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Capitalismo Regulatório ou Neoliberalismo? O caso da proteção de dados

Escrito por

12 de abril de 2021

O estudante de ciências humanas que decide se engajar com o tema da proteção de dados pessoais não raramente se depara com uma curiosa contradição: por um lado, somos ensinados que vivemos em um regime neoliberal marcado pela redução generalizada da intervenção estatal na economia, por outro, as últimas décadas mostram uma explosão regulatória no setor de proteção de dados.

Como conciliar essas duas imagens tão discrepantes? No post de hoje, apresento o conceito de capitalismo regulatório como uma alternativa analítica à narrativa convencional que associa neoliberalismo à desregulamentação de mercados. A seguir, busco demonstrar como esse conceito se aplica às regulações de proteção de dados pessoais.

Antes de iniciar a leitura, porém, uma ressalva é necessária: ainda que seu conteúdo aborde temas acadêmicos, este texto não é uma uma publicação científica. Seu objetivo é apresentar um contraponto a uma abordagem teórica que, embora bastante comum, está longe de ser a única sobre o neoliberalismo. Para um exame do conceito em suas diversas nuances, recomendo este artigo.

Desregulação: o conto de fadas neoliberal

O neoliberalismo é comumente descrito como uma doutrina econômica gestada em meados do século XX e implementada em diversos países a partir da década de 1970. No plano teórico, seu desenvolvimento estaria associado a economistas como Ludwig Mises e Friedrich Hayek, ao passo que sua concretização no campo político geralmente é vinculada a figuras como Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Alguns de seus pilares seriam a desregulação dos mercados, a privatização de bens públicos e a defesa geral de um papel reduzido do Estado na vida econômica – o Estado mínimo. Nessa narrativa, onde o neoliberalismo se impõe, o Estado se retrai

Exceto que a realidade observável parece contradizer essa descrição, conforme sugerem diversas pesquisas realizadas nas ciências sociais nas últimas décadas. A título de exemplo, um dos principais estudos sobre o assunto examinou as relações entre privatização e criação de agências reguladoras nos setores de eletricidade e telecomunicações em 171 países. Ele identificou não só uma forte correlação entre os dois fenômenos, como uma tendência maior à criação de agências reguladoras que à privatização desde os anos 1990. Outras análises comparativas com bases de dados referentes a outros setores têm obtido resultados idênticos:  onde o neoliberalismo se impõe, a burocracia regulatória aumenta.

Tais resultados têm suscitado ceticismo crescente em parte das ciências sociais a respeito da associação convencional entre privatização e desregulação, a qual já chegou a ser designado como “o conto de fadas neoliberal”. No lugar desse conto de fadas, sugerem esses céticos, estamos diante de uma expansão global do aparato de que o Estado se vale para regrar, monitorar e sancionar condutas. Assim, seria mais adequado falar do advento do “Estado regulador” ou das “culturas de auditoria que de um neoliberalismo que de fato reduzisse a intervenção estatal na economia.

Mas no que consistiria esse “Estado regulador”? Para o cientista político Giandomenico Majone, pioneiro dessa literatura, o conceito explicaria as mudanças ocorridas na governança econômica dos países europeus no fim do século XX. No Estado de bem-estar social, o interesse público era realizado via políticas de redistribuição de renda, as quais se efetivavam através da oferta de serviços públicos por empresas estatais. Diante da onda de privatizações que tomou a Europa no período, a regulação de mercados – outrora vista como uma intervenção econômica de menor relevância se comparada à estatização – passaria a receber cada vez mais atenção política, sendo enquadrada como um remédio para que objetivos sociais continuassem a ser alcançados na ausência de um setor produtivo controlado pelo Estado.

Além disso, esse processo seria fortemente estimulado pela integração econômica europeia, que limitaria cada vez mais as capacidades legais de tributação e dispêndio dos Estados-membros. Isso porque os custos das políticas redistributivas do Estado de bem-estar social (welfare state) seriam absorvidos pelo Estado e, por isso mesmo, seriam condicionados ao orçamento público, ao passo que os custos das políticas regulatórias recaem sobre o setor privado. Assim sendo, atores com orçamento reduzido, como a Comissão Europeia em comparação aos Estados, seriam incentivados a ampliar progressivamente o universo por eles regulado, pois este seria seu principal meio para estender sua esfera de influência. E essa ampliação reverberaria nos Estados-membros, responsáveis por implementar nacionalmente as normas gestadas no âmbito da comunidade europeia.

