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NFT: o que é, para que serve e o que dizer a respeito?

Escrito por

6 de abril de 2021

Recentemente, os chamados NFTs – non-fungible tokens – passaram a receber grande atenção midiática. Trata-se de uma invenção que traz implicações significativas para o ambiente de distribuição de artes digitais, e até mesmo provoca questionamentos de cunho filosófico e sociológico sobre a nossa percepção do que é “arte”, bem como sobre o valor que atribuímos a ativos digitais

O interesse nessa tecnologia vem, em grande parte, de artistas, colecionadores de mídias artísticas e até mesmo investidores interessados em criptoativos como Bitcoin, Ethereum e Monero. Neste texto, apresento um panorama geral sobre os NFTs, suas qualidades e defeitos, bem como as discussões que têm sido travadas com relação a essa tecnologia. Confira a seguir!

O que são NFTs e a tal “fungibilidade”

Trata-se de uma tecnologia não tão recente, podendo ser traçada ao ano de 2012 em seu estado mais bruto, e tendo posteriormente sido desenvolvida gradualmente a partir de 2014 para o estado como a conhecemos hoje.

A popularidade em torno dos NFTs escalou exponencialmente nos últimos anos, acompanhando a explosão na popularidade de criptomoedas que temos observado desde meados de 2017. Hoje, o mercado de NFTs movimenta diariamente quantias milionárias de dinheiro, atraindo olhares de interessados pelos mais diversos motivos. 

Antes de tratar especificamente sobre os NFTs, contudo, é importante esclarecer o conceito de “fungibilidade”.

O que é fungibilidade?

No Direito, diz-se que algo é fungível quando essa coisa pode ser substituída por outra de mesma natureza e valor. Nesse contexto, essa substituição não resulta em qualquer impacto para seu proprietário ou demais envolvidos em uma relação jurídica na qual o item em questão está envolvido. 

Um exemplo clássico de bem fungível é o dinheiro. Uma nota de R$50,00, por exemplo, pode ser substituída por qualquer outra cédula de mesmo valor sem que haja qualquer impacto para seu proprietário. Pode, inclusive, ser substituída por um número maior de notas com valores menores – 5 de R$10,00, digamos – sem alterar de fato a situação do portador dessa nota inicial.

Um bem infungível, por sua vez, é justamente o contrário: trata-se de algo que é dotado de uma certa “unicidade”, e que por isso não pode ser substituído por outro bem. Exemplos usuais de bens infungíveis são obras de arte – a Mona Lisa, por exemplo –, que são únicas e, portanto, não podem ser substituídas nem mesmo por réplicas idênticas sem que seja configurado um dano ao seu portador.

Retomando: o conceito de NFT

Tendo definido o conceito de fungibilidade, podemos seguir mais facilmente com a conceituação dos NFTs.

Como se pode imaginar, em geral ativos digitais das mais diversas naturezas – imagens, músicas, vídeos etc. – são bens fungíveis. Isso porque todos esses arquivos podem ser facilmente replicados sem perda de qualidade e nem limite para o número de cópias criadas. Dessa forma, via de regra, entende-se que um arquivo digital pode ser substituído sem grandes problemas, sem acarretar qualquer prejuízo para o proprietário.

A ideia dos NFTs é justamente inverter essa lógica, ou seja, atribuir infungibilidade para ativos digitais. Dessa forma, uma imagem, um vídeo, uma música, entre outros, passa a deter um identificador único, diferenciando aquele arquivo das demais cópias veiculadas pela rede. A partir desse identificador único, portanto, torna-se possível a comercialização da propriedade de um arquivo “original” – uma cópia legítima, que passa assim a deter valor como colecionável.

Dessa forma, o que os NFTs possibilitam é justamente garantir alguma escassez para arquivos digitais, que caso contrário seriam infinitamente replicáveis. Como se trata de uma tecnologia baseada em Blockchain, são registradas tanto a veracidade de que um arquivo específico é o “legítimo” como também todo o histórico de transferências de titularidade daquele arquivo.

