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Parecer sobre desindexação global no caso CNIL vs. Google

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11 de fevereiro de 2019

Existem muitas formas de se saber mais sobre alguém. Hoje, uma das principais é buscando o nome da pessoa na internet. Na Europa, o reconhecimento de um direito à remoção de resultados de busca na internet por nome (popularizado como desindexação), criou discussão judicial cujo resultado pode afetar todos nós. Agora, cabe ao Tribunal de Justiça da União Europeia decidir: a desindexação deve ocorrer em escala global? Quem deve ter o poder de decidir o que é desindexado e para quem? Leia mais sobre!

 

Desindexação como controle informacional

Advogados do direito ao esquecimento, como Dan Shefet, dirão que esta garantia se baseia na ideia de que podemos errar e mudar, não sendo justo que o passado seja eternamente trazido à tona. Daí surge a desindexação, a forma de “ser esquecido” na internet.

A ideia do direito ao esquecimento tem conexões com a bandeira principal do movimento cypherpunk, que surgiu em meados dos anos 1990: “o poder de se revelar seletivamente ao mundo”. Quer dizer, a escolha sobre o que (não) vai aparecer quando alguém procura seu nome na internet seria sua.

O caso mais marcante no qual alguém conseguiu ter esse direito de escolha reconhecido foi com um cidadão espanhol, em 2014. Ele havia enfrentado problemas com dívidas no passado, mas já havia resolvido. Mesmo assim, procurando o nome dele no Google, ainda era possível ver que seu imóvel fora posto a leilão. A Corte Europeia foi acionada, e decidiu que o Google era, sim, responsável por remover aqueles links do resultado de busca pelo nome dele A decisão foi baseada na então Diretiva 46/95, hoje substituída pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD).

A partir daí, ocorreram mudanças na forma como o Google lida com pedidos de remoção de resultado de busca (desindexação). Atualmente, os cenários comuns para remoção de link mediante solicitação do interessado são:

  • Ausência clara de interesse público
  • Informações confidenciais
  • Conteúdo relacionado a menores
  • Condenações executadas/exonerações/absolvições por crimes

Desde 2014, é lançado periodicamente um Relatório de Transparência sobre o assunto. Entre todos os países europeus abrangidos pela regulação, foram removidas mais de 1 milhão de URLs (links) de resultados do Google para busca por nome dos indivíduos interessados. Mais de 300 mil eram notícias.

Entretanto, assim que   iniciada a remoção de resultados, surgiram questionamentos: quais são os países abrangidos pelo direito a desindexação – todos os estados-membros abrangidos pela regulação europeia, ou somente o que originou o litígio, ou todos onde o link for acessível? E como essa restrição deve funcionar – por nome de domínio do navegador, por bloqueio geográfico do resultado em certos locais de acesso? O exemplo dado pelo Google sobre como ele faz para desindexar conteúdo desde aquela decisão sobre a diretiva europeia é bastante esclarecedor:

Por exemplo, digamos que removemos um URL como resultado de uma solicitação de John Smith no Reino Unido. Os usuários no Reino Unido não poderão ver o URL nos resultados da pesquisa para consultas com [john smith] ao pesquisar em qualquer domínio da Pesquisa Google, incluindo google.com. Os usuários fora do Reino Unido poderão ver o URL nos resultados da pesquisa quando pesquisarem por [john smith] em qualquer domínio não europeu da Pesquisa Google.

 

Jurisdição internacional e mecanismos de busca

pôr do sol na praiaA comissão francesa de proteção à liberdade na internet (CNIL) questiona esse limite territorial que o Google aplica. Seu argumento é que a desindexação só seria efetiva quando ocorresse globalmente. Isto é, que um cidadão francês, por exemplo, só teria seu direito garantido se, em qualquer lugar e a partir de qualquer dispositivo do mundo, se tornasse impossível obter o link indesejado ao buscar seu nome em qualquer versão do buscador.

O Google, por sua vez, entende que isso seria jurisdição extraterritorial e  questionou judicialmente essa interpretação da CNIL. Esse tipo de jurisdição não é algo intrinsecamente negativo, sendo aceito normalmente em locais delimitados, como embaixadas e navios. Porém, pode ser perigoso quando um direito europeu estaria afetando o acesso à informação global.