Todas essas mudanças também provocariam uma série de efeitos que reconfigurariam o conflito político:

No welfare state, as principais disputas eram orçamentárias, ao passo que no Estado regulador os conflitos centrais seriam sobre a formulação, interpretação e aplicação de regras. Consequentemente, se os principais grupos de interesse anteriores eram patronais, sindicais ou rurais, agora uma miríade de novos atores ganharia destaque: o caráter técnico-científico assumido pelos debates favoreceria maior atuação de especialistas em todas as etapas do processo regulatório; a substituição da administração direta por relações contratuais resultaria em protagonismo do Judiciário para mediar conflitos; a agenda regulatória tornar-se-ia crescentemente pautada por grupos de interesse associados a temáticas específicas que não se conectam necessariamente a um discurso sobre classes sociais, como movimentos ambientalistas e de defesa do consumidor.

Do Estado regulador ao Capitalismo Regulatório

Desde as publicações pioneiras de Majone, a teorização do papel da regulação na ordem institucional global foi criticada, refinada e complexificada. Nas próximas linhas, recupero alguns desses desenvolvimentos, frequentemente agrupados sob o termo “capitalismo regulatório”.

Em primeiro lugar, é importante notar que os conflitos relativos ao orçamento público e a políticas redistributivas não deixaram de ser absolutamente centrais à organização da vida política – basta olhar para a importância das discussões sobre a reforma previdenciária nas eleições de 2018 ou para os atuais debates globais sobre tributação das Big Tech. Além disso, o protagonismo das políticas regulatórias apresenta variação histórica substancial entre setores e países: o setor financeiro, por exemplo, era governado dessa forma em diversos países décadas antes do advento neoliberal e poder-se-ia argumentar que os EUA já eram um “Estado regulador” muito antes de Reagan.

Ademais, seria ingênuo presumir que tais mudanças são o simples resultado de governantes racionais reagindo a constrangimentos estruturais idênticos – incentivos à regulação como estratégia de controle e ganho de influência diante de um orçamento público reduzido. Pressões provenientes de entes internacionais cuja agenda é historicamente pautada por países do norte global, como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), também contribuem para a difusão global de padrões normativos gestados nesses países. Ainda, comunidades intelectuais transnacionais de especialistas operam como vetores das teorias e desenhos regulatórios produzidos nesses contextos, acelerando seu escoamento para o sul global. 

Mas, para além disso, o fenômeno em questão não se resume a mais regras e autoridades estatais sobre a iniciativa privada. O próprio Estado sofre seus efeitos: um estudo sobre o tema no Reino Unido, por exemplo, demonstrou um crescimento explosivo no número de servidores públicos especificamente voltados à regulação e supervisão interna dos entes governamentais mesmo quando o número total de servidores públicos do país estava em queda abrupta.

De fato, um dos aspectos cruciais dessas transformações é o alastramento generalizado dos meios de controle do comportamento institucional, sejam eles direcionadas a entes públicos ou privados. Essa proliferação não se restringe à multiplicação dos mecanismos legais tradicionais de comando e controle – criação e aplicação de regras vinculantes -, mas se expressa também na diversificação das estratégias e tecnologias de governo: observa-se, portanto, uma relevância crescente de instrumentos de responsabilidade social corporativa, como sistemas de auditoria, relatórios organizacionais, códigos de conduta, listas de princípios, rankings de transparência, selos e certificações. 

Diante dessa complexificação do repertório regulatório, o próprio enquadramento do debate público muda. Questões outrora tomadas como indubitavelmente políticas (“Mais ou menos Estado na economia?”) agora muitas vezes assumem um caráter alegadamente técnico (“Que tecnologias regulatórias são mais eficientes para alcançar este ou aquele objetivo?”, onde o objetivo é narrado como dado, consensual e apolítico). E tendo em vista que as disputas políticas quanto à eficácia e à legitimidade dos meios regulatórios dependem de atores alegadamente técnicos, como tribunais e organizações científicas, o resultado é um papel político cada vez maior da expertise no enquadramento dos problemas sociais e econômicos e na legitimação das soluções regulatórias.

