Internet em tempos de pandemia: novos cenários, velhos dilemas

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27 de abril de 2020

Em tempos de pandemia, nunca se consumiu tanta informação. Têm sido incontáveis as dicas, vídeos e posts de como melhorar a saúde, aumentar a imunidade, usar uma máscara e como, no meio de tudo isso, ainda manter a saúde mental. Todo dia uma nova live e uma vídeochamada, dos amigos, da aula ou do trabalho. E todo dia uma foto de um pão caseiro saindo do forno dos seus amigos. 

Tudo o que se tem feito nesses tempos de afetos distantes é consumir informação.  E tudo isso pela internet.

Se quase todas as nossas atividades cotidianas agora ocorrem por intermédio da tela de um computador ou de um celular, a internet tornou-se ainda mais central para o nosso convívio, ainda mais necessária. Isso também criou otimismo a respeito das potencialidades da tecnologia: talvez no futuro pessoas façam home office com mais freqüência, talvez mais aulas sejam online, dentre outras previsões de um futuro pós-pandemia que aparecem em diversos jornais.

Mas, ao mesmo tempo, a internet também parece se mostrar insuficiente. Infodemia, relações precarizadas de trabalho e os riscos da hipervigilância são apenas alguns dos tópicos que também se tornaram recorrentes em artigos durante o período da pandemia. À medida que cresce o consumo de informação, também crescem consigo os problemas já conhecidos das economias de plataforma. Será que há razões para sermos otimistas nesse cenário? 

A tecnologia não irá nos salvar

Evgeny Morozov já critica há bastante tempo o “solucionismo” tecnológico, a idéia de que a tecnologia é uma panacéia que poderá ser a solução de diversos problemas da sociedade. Aparentemente, no entanto, seguimos neste caminho. E, diante de um cenário de crise sanitária e econômica, a situação apenas se agrava.

Não por acaso, uma das grandes discussões atuais tem sido a respeito da utilização de dados de cidadãos para o combate à pandemia do novo coronavírus. Em entrevista, Shoshana Zuboff destaca como a retórica do inimigo faz com que governos apostem em tecnologias de vigilância pela segurança dos cidadãos. E que estes, por outro lado, também fiquem mais dispostos a aceitá-las. O atentado terrorista ocorrido em 11 de setembro de 2001 foi o ponto de partida do “capitalismo de vigilância”. Hoje, a mesma situação acontece contra a pandemia.

No mundo inteiro, governos anunciam acordos de cooperação com empresas de tecnologia e mecanismos de monitoramento da população em tom otimista, muitas vezes desconsiderando critérios de transparência sobre a utilização desses dados. Enquanto isso, a sociedade civil chama atenção para os riscos envolvidos na centralização de tantas informações sobre os cidadãos. No Brasil, o mais recente exemplo foi a edição da Medida Provisória n° 954/2020 que permite compartilhamento de informações individualizadas sobre consumidores de telefonia para o IBGE. Fortemente criticada pela ausência de finalidade específica para o compartilhamento de dados e de critérios básicos de segurança, a MP hoje é questionada no Supremo Tribunal Federal.

Mas o solucionismo não se limita apenas à vigilância, abrangendo também as aplicações de internet que têm sido ainda mais utilizadas no cenário de isolamento social. O Zoom, ferramenta de comunicação que muitas empresas e escolas têm utilizado para fazer vídeochamadas, elevou seu poder de mercado em mais de 100%. O mesmo crescimento elevado tem sido observado também em outras empresas de tecnologia, como Amazon e iFood. Alguns artigos inclusive se perguntam se a pandemia do coronavírus não poderia acabar com a visão negativa que certas plataformas estavam acumulando ao longo dos últimos anos, diante de algumas iniciativas positivas de combate ao coronavírus e à desinformação.

Na prática, entretanto, o que vemos é que as mesmas empresas de tecnologia que têm sido vistas como soluções não são capazes de atender, muitas vezes, às expectativas que se colocam sobre elas.

O mesmo Zoom que obteve crescimento foi denunciado em diversas mídias por problemas recorrentes à privacidade dos usuários. Aplicativos de entrega têm sido amplamente criticados pelo tratamento dado aos seus funcionários durante a crise. E, ao mesmo tempo, os próprios cidadãos enxergam dificuldade de se relacionarem apenas por meio de uma tela.

Embora capaz de suprir necessidades básicas durante a pandemia, a internet não é capaz de solucionar problemas estruturais da sociedade. Não é esse o seu papel. Justamente porque ela também possui os seus próprios problemas, sejam eles de conteúdo ou, em outra camada, de infraestrutura.

