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Por que virar a chave parece tão difícil?

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18 de outubro de 2021

Virar a chave para a defesa do uso e desenvolvimento de criptografia forte é o lema de uma campanha global movida por diversas entidades. Por proporcionar segurança, não apenas em comunicações privadas, mas em praticamente todas as operações digitais, inclusive a nível governamental, a criptografia é uma proteção para toda a sociedade. Então, por que defendê-la? E por que parece tão difícil virar a chave para entendê-la como aliada e não como ameaça ao estado democrático de direito?

A parte afeta o todo

Como em outras discussões, é totalmente razoável, inclusive, desejável que abusos ilícitos e crimes sejam combatidos. A forma como isso acontece e a relação custo-benefício de propostas para endereçar questões relativas à tecnologia é que precisa de atenção melhor direcionada. Várias percepções relativas à criptografia e investigações criminais foram levantadas nesta pesquisa. Uma delas envolve uma aparente excepcionalidade em padrões fortes de criptografia, para viabilizar, em casos específicos, que ela seja superada. Alguns pontos, contudo, ficam em aberto diante de propostas como essa.   

Primeiramente, não é possível afirmar que a investigação de crimes significa diretamente seu combate, ainda que desejável. A própria percepção de que a criminalização de condutas as inibem é questionada há muito tempo pela doutrina penal. O exemplo mais óbvio é de homicídio que, desde tempos imemoriais (ou bíblicos, se preferirem) é condenável, mas continua acontecendo. Para além das discussões das teorias penais e processuais penais, um país que deixa viaturas sem combustível ou nem garante a proteção à vida dos policiais, não pode colocar a conta na impunidade sobre uma tecnologia específica. 

Além disso, se superar a criptografia comprovadamente resolvesse crimes e tornasse a sociedade mais segura, o que não está provado, isso ainda assim não poderia ser feito de forma excepcional. Quer dizer, a inserção de mecanismos de fragilização da criptografia comprovadamente deteriora a segurança de todo o sistema e, portanto, de todos que o utilizam. Isso porque uma vulnerabilidade sistêmica pode ser explorada por agentes mal intencionados, sair dos limites institucionais e comprometer o algoritmo criptográfico. Nesse sentido, a segurança social e o direito que temos a informações confidenciais, autênticas, disponíveis e confiáveis seriam violados por uma parcela bem menor da população. Como em outros casos, a conta não fecha

Como e por que virar a chave?

Quando diferentes entidades, ao redor do mundo, se mobilizam pela importância de não apenas manter, mas também promover a criptografia forte, existe um sinal evidente de sua necessidade. Virar a chave, nesse sentido, significa: 

  • Compreender a importância da criptografia para toda a sociedade; 
  • Abandonar ideias que criem alternativas/exceções/relativizações, imponham proibições ou simplesmente inviabilizam a criptografia forte; 
  • Incentivar a adoção de padrões elevados de criptografia por diferentes atores e em diferentes setores. 

As razões incluem garantias e direitos sem os quais uma sociedade não se sustenta: a liberdade de expressão e pensamento, a proteção aos dados pessoais e à privacidade, a segurança e a presunção de inocência. Tudo está em risco se os padrões tecnológicos que passaram a fazer parte de nossas vidas, nas mais diversas esferas, são enfraquecidos. É preciso pensar em tecnologia e sociedade andando juntas e reconhecer as mútuas conexões. Especialmente para determinados grupos, como dissidentes políticos e opositores, ativistas e jornalistas, ou aqueles que garantem o crivo da sociedade civil sobre ações públicas e privadas, a criptografia pode ser a literal camada entre a vida e a morte. Por isso, o IRIS promove, no Dia Global da Criptografia, o webinar: A importância da Criptografia para Ativistas e Sociedade Civil.

É possível virar a chave

Nesse contexto, virar a chave parece difícil porque toca em valores, crenças e percepções com as quais lidamos enquanto sociedade apenas de forma recente. Existem questões a serem endereçadas, mas elas não podem colocar em risco o que já conquistamos frente aos avanços tecnológicos e as novas proporções que tomaram em nossa vida. Questionar, então, o nível de razoabilidade, de acurácia metodológica de supostas evidências, e analisar efetivamente custos e benefícios (inclusive coletivos) são passos importantes para o compromisso de zelar por toda a sociedade. 

Virar a chave não significa, por fim, ficar inerte. A proposta é uma mudança de abordagem, uma virada na forma de enxergar os problemas e, por conseguinte, as soluções. Já existem propostas que buscam balancear de forma mais razoável as necessidades institucionais e a preservação integral da criptografia. Precisamos nos dedicar a elas para seguir caminhos mais viáveis e seguros.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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