Para o cientista político David Levi-Faur, coordenador do estudo citado na seção anterior, o capitalismo regulatório não se reduz à ascensão do neoliberalismo ou ao esvaziamento do poder estatal. Suas características são: 

1) nova divisão do trabalho baseada na privatização; 

2) delegação da autoridade pública para agências reguladoras independentes, quando antes esta tendia a ser exercida diretamente através de ministérios e empresas estatais; 

3) diversificação das tecnologias regulatórias; 

4) formalização cada vez maior das relações interinstitucionais e intrainstitucionais; 

5) aumento na influência de especialistas e comunidades transnacionais de especialistas. 

O caso da proteção de dados pessoais

Quando se inicia o estudo sobre a história da privacidade informacional, é difícil afastar a sensação de disparidade entre os eventos das últimas décadas e a narrativa da desregulação neoliberal.  Se tomarmos como exemplo a Europa, referência na difusão global da proteção de dados pessoais como campo regulatório autônomo e específico, o exame do período só mostra a atividade regulatória se intensificando:

Em 1981, o Conselho Europeu aprovou a Convenção 108, que definiu conceitos fundamentais, como o de dado pessoal, e padrões mínimos a serem observados pelas empresas. Em 1995, a União Europeia publicou sua Diretiva 95/46/E22, cujo escopo amplo incluía a obrigação de que cada Estado membro do bloco criasse uma agência reguladora responsável pela matéria. Em 2016, o bloco promulgou o Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais (General Data Protection Regulation GDPR), uma norma que disciplinou extensamente o tema e se tornou referência global, sendo inclusive o modelo para a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira.

Em 2021, 128 países possuem leis de proteção de dados e dezenas deles dispõem de agências reguladoras responsáveis por normatizar e supervisionar o tratamento dos dados pessoais de seus cidadãos. Para além da visibilidade que a relação entre dados pessoais e direitos fundamentais tem adquirido nos últimos anos, não é difícil entender os porque tantos legisladores escolhem regrar o setor em moldes similares: a aprovação de uma lei de proteção de dados informada por certos padrões e a instituição de uma autoridade responsável por sua aplicação são requisitos tanto para a entrada na OCDE como para a livre circulação de dados entre os países e a Europa. 

No Brasil, também é visível a influência da comunidade transnacional de especialistas em privacidade: algumas principais referências no debate sobre a matéria são juristas cuja produção recebe forte influência na tradição europeia, como Danilo Doneda e Laura Schertel. A influência desses especialistas vai além da esfera acadêmica, onde suas obras circulam amplamente, e incide diretamente sobre a construção das políticas públicas, contribuindo para formar os entendimentos dos formuladores de políticas sobre quais os objetivos de uma lei de proteção de dados e quais os melhores meios para alcançá-los.

Se examinarmos o desenho de nossa Lei Geral de Proteção de Dados, duas características associadas ao capitalismo regulatório saltam aos olhos. Em primeiro lugar, sua aplicabilidade ao setor público se conecta à lógica de maior supervisão e controle em todas as esferas da vida institucional, não apenas da iniciativa privada. Adicionalmente, a lei articula os mecanismos tradicionais de comando e controle, visíveis nas competências normativa, fiscalizadora e sancionatória da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a todo um ferramental heterodoxo de regulação. Essas ferramentas incluem códigos de conduta, relatórios de impacto, selos e certificações. Desse modo, pode-se dizer que a lei adota uma abordagem povoada por elementos de regulação responsiva e baseada num forte diálogo entre regulador e regulados.

Em suma, as cinco características descritas por Levi-Faur podem ser verificadas sem grandes dificuldades na análise da proteção de dados pessoais –  o que pode sugerir que o conceito de capitalismo regulatório talvez seja mais apto a descrever a globalização da regulação que a narrativa tradicional.

Para além do neoliberalismo

Décadas após as reformas privatistas-liberais associadas a governos tipicamente neoliberais, o mundo se encontra mais regulado, não menos. Diante dessa constatação, cabe às ciências sociais investigar as causas e as consequências da explosão regulatória na vida institucional. A investigação desse fenômeno pode nos conduzir a  outros achados relevantes para o entendimento geral do momento histórico em que estamos vivendo, como a politização crescente da expertise num momento em que o enquadramento das questões públicas é cada vez mais despolitizado. Sob essa ótica, o conceito de capitalismo regulatório pode nos ensinar muita coisa.

Quer aprender mais sobre proteção de dados? Confira nosso post sobre a importância da lei para o Brasil.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset

Escrito por

É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.

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