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A greve dos entregadores de aplicativo e o Projeto de Lei 3.748

3 de agosto de 2020

No mês de julho de 2020, as greves dos entregadores de aplicativo, marcada pela hashtag #brequedosapps, ganhou as redes sociais e os veículos de notícias, trazendo à tona as suas reivindicações por melhores condições de trabalho e por uma relação mais justa entre as plataformas e os trabalhadores que delas tiram seu sustento.

Essa situação chamou a atenção até mesmo da classe política, ensejando a proposição de um projeto de lei que busca regulamentar a relação existente entre as empresas de entrega e os trabalhadores de aplicativo. No post de hoje, apresentamos mais informações sobre a situação desses trabalhadores, sobre o breque dos apps e sobre as iniciativas legislativas que versam sobre os famosos aplicativos de entrega e serviços sob demanda.

Os entregadores, as greves e os Projetos de Lei

Em suas motocicletas ou bicicletas, os entregadores de aplicativos se tornaram figuras comuns no panorama das cidades brasileiras – com suas grandes mochilas, carregando mercadorias de um lado a outro da cidade. Com a pandemia, enquanto muitos se fecharam em casa, esses trabalhadores continuam nas ruas, garantindo que as pessoas enclausuradas em suas residências recebam seus lanches e produtos.

Essa condição precária, com a ausência de equipamentos de proteção adequada, com elevada exposição ao risco de contaminação do novo coronavírus e com baixa remuneração, levou os trabalhadores às ruas em uma greve contra os aplicativos de entrega em 01/07, tomando também as redes para influenciar consumidores a não utilizarem essas plataformas. Outra greve se seguiu, dessa vez no sábado de 25/07, embora com menos participação da categoria.

Organizando-se por vias digitais, os trabalhadores expuseram a situação precária a que está submetida a categoria, além de demandarem mudanças na remuneração das corridas. Outras exigências foram o fim dos bloqueios injustificados e do fim do sistema de pontuação, bem como um auxílio constante enquanto durar a pandemia, com o fornecimento de máscaras e álcool em gel, por exemplo.

Ainda que com pautas diversas, haja vista a diversidade da categoria e a busca de uma parcela dos grevistas pelo reconhecimento da carteira assinada conforme a CLT, os trabalhadores se uniram em prol de melhores condições de trabalho e de remuneração.

Tendo em vista solucionar esse problema, foi proposto um projeto de lei para regulamentar o trabalho sob demanda, capitaneado pela deputada Tábata Amaral (PDT-SP) -­­ o PL 3.748/2020. Tal projeto se somam às iniciativas de outros parlamentares, como a de Ivan Valente (PSOL-SP), cujo projeto de lei de número 1.665/2020 busca garantir aos entregadores materiais básicos de higiene para prevenção, e a de Rubens Otoni (PT-GO), que com o projeto de Lei 3.538/2020 visa assegurar uma licença remunerada aos trabalhadores que precisem se ausentar do trabalho por razões médicas.

Assim, diante da ausência de respostas por parte das plataformas de entregas frente as demandas dos trabalhadores, agora a disputa caminha para a arena legislativa pelas mãos dos parlamentares, sem a devida presença das partes interessadas no debate, quais sejam os entregadores e as empresas.

A situação dos aplicativos de entrega no Brasil

Seguindo a tendência dos aplicativos de transporte, surgiram diversas plataformas que se propuseram a revolucionar algo que muitos brasileiros já conheciam: o delivery. Empresas como iFood e Uber entraram na onda e soterraram os consumidores com cupons de desconto enquanto arregimentavam uma força de trabalho de entregadores, motorizados ou não.

Assim como no caso dos motoristas por aplicativo, não demoraram a aparecer problemas no modelo de delivery por aplicativo, como bloqueios inusitados, a diminuição constante na remuneração das entregas e um intrincado sistema de pontuação capaz de surpreender até mesmo os entregadores mais antigos. Tais problemas se intensificaram no contexto da pandemia, em grande medida devido ao fato de que esses trabalhadores estão alheios ao sistema de seguridade social brasileiro e muitos também não tiveram acesso ao auxílio emergencial disponibilizado pelo governo, o que os fez continuar na rua.

Algumas batalhas foram travadas no Poder Judiciário, como a liminar que obrigava o iFood a pagar entregadores afastados por coronavírus – posteriormente derrubada na segunda instância, em ação movida pelo MPT de São Paulo (Processo de n. 1000396-28.2020.5.02.0082). Assim, na contramão dos países europeus e até mesmo dos Estados Unidos, que já vêm reconhecendo o vínculo entre as empresas e os trabalhadores na via judiciária, o Brasil continua sem oferecer uma resposta satisfatória para o problema, e é aí que entram os novos projetos de lei.