A jurisdição administrativa francesa (competente para julgar pedidos relativos à CNIL) levou a demanda à Corte Europeia, no caso C-507/17. Por discutir a territorialidade da aplicação da diretiva europeia, considerou que a França não poderia julgar a matéria sem antes averiguar o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre assuntos preliminares.

O processo tramita desde agosto de 2017, com participação de organizações como Wikimedia Foundation Inc., Fondation pour la liberté de la presse, Microsoft Corp., Reporters Committee for Freedom of the Press e.a., Article 19, Internet Freedom Foundation, que se manifestaram na audiência ocorrida em 11 de setembro de 2018.

O debate gira em torno de 3 questões:

  • se a desindexação deve ser global, estendendo-se a todos os nomes de domínio do mecanismo de busca [ex: google.fr, google.com, google.com.br];
  • caso negativo, se a desindexação deve ser feita considerando o nome de domínio do buscador utilizado, para filtrar pelo i) Estado onde a desindexação foi aplicada ou, ii) se ela se aplica a todos os Estados-Membros da União Europeia;
  • em complemento à segunda questão, caso feita desindexação através de “bloqueio geográfico”, se o alcance seria a quem busca a partir de endereço IP [protocolo de identificação de uma máquina na rede]: i) localizado no país de residência do beneficiário do direito à desindexação, ou, ii) de forma mais genérica, localizado num dos Estados-Membros aos quais se aplica a diretiva.

Em janeiro de 2019, um advogado geral do Tribunal Europeu, Maciej Szpunar, apresentou seu parecer consultivo. Ele não vincula o julgamento final, ainda aguardado, mas esse é o primeiro documento propositivo publicado sobre o litígio [até o presente, somente em francês]. Vale destacar os principais pontos:

  • No parágrafo 46, conclui que deve haver distinção segundo o local a partir do qual a busca é realizada. As buscas feitas fora do território da União europeia não devem ter desindexação de resultados de busca.
  • No parágrafo 75, denota que desindexação deve ser feita não no escopo nacional, mas no da União Europeia.
  • No parágrafo 78, propõe que sejam suprimidos os links controversos dos resultados de uma busca feita a partir da União Europeia. Isso inclui a técnica de bloqueio geográfico em endereços IP considerados localizados em Estados-Membros sujeitos àquela lei, não importando o nome de domínio utilizado pelo internauta que realiza a busca.

 

Evitando o “tudo ou nada” na regulação da internet

O acesso à informação é hoje dependente da indexação. O desfecho desse caso pode definir importantes questões sobre como normas interagem com agentes globais da internet, e sobre a amplitude de nossos horizontes nesse ambiente.

O modelo de regulação global unilateral sobre desindexação de conteúdo parece não ser o ideal. Nele, o julgamento de outros locais sobre o que são links considerados controversos afetaria o que é acessível a você, por exemplo. Vale considerar que esse modelo não é o único, e já existe um em prática, que até 2014 era despercebido.

O poder de indexar e desindexar, na medida em que existem links e conteúdo que circula e pode ser ordenado de muitas formas, é invariavelmente exercido por alguém – e isso gera disputas. Para que não se perca o controle, é preciso acompanhar em que medida existe, neste importante serviço global, transparência e respeito às diretrizes de uma internet democrática, livre e humana.

O que você pensa da proposta do advogado geral europeu sobre territorialidade da desindexação? Para mais discussões sobre jurisdição e seus desafios frente à internet, convido a ler nosso paper “Competência Internacional de Tribunais Estatais e Litígios de Internet”.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

 

Escrito por

Coordenadora de Pesquisa e pesquisadora no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestra em Direito da Sociedade de Informação e Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Membro dos grupos de pesquisa Governo eletrônico, inclusão digital e sociedade do conhecimento (Egov) e Núcleo de Direito Informacional (NUDI), com pesquisa em andamento desde 2010.

Interesses: sociedade informacional, direito e internet, governo eletrônico, governança da internet, acesso à informação. Advogada.

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