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O que acontece com o perfil de quem já se foi? Repercussões da morte do usuário nas redes sociais

20 de julho de 2020

A morte dos usuários de internet levanta questionamentos quanto à possibilidade ou não de transmissão de suas contas pessoais em redes sociais aos eventuais herdeiros. Não raro tal problema é encarado sob a lógica de uma suposta herança digital. Todavia, situações como essa apresentam-se como problema multifacetado, com relevantes repercussões patrimoniais e existenciais, que precisam ser ponderadas.

O problema da morte do usuário de redes sociais

De acordo com Carl J. Öhman e David Watson, pesquisadores da Universidade de Oxford, antes de 2100, ao menos 1,4 bilhão de usuários já terão morrido, se o Facebook deixar de atrair novos adeptos. Se a rede social continuar a se expandir, esse número é exponenciado, superando a marca de 4,9 bilhões de perfis de pessoas falecidas (https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/2053951719842540). A vivência da morte no meio digital tem desencadeado novas situações fáticas, como aquelas em que parentes do falecido pleiteiam o acesso ao seu perfil. Alguns, conhecedores das senhas do morto, simplesmente o sucedem nas postagens e nos compartilhamentos, como forma de manterem certa conexão com quem já se foi e com o círculo de amizades que deixou. Em outras hipóteses, demandas judiciais são propostas para se obter o direito de visualizar todo o conteúdo presente na plataforma digital, como no caso de uma mãe que objetivava informações acerca do óbito da filha ocorrido em uma estação de metrô em Berlim (https://www.dw.com/en/berlin-court-rules-grieving-parents-have-no-right-to-dead-childs-facebook-account/a-39064843). Há, ainda, situações em que os familiares almejam a exclusão da conta da pessoa falecida por motivos variados, como o melhor enfrentamento do luto ou a preservação de sua imagem.    

Ocorre que uma única plataforma de rede social pode conter em si uma série de distintas aplicações. A título de exemplo, o Instagram permite a postagem de fotos, o compartilhamento de momentos por um curto período de tempo (story) e mesmo conversas e comunicações privadas por meio do direct. Esse complexo de ferramentas acrescenta novas dificuldades à transferência das contas do titular falecido a terceiros administradores. Isso porque podem estar sobrepostas situações existenciais, que demandam a proteção de aspectos da pessoalidade, e circunstâncias de natureza patrimonial, que se relacionam à valoração econômica do perfil.

O ordenamento jurídico brasileiro não fornece instrumentos específicos que abordem o destino das contas em redes sociais, em caso de morte do usuário, devendo se fazer uso de institutos gerais já previstos em norma. Todavia, diante de questão que envolve direitos de discrepantes características, demonstra-se apropriado um enfoque apartado entre os perfis ordinários e aqueles monetizados, que expressem ganho econômico ao seu titular. 

A abordagem jurídica de perfis não monetizados

A maior parte dos perfis presentes em redes sociais não se revela como fonte geradora de ganhos econômicos diretos pelo usuário. Nessas situações corriqueiras, a rede social opera simplesmente como plataforma de comunicação, de compartilhamento de conteúdo e de interação entre os seus membros, sem que haja objetivo intrínseco de monetização. Relativamente a esses perfis, prevalece a lógica de proteção assentada nos direitos da personalidade, como a imagem, a privacidade, a honra e a identidade, que são direitos pessoais e intransmissíveis.

A ausência de valoração patrimonial dessas contas leva à compreensão de que tais relações não são alcançadas pelo direito sucessório, que cuida especificamente do destino do patrimônio que uma pessoa deixa após a sua morte. Desse modo, não há que se falar em herança digital, pois não há quaisquer bens dotados de valoração econômica a serem repassados para os respectivos herdeiros.

Devem prevalecer, quando existentes, as escolhas sobre o destino da conta realizadas pelos indivíduos em cada uma das plataformas ou em outro instrumento negocial legítimo. O Facebook, por exemplo, dá ao usuário a possibilidade de indicação de terceiro, que ficará responsável pela administração da conta, transformada em memorial, ou a exclusão definitiva do perfil na rede social. Se ausente a manifestação de vontade expressa do usuário deve ser dado tratamento jurídico a partir da lógica dos direitos da personalidade. Ou seja, impõe-se uma tutela protetiva dos aspectos pessoais do indivíduo, de acordo com o que seriam seus interesses e preferências, quando aferíveis no caso concreto. Quando não constatáveis, a prudência indica a solução pela exclusão dos dados, por ser a melhor forma de prevenção de danos futuros, salvo em situações muito específicas e devidamente justificadas.

A abordagem jurídica de perfis monetizados

A discussão coloca-se em outras bases quando o enfoque se dá nos perfis em redes sociais de pessoas famosas, celebridades e influencers digitais. Isso porque muitos desses perfis são monetizados, geram lucros aos seus titulares, tanto por meio de publicidade e anúncios, quanto pelo número de acessos e visualizações. Por exemplo, Felipe Neto, um dos youtubers mais visto no mundo, lucrou só em 2019 cerca de trinta milhões de reais com o seu canal (https://extra.globo.com/famosos/felipe-neto-fecha-2019-com-30-milhoes-mais-no-bolso-so-com-canal-no-youtube-24165351.html). Ainda é preciso considerar que o número de acessos a esses perfis costuma aumentar após o óbito do indivíduo, em virtude da divulgação da morte pela mídia, maximizando o potencial de geração de lucros.      

Nesses casos, a questão extrapola a discussão acerca de direitos de personalidade e invade a seara patrimonial, redundando em transmissão de herança. Afinal, é até mesmo intuitivo concluir pelo direito de os herdeiros do falecido continuarem a receber os rendimentos provenientes desses perfis e canais após a morte do titular da conta. Contudo, a solução não pode se restringir a aplicar as regras do direito sucessório já existentes na legislação brasileira, atribuindo aos herdeiros amplo acesso a essas contas e perfis, uma vez que há conteúdo de caráter privado, tanto do falecido quanto de terceiros. 

Tem se firmado o posicionamento de que os interesses patrimoniais devem ser separados dos existenciais na rede, conferindo-se a cada um tratamento próprio. Ou seja, transferem-se aos herdeiros os direitos patrimoniais e resguardam-se os existenciais. Ocorre que realizar essa distinção não é tarefa fácil. Aplicativos como Facebook e Instagram possuem a linha do tempo com postagens públicas e chats privados de conversa, não sendo factível, em suas configurações atuais, a separação total dos dois campos. 

Acredita-se que qualquer regramento do assunto deva considerar essas especificidades e, inclusive, contar com modificações na própria arquitetura das redes sociais para uma tutela efetiva. Por exemplo, poderia ser pensada uma solução que envolvesse o bloqueio e, posteriormente, a exclusão de todo o conteúdo dos chats privados do falecido e a disponibilização apenas do acesso ao feed e a publicações futuras, como forma de proteção da privacidade.

Conclusão

A partir das considerações feitas, conclui-se que o termo “herança digital” não é adequado para o tratamento de perfis de pessoas falecidas em redes sociais, uma vez que a complexidade das questões envolvidas extrapola os contornos do direito sucessório. Necessariamente, deve ser considerada uma conjunção de aspectos, como as disposições de vontade deixadas pelo falecido (seja nas próprias plataformas, seja em testamento ou outros instrumentos legítimos), o direito dos herdeiros, quando o perfil for monetizado, os direitos de personalidade do morto e de terceiros e até mesmo os contratos firmados pelo usuário da rede social.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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