Algumas considerações sobre o Projeto de Lei 3.748 DE 2020

O Projeto de Lei 3.748, da deputada Tabata Amaral, se propõe a enfrentar uma tarefa árdua: a de instituir e dispor sobre o regime de trabalho sob demanda, que hoje existe no Brasil em um limbo entre a informalidade e o regime celetista, em constante disputa a respeito de qual o regramento legal apropriado para reger essas relações. Apesar da iniciativa louvável, contudo, o projeto precisa ser analisado a partir de uma perspectiva mais crítica, para que o debate não se perca na leitura superficial da proposta.

Algumas propostas legislativas já são vistas em outros países, sendo a mais chamativa o Assembly Bill número 5 (o chamado AB5) da Califórnia, que determinou existir relação de emprego entre aqueles trabalhadores que eram tratados como contratantes independentes e as empresas que os arregimentam.

O grande mérito do PL 3.748 está em trazer à tona à necessidade de regulamentação do trabalho sob demanda, que é aquele em que o trabalho é prestado a partir das plataformas de serviço sob demanda, levando o tema à arena de debates legislativos. Contudo, o projeto corre o risco de ser ofuscado por alguns problemas de sua redação, bem como pela possibilidade de descaracterização da proposta inicial, de forma semelhante ao que ocorreu com o projeto de combate às fake news.

De um lado, o projeto busca prevenir abusos aos direitos dos trabalhadores nas cadeias de valor das plataformas, regulamentando as penalidades aplicadas, atendendo em parte a uma demanda dos trabalhadores. Além disso, o PL aponta que as plataformas devem adotar medidas para evitar riscos inerentes à prestação de serviços, bem como obriga as empresas a fornecerem equipamentos de proteção individual ou coletiva, ou indenizar os trabalhadores que os adquirirem.

Ainda, o PL propõe regras a respeito da licença maternidade e afastamento remunerado em caso de incapacidade temporária aos trabalhadores acidentados ou doentes. Em suma, incorpora algumas proposições já presentes em projetos de lei de outros parlamentares, enquanto almeja concluir uma tarefa hercúlea: regular o trabalho por aplicativo no Brasil, ainda que deixe em aberto a possibilidade de se reconhecer o vínculo de emprego entre as empresas e os entregadores, desde que estejam presentes os elementos que caracterizam a relação de emprego, na forma da CLT.

Por outro lado, o projeto apresenta um problema ao tratar apenas do tempo em que esses trabalhadores estiverem em efetivo serviço, desconsiderando o tempo de espera para conseguir um pedido. Esse aspecto é visto como problemático na categoria pois, ao contrário dos motoristas que podem realizar uma corrida após a outra, o tempo de trabalho em que ficam logados no aplicativo não será remunerado.

Além disso, o projeto desconsidera a existência da categoria do contrato de trabalho intermitente, inovação legislativa trazida pela Lei n. 13.467/17, a Reforma Trabalhista, no artigo 452-A da CLT, que garante direitos como férias, adicionais legais e o descanso semanal remunerado, além de ser um modelo de contrato pensado para o trabalho intermitente, que é aquele em que o período de trabalho é intercalado por períodos de inatividade, em que o trabalhador não presta serviços à empresa.

Nesse sentido, o PL propõe um regime alternativo de trabalho, sem as garantias e direitos que são inerentes ao regime do contrato de trabalho intermitente. Assim, pode trazer mais malefícios que benefícios aos trabalhadores.

Em suma, a deputada apresenta um projeto que regula essas relações de cima para baixo, desconsiderando a construção jurisprudencial e doutrinária já existente sobre o tema. Vale notar, inclusive, que a própria classe dos trabalhadores não teve participação na elaboração de tal projeto. 

Caminhar adiante, sem esquecer o que ficou para trás

Os aplicativos de trabalho sob demanda são hoje um fenômeno no Brasil que merece a devida atenção. Já são diversas empresas que emulam o sistema de delivery por plataforma, porém negando existir qualquer vínculo entre si e os trabalhadores  

Os efeitos desse fenômeno serão sentidos de forma mais drástica com o avançar do desemprego no país em decorrência da pandemia e com a entrada cada vez maior de trabalhadores nesse sistema de trabalho, fazendo com que mais trabalhadores estejam submetidos a esse regime de trabalho que hoje lhes coloca em perigo.

Não se pode, no entanto, perder de vista a necessidade de garantir o mínimo de direitos e segurança aos trabalhadores que hoje são uma parte integrante da vida das grandes cidades brasileiras.

Por outro lado, é preciso caminhar com extremo cuidado ao lidar com projetos de lei que buscam resolver o problema de maneira simplista e deixam de lado instrumentos já existentes em nossa legislação que são melhores para atender às demandas dos trabalhadores. É necessário caminhar adiante – claro –, mas sem esquecer aquilo que ficou para trás, para que seja possível evoluir as proteções legais para os trabalhadores sem esbarrar em erros já superados do passado.

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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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