Controvérsias envolvendo os NFTs

Juntamente com o rápido ganho de popularidade e a exponencial valorização dos NFTs, especialmente nos últimos meses, diversas discussões sobre o uso dessa tecnologia têm surgido.

A primeira delas deriva do questionamento que diversas pessoas têm ao compreender o funcionamento dos NFTs: “Qual a utilidade dessa tecnologia?” Isso porque, como se sabe, a reprodução de arquivos digitais é algo muito fácil, e resulta em cópias efetivamente idênticas ao ativo original.

Nesse sentido, vale ressaltar que a proteção de um arquivo por meio de um NFT não impede sua reprodução não oficial. Dessa forma, o real valor dos arquivos originais comercializados como NFTs é colocado em xeque. Afinal, inúmeras cópias idênticas do mesmo arquivo ainda podem circular na internet: a escassez dos NFTs restringe-se à propriedade legítima do arquivo original, mas não garante a exclusividade do uso desses arquivos apenas por aqueles que os adquiriram em leilões virtuais.

Outra controvérsia que se tem observado recorrentemente diz respeito à comercialização, na forma de NFTs, de obras sobre as quais os comerciantes não detinham direitos. Mais especificamente, diversos artistas relataram que suas artes digitais estavam sendo comercializadas por quantias consideráveis de dinheiro sem que os criadores sequer tivessem ciência disso.

Os NFTs e o meio-ambiente

Além disso, entre outras discussões relevantes, uma preocupação emergente relativa ao uso dessa tecnologia diz respeito ao excessivo consumo energético utilizado para fazê-la funcionar.

A título de exemplo, o caso do artista francês Joanie Lemercier ganhou grande notoriedade. O artista, que também atua como ativista quanto às mudanças climáticas, realizou um leilão online, vendendo 6 vídeos de sua autoria na forma de NFTs: as obras foram vendidas em um total de 10 segundos. Nesse curto intervalo de tempo, contudo, identificou-se que o consumo energético relativo a apenas esse leilão totalizou nada menos que 8.7MWh: aproximadamente o equivalente a 2 anos inteiros de consumo energético do estúdio do artista.

Essa constatação permitiu que tivéssemos uma melhor noção do problema em mãos. As criptomoedas, outra tecnologia que se utiliza da infraestrutura da Blockchain, também são conhecidas pelo enorme gasto energético envolvido em sua mineração e registro. Contudo, os NFTs parecem representar uma preocupação ainda mais alarmante nesse quesito. Isto porque, conforme Lemercier descobriu, o uso da Blockchain nos NFTs não se limita à atribuição de identificadores às obras, para torná-las escassas.

A Blockchain também é utilizada para manter um registro de cada um dos lances feitos nos leilões, bem como de todo o histórico de comercialização de uma obra. Além disso, essa tecnologia pode  ser utilizada até para incluir informações adicionais relacionadas à autoria original da peça, ou mesmo às diversas versões que um artista pode ter publicado de um trabalho: Joanie, por exemplo, comercializou apenas 6 obras, mas lançou 53 edições destas.

Todos esses são fatores que aumentam o gasto energético necessário para manter o registro das NFTs e fazer com que a tecnologia funcione devidamente. Dessa forma, as NFTs passaram a representar hoje um grande risco substancial para o meio ambiente.

Grande parte dos NFTs hoje é criada e comercializada utilizando a Ethereum – uma plataforma digital para a celebração de contratos inteligentes através da Blockchain. Nesse sentido, a melhora na eficiência dessa plataforma poderia garantir uma atenuação no consumo energético não apenas dos NFTs, mas de todas as atividades desempenhadas na Ethereum.

Uma atualização desse ecossistema, denominada Ethereum 2.0, já foi anunciada há algum tempo, buscando sanar os problemas de escalabilidades observados em plataformas que operam através da Blockchain. Até hoje, contudo, não há notícias quanto à sua efetiva implementação, mas esse seria um avanço importante para reduzir o impacto ambiental causado hoje pelas NFTs.  

