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Qual o futuro da internet que construímos em 2020?

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14 de dezembro de 2020

2020 foi um ano atípico para todos os setores, pessoas e classes. A internet ocupou uma centralidade até então nunca experimentada e passou a funcionar, de forma literal, como a conexão possível entre pessoas, serviços, relações pessoais e trabalho. Nesse contexto, discussões sobre os limites,  possibilidades da rede e as suas implicações políticas e sociais cresceram, assim como vimos momentos em que o uso e regulação da internet se demonstraram relacionados de forma mais evidente com questões econômicas e culturais. Temos, então, a oportunidade de refletir que tipo de sociedade digital queremos e qual estamos construindo

A digitalização de tudo – e os que ficaram de fora 

Grandes empresas e organizações já flertavam com o teletrabalho e digitalização de seus processos já há algum tempo. O contexto pandêmico, contudo, fez disso uma emergência, e a urgência da adaptação fez acelerar os planos possíveis de digitalização das atividades. Essa possibilidade de alguns, no entanto, não foi a realidade da maioria, que viram suas atividades impossibilitadas com a necessidade do isolamento social. De acordo com a pesquisa do Cetic.br de 2019, cerca de 28% das casas não possuem acesso à internet no Brasil. 47 milhões de brasileiros não utilizam a internet (o que significa dizer uma a cada quatro pessoas). E, ao olharmos para as classes D e E, 85% dos usuários da rede se conectam por aparelhos celulares. 

Em um texto para o blog do IRIS, Bárbara Simão propôs a reflexão de como desafios sociais e desigualdades experienciadas a nível estrutural se refletem na internet, fazendo com que as nossas brechas socioeconômicas afetem no modo como o acesso à internet é distribuído e viabilizado. A autora destaca que é preciso criticar as abordagens solucionistas pautadas na tecnologia, como se ela fosse capaz de restaurar nossos problemas sociais. Uma vez que o otimismo em relação às possibilidades da tecnologia é algo que se realiza em circunstâncias muito localizadas de privilégio no acesso, na educação, na infraestrutura e desenvolvimento de habilidades midiáticas. Há um imenso gargalo no acesso à internet no Brasil, que se desdobra em impossibilidade de acesso à informações, serviços e direitos. O texto também contempla como questões de privacidade e vigilância se acirram no cenário de digitalização massiva dos processos da vida e do trabalho. 

O texto de Ana Paula Camelo demonstra como o teletrabalho já era uma tendência no meio empresarial, e traz reflexões sobre quais são os desafios para aqueles que o tem como uma alternativa, já que a transição dos escritórios para o ambiente domiciliar não é evidente e exige adaptações de todas as partes. Há de se considerar, inclusive, o direito de se desconectar do trabalho. 

Da mesma forma, desafios se impuseram para crianças e adolescentes em idade escolar. Desigualdades no acesso à infraestrutura, internet e a possibilidade de uma inclusão digital eficiente – que permita que os sujeitos naveguem na internet com segurança para buscar o que precisam e tirar o melhor proveito dessa experiência – fizeram que as experiências dos alunos fossem encaradas de forma diferente pelos estudantes. O tema foi discutido no Café e Chat de maio, evento online transmitido no YouTube pelo IRIS. 

Maior fluxo de dados, maior a preocupação com a privacidade

2020 também fica marcado como o ano em que entrou em vigor no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados, em 18 de setembro. A lei, que foi objeto de algumas tentativas legislativas de adiamento, trouxe novos parâmetros de privacidade para o cidadão usuário da rede e obrigações para as organizações sujeitas à ela, com um texto que estabelece as hipóteses e responsabilidades para o tratamento de dados pessoais por agentes públicos e privados. Entre os desafios que ainda estão por vir está a consolidação da Agência Nacional de Proteção de Dados , que tem sido estruturada nas últimas semanas, e a criação do Conselho Nacional de Proteção de Dados. 

Há, ainda, a discussão sobre a necessidade de se regular o uso de dados pessoais para segurança pública, uma lacuna regulatória deixada pela LGPD. O tema foi discutido nesse texto por Gustavo Rodrigues, onde são apresentados os riscos da falta de parâmetros normativos para a atividade estatal em relação ao manuseio de dados pessoais, como o aumento da vigilância, práticas e abordagens discriminatórias e ameaça direta à privacidade dos cidadãos. 

O tema da privacidade foi uma preocupação recorrente, que tomou destaque em grandes escândalos de vigilância ou vazamento de dados pessoais. Em setembro o portal The Intercept tornou público um grande mecanismo de vigilância utilizado pelo governo, o Córtex, que seria capaz de cruzar dados coletados por câmeras de trânsito e outras bases de dados e entregar, em segundos e sem autorização judicial, uma grande quantidade de informações sobre os indivíduos, tais como: nome, CPF, endereço, emprego, cargo, salário, dentre outras informações. O caso foi trazido com detalhes nesse texto, com reflexões sobre como privacidade e políticas públicas não são ideias opostas, ao contrário, são complementares para a garantia de direitos e o exercício da cidadania. 

A internet não nos poupou das dores de 2020 – e nem poderia – mas nos ajudou a enxergar nossas fragilidades

Nesse ano atípico a internet nos possibilitou acessar serviços importantes, nos manteve conectados uns aos outros, nos permitiu informar sobre o que se passava e, ainda, foi uma importante fonte de formação, entretenimento e trabalho. No entanto, isso não nos salvou dos desafios que se impuseram nesse contexto de isolamento e emergência sanitária. As preocupações com as informações falsas nunca foram tão vitais, e encaramos, então, questões sobre o uso da internet e seus entraves com privacidade, moderação de conteúdo, vigilância, regulação de plataformas, fake news, vazamento de dados sensíveis de saúde, e tantos outros. 

Essas inquietações não datam de 2020, por óbvio, mas a densa digitalização da vida nos colocou face a algumas perguntas importantes para a internet que partilhamos e construímos. O Brasil ainda não superou a grande lacuna no acesso à internet dos usuários e, hoje, nos perguntamos não somente de que forma eles serão incluídos mas, também, qual a internet que temos a oferecer, assegurando que esse seja um espaço de exercício da cidadania e de desenvolvimento pessoal e social. Não nos interessa somente um maior número percentual de indivíduos conectados, mas é preciso fortalecer uma cultura de cidadania digital, onde usuários estejam preparados para usufruir da rede de forma plena, apropriando-se dela de forma devida e com o letramento digital necessário para uma experiência positiva na rede. 

2020 nos deu grandes desafios, e em resposta a eles tivemos grandes soluções, inimagináveis até pouco tempo atrás. No entanto, olhar para as nossas fragilidades expostas no enfrentamento dessas emergências nos ajuda a refletir sobre qual tecnologia queremos e como ela pode nos servir de forma eficiente. Frente a tantas questões em aberto, temos poucas certezas. A única delas que eu arriscaria colocar aqui seria de que essas são pautas que nos acompanharão nos próximos anos e que será preciso um esforço coletivo, multisetorial e multidisciplinar se quisermos abraçar todos esses problemas com a complexidade com que eles se apresentam

 

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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