Do outro lado da moeda, o acesso

A internet não é um fim, ela é um meio. Um meio de comunicação, que faz as pessoas se conectarem e potencializa discursos, demandas e ações, sejam elas consideradas positivas ou negativas. Entender isso é necessário não só para calibrar expectativas sobre quais são de fato as potencialidades da tecnologia, mas também para entender que, enquanto um meio, tão importante quanto o conteúdo é a infraestrutura que sustenta essa rede.

Se de um lado vemos um discurso que sobrevaloriza o potencial da tecnologia nesse momento, por outro, pouco tem se falado sobre os problemas de desigualdade no acesso à rede de banda larga, que se aprofundam ainda mais neste cenário. Afinal, com grande parte da população trabalhando, estudando e se divertindo em casa, a demanda por internet também cresce vertiginosamente.

Mas o consumo da informação é desigual. Se várias residências têm experimentado redução na qualidade de sua banda larga diante do crescimento da demanda, 33% dos domicílios brasileiros não possui sequer acesso à internet. E a maior parte das classes D e E acessa a rede apenas pelo celular. Um acesso limitado, de baixa qualidade, que afeta a população brasileira de maneira profunda. A educação é um exemplo: enquanto escolas com alunos de renda média ou alta ainda conseguem manter as suas atividades online, aqueles de renda mais baixa não têm a mesma possibilidade de estudo.

Apesar desse cenário de desigualdade estrutural, nenhuma ação emergencial foi pensada para atender a essa população. Pelo contrário, houve resistência para que uma medida simples como a suspensão temporária dos cortes à internet de inadimplentes, diante do grave cenário econômico que se forma nesses tempos, fosse implementada.

Ou seja: de um lado vemos um otimismo em relação ao que a tecnologia é capaz de fazer. De outro, a desconsideração dos problemas de infraestrutura persistentes no Brasil. Enquanto se tenta construir um castelo de cartas com as promessas da tecnologia, ele não se sustenta, justamente porque colocado sobre uma mesa instável.

“Essa é uma história sobre instituições” 

A aposta em um ambiente informacional que funcione de maneira adequada, porém, não depende apenas do investimento em infraestrutura, mas também de normas e instituições capazes de traçar parâmetros básicos de uso dessas tecnologias, tanto para a prevenção de abusos como de riscos aos consumidores. 

Nesse caso, se o Brasil saiu à frente no debate internacional quando aprovou o Marco Civil da Internet, em 2014, hoje já não ocupa mais o mesmo lugar. Vemos, no Congresso, a Lei Geral de Proteção de Dados ser possivelmente prorrogada por mais alguns – não se sabe quantos – meses, seguimos sem previsão a respeito da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e, não bastasse, a Lei de Acesso à Informação também é flexibilizada nesse período que demanda ainda mais transparência das ações do governo.  

Na mesma entrevista citada acima, Shoshana Zuboff afirma que a população já está pensando mais criticamente em relação aos possíveis efeitos da tecnologia do que há vinte anos – e as próprias críticas feitas a plataformas como o Zoom e às iniciativas do governo são reflexo disso. Mas, segundo ela, “essa é uma história sobre instituições”. Apenas com novas regulações e formas institucionais a sociedade será capaz de reverter as assimetrias de poder e conhecimento geradas pelas novas tecnologias. Este é um longo caminho a ser percorrido, que exige debates e construção multissetorial. Mas, pelo menos no Brasil, a opção governamental por esse caminho tem parecido distante. 

Conclusão: novos cenários, velhos dilemas 

Não é novo dizer isso, mas é necessário repetir. A internet precisa ser entendida dentro do papel que cabe a ela. É necessária e considerada serviço essencial justamente por ser um meio de comunicação fundamental para a era em que vivemos, propiciando contatos à distância e serviços de maneira mais rápida. Mas a internet não é capaz de resolver os problemas estruturais que permeiam a sociedade, tampouco as próprias necessidades de contato da natureza humana. Não se dá para encontrar soluções sem definir as causas, nem ignorar os problemas que essas mesmas soluções também podem trazer.

Embora os cenários e a conjuntura mudem, os dilemas se mantêm os mesmos. Diversos interesses e direitos fundamentais em jogo nesse ambiente de informação que envolve mutuamente liberdades civis e acesso à comunicação. Nesse contexto, apenas uma coisa é certa: se quisermos que a internet cumpra o seu papel, o Estado primeiro precisa cumprir o seu, expandindo a infraestrutura e avançando na garantia de direitos básicos aos cidadãos. Sem qualquer iniciativa que vá nessa direção, não há razões para ser otimista – pelo contrário. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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Mestranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV/SP. Graduada pela Universidade de São Paulo (FDUSP). Durante a graduação, realizou intercâmbio acadêmico na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) – Sociologia Jurídica, do Ministério da Educação. Foi participante da 4ª Escola de Governança da Internet (2017), promovida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). É Assessora Jurídica do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais no Idec.

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