Possíveis utilidades para os NFTs

É importante destacar que as NFTs, apesar de todos os problemas elencados acima, possuem aplicações interessantes, que podem fortalecer os direitos dos artistas e agregar interesse e valor ao ambiente de comercialização de artes digitais. 

Primeiramente, pode-se mencionar que um aspecto benéfico dos NFTs é a possibilidade de garantir royalties para seus criadores mesmo após a venda inicial da obra. Isso se mostra particularmente benéfico principalmente se considerarmos a tendência atual de grande valorização de obras NFT no mercado.

No caso, basta que o artista selecione essa opção, para receber um percentual monetário relativo ao valor de cada venda subsequente de sua criação. Em um cenário em que as obras poderiam ser vendidas inicialmente a preços razoáveis, para posteriormente serem revendidas a valores exorbitantes após especulação por parte dos vendedores, isso representa uma ferramenta muito útil para que os criadores originais recebam uma compensação pela valorização de seus trabalhos.

Além disso, os NFTs ganharam atenção considerável no meio das histórias em quadrinhos – as famosas HQs – por possibilitarem a retomada de direitos que os artistas haviam de certa forma perdido, especialmente com relação a grandes editoras. 

Antigamente, quando as HQs eram confeccionadas de maneira “analógica”, com papel e tinta, era comum que os autores enviassem para suas publicações os scans das obras para publicação, mas retivessem os desenhos originais de suas criações. Esses originais, em momento posterior, poderiam ser comercializados para colecionadores e aficionados, representando uma fonte de renda a mais dos autores sobre suas criações.

Com a transição para um modelo de criação de HQs por meio de técnicas de desenho digital, contudo, essa possibilidade deixou de existir para os artistas: não havia mais “originais” para comercializar como colecionáveis. Nesse sentido, os NFTs representaram uma certa renascença dessa possibilidade de comercialização extra para os artistas, e diversas personalidades do meio das HQs já passaram a comercializar suas páginas originais por meio dos NTFs.

Essa tendência, contudo, não foi bem recebida por algumas editoras. A DC Comics, por exemplo, alegou ter interesse na comercialização de NFTs e desencorajou a venda de artes de seus personagens pelos próprios artistas. Quanto a esse pronunciamento da editora, o quadrinista brasileiro Mike Deodato publicou uma carta aberta, reivindicando o direito dos artistas sobre suas criações.

Ainda não se sabe ao certo qual será o resultado dessa controvérsia quanto à comercialização de artes por autores de HQs, mas pode-se perceber que, apesar dos pontos negativos observados, os NFTs têm algum potencial para ampliar os direitos da classe artística, valorizando seu trabalho

Um percurso ainda longe do fim

            Percebe-se, portanto, que ainda há muito o que se discutir e muito o que se aprimorar quanto aos NFTs. Trata-se de uma tecnologia que ganhou notoriedade e volume recentemente, e diversos problemas em seu modo de implementação têm sido descobertos ao longo do tempo.

       Pode-se dizer, contudo, que há usos interessantes para esse tipo de produto, que possibilitam uma ampliação dos direitos autorais exercidos hoje sobre obras digitais. Isso, por sua vez, abre portas para uma maior contemplação dos artistas que se utilizam desse meio para veiculação de seus trabalhos.

            Por outro lado, as questões relativas ao elevado gasto energético necessário para a manutenção de plataformas descentralizadas baseadas na Blockchain representam hoje uma preocupação real quanto ao uso dessa tecnologia. Melhorias nessa infraestrutura, ampliando sua eficiência operacional, são essenciais para que se possa pensar no uso prolongado dos NFTs sem que sejam observadas repercussões ambientais graves no médio-longo prazo.

            Será interessante observar, no futuro próximo, o desenvolvimento dessa tecnologia. Os NFTs vão manter sua popularidade atual, ou são apenas fruto do “hype” relativo aos criptoativos? As melhorias na infraestrutura da Blockchain serão alcançadas, superando as preocupações atuais relativas ao seu impacto ambiental? Ainda é cedo para respondermos com certeza a qualquer dessas indagações, mas esperamos atentos por respostas satisfatórias.

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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset

Escrito por

Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).

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