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Solucionismo tecnológico e o perigo de uma história única

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10 de maio de 2021

O famoso livro (e vídeo do TED com milhões de visualizações) de Chimamanda Adiche “O perigo de uma história única” retrata a complexidade das estruturas sociais, culturais e históricas nas quais estamos inseridos como sociedades. Tanta é essa complexidade que os diferentes prismas também precisam ser considerados sobre as – assim chamadas – soluções tecnológicas. 

Por que uma história única para as tecnologias?

Existe um entusiasmo compreensível com a tecnologia. Por muito tempo, tudo que é “novo”, “atualizado”, “moderno” tem sido associado a bônus para a sociedade. A geladeira do novo modelo é melhor que a do modelo anterior, o carro do ano tem inúmeros avanços em relação ao do ano passado, as marcas lançam dispositivos que sempre superam os outros. Isso está associado ao modo de produção e consumo vigente e também pode se ligar a uma necessidade de acreditar que o que vem, vem para melhor.

Acontece que os avanços tecnológicos e até o que consideramos como sociedade não seguem um caminho linear. A ideia de que o futuro sempre será melhor, apesar de funcionar como um gerador de esperanças, não necessariamente se aplica ao desenvolvimento da tecnologia. Pode até valer como mote de vida, mas não é real no que se refere ao desenvolvimento tecnológico.

Quais os problemas do solucionismo tecnológico?

A história única de que toda tecnologia é necessariamente neutra, melhor que os seres humanos para realizar determinada função ou a peça que falta no quebra-cabeça é extremamente perigosa. Primeiro, porque é simplista e preguiçosa. Atribui a uma mera ferramenta – por mais robusta que seja, ainda é uma ferramenta – soluções de problemas dinâmicos, complexos e construídos ao longo do tempo. Segundo, porque esquece que (como diz meu pai) dentro da palavra “bônus”, há a palavra “ônus”. E geralmente esse ônus é pago por coletividades distintas daquelas a quem se atribui o poder de escolher a tecnologia, o que é o retrato da injustiça. Terceiro, porque ignora as interfaces sociais, históricas, culturais, os interesse econômicos, as desigualdades no desenvolvimento, manipulação e emprego das tecnologias em geral. 

A história de que todas as tecnologias são sempre boas não pode ser a única, especialmente quando envolvem aplicações massivas e potencializadoras de problemas sociais. A perigosa e ingênua perspectiva de que as novidades geralmente produzidas em uma parte do mundo e importadas por outra são mecanismos perfeitos para necessidades (supostamente universais) não pode ser a única forma de alimentar os debates.

Há algum tempo a não-discriminação é uma preocupação presente no emprego de tecnologias cada vez mais detalhadas, embasadas em enormes volumes de dados pessoais e de alcance irrefreado. Pensar que o emprego da tecnologia não deve gerar discriminação, opotunidades desiguais ou desfavorecimento de uma parcela da população deve ser a base para conversas sobre tecnologia. Isso já aparece em quadros regulatórios ao redor do mundo, mas também deve ser compreendido no campo da técnica, academia, políticas públicas, setor privado e sociedade civil. A história única de que a tecnologia sempre ajuda pode envolver iniciativas louváveis, em alguma medida boas intenções, mas ter efeitos desastrosos, sejam eles conhecidos e previsíveis, ou não. 

A distribuição de tecnologia, desde seus processos de concepção, até de emprego e disponibilização, não pode ser vista como um cenário equilibrado, igualmente. Seja no quadro geopolítico remodelado pela Internet, nos campos diplomáticos de cooperação em pesquisa e desenvolvimento, nos índices alarmantes de exclusão digital no Brasil e no mundo, achar que a tecnologia percorre um fluxo natural e simplesmente chega ou não a determinados grupos (por obra do destino, talvez?) ignora as barreiras reais enfrentadas por milhares de pessoas ao desenvolvimento humano, social e econômico

Precisamos ouvir mais

Precisamos aprender a ouvir, a ver, a compreender os fatos de formas diferentes. Ainda que esse seja um exercício difícil, incômodo e até, para algumas pessoas, ameaçador. Saber os outros lados das histórias, ir além das orelhas dos livros e partir para enfrentar seus conteúdos densos e desconhecidos, ter contato com realidades distintas, assimilar ideias que nunca passaram pela cabeça.  Precisamos dedicar nossa atenção também ao que não necessariamente vivenciamos, mas que impacta outras tantas vidas. 

As aplicações tecnológicas, potencializadas pela digitalização, globalização, ou pelo que simplesmente nomeamos internet, também não têm uma história única. Nesse sentido, ignorar perspectivas diferentes sobre elas, não as direciona para o caminho do desenvolvimento. Não de um desenvolvimento justo, humano, sustentável e muito menos que sirva para que ninguém seja deixado para trás.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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