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Para entender o PL 2630: regulação das plataformas, liberdade de expressão e o dilema da autoridade supervisora

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17 de maio de 2023

A regulação de plataformas digitais ganhou o noticiário nas últimas semanas, em especial a partir da tramitação do PL 2630, comumente apelidado de PL das Fake News. De diferentes maneiras, o tema tem dominado a pauta do Congresso Nacional. O post de hoje busca apresentar um brevíssimo panorama do projeto, além de examinar dois aspectos centrais à discussão – os impactos sobre a liberdade de expressão e o papel de uma eventual autoridade pública responsável por supervisionar as plataformas.

O que está em jogo na regulação das plataformas?

A regulação das plataformas digitais é cada vez mais reconhecida como essencial ao futuro das democracias. No ano passado, a União Europeia ganhou destaque ao aprovar duas legislações para promover um ambiente digital mais seguro, justo e equilibrado. As novas regras incluem deveres de transparência publicitária, combate a conteúdos ilegais, enfrentamento à desinformação e promoção da concorrência na esfera digital.

 O PL 2630 possui um objetivo similar: assegurar mais transparência e garantir controle social sobre as operações das plataformas digitais, especialmente quanto aos aspectos que geram riscos significativos para a sociedade. Nesse sentido, o projeto visa incentivar as empresas a uma atuação mais proativa diante dos riscos de uso indevido de seus produtos, como no caso de postagens que atentam contra a saúde pública, a segurança nas escolas ou a integridade das eleições.

Esse PL vem sendo discutido há três anos pelo Congresso Nacional. Ele foi, conforme relatório, tratado em diversas audiências públicas com participações de numerosos especialistas de diferentes áreas e setores. Consequentemente, sua versão mais recente evoluiu consideravelmente, abandonando algumas ideias equivocadas do texto aprovado no Senado em 2020, como a rastreabilidade generalizada de mensagens instantâneas.

O texto atual traz regras para melhorar a identificação de publicidade digital, garantias para usuários que têm seu conteúdo moderado e deveres de publicação de relatórios de transparência e realização anual de auditorias externas. Além disso, estabelece limites para os termos de uso e incentivos para que o Estado fomente a educação para o uso seguro da internet. Esses avanços seriam importantes para assegurar um ambiente digital mais livre, seguro e inclusivo.

Apesar disso, há questões que seguem bastante controversas no debate, como os aspectos envolvendo direitos autorais, a remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais e a extensão da imunidade parlamentar às redes sociais. Cada um desses temas possui enorme complexidade e exigiria, no mínimo, uma análise própria. Assim, este texto enfocará nos aspectos ligados à liberdade de expressão e à autoridade de regulação das plataformas. 

Como o PL 2630 pode impactar a liberdade de expressão?

Em primeiro lugar, é preciso dizer o óbvio: a liberdade de expressão não é absoluta. Publicações que incitam ataques a escolas, atacam o Estado Democrático de Direito ou promovem negacionismo sobre vacinas atentam contra valores básicos e não possuem qualquer abrigo na Constituição. Seus impactos nocivos não ficam restritos à internet: esses discursos legitimam e encorajam ativamente atos de violência e comportamentos que colocam em risco a saúde pública e a democracia.

Entre os instrumentos propostos pelo PL 2630 para enfrentar a difusão desses conteúdos, dois se destacam: o dever de cuidado e o protocolo de segurança.

O dever de cuidado é uma obrigação geral de que as plataformas analisem e ajam para prevenir os chamados “riscos sistêmicos” decorrentes de seus serviços. Esses riscos incluem a difusão de certas categorias de conteúdos ilegais, aqueles relativos à proteção da saúde pública, à violência contra grupos vulneráveis e a possibilidade de discriminação ilegal ou abusiva decorrente do uso de dados pessoais sensíveis.

Já o protocolo de segurança pode ser entendido, em termos simples, como um procedimento a ser instaurado em emergências relacionadas aos riscos citados. Durante o protocolo, as empresas poderiam, sem necessidade de ordem judicial de remoção prévia, ser responsabilizadas pelos danos causados por conteúdos relacionados à emergência em questão (como no 8 de janeiro ou no caso dos ataques a escolas). Isso difere da regra geral prevista no Marco Civil da Internet, segundo a qual a responsabilização só pode ocorrer se a plataforma deixar de remover um conteúdo após uma ordem judicial exigi-lo especificamente.

O rótulo de “PL da Censura” tem sido utilizado por quem lhe é contrário para sugerir que a criação de incentivos legais como esses levará a uma censura governamental generalizada. O apelido, contudo, é enganoso. A avaliação sobre quais conteúdos remover continuará sendo feita pelas empresas e o protocolo será reservado a situações e temas específicos, com duração limitada a 30 dias e renovação condicionada à demonstração de que os riscos iminentes que justificaram sua abertura continuam presentes.

Ademais, o protocolo representa uma espécie de solução de equilíbrio frente à conjuntura atual. Ele representa um meio-termo entre as pressões advindas do governo e do judiciário, que têm defendido vocalmente por uma responsabilização ampla das plataformas quanto a certos temas, e a postura da direita liberal, que tende a ser contrária à qualquer ampliação da responsabilidade das empresas pelos conteúdos dos usuários. Na falta de uma solução legislativa como essa, há forte risco da regra prevista no Marco Civil da Internet ser declarada inconstitucional pelo STF.

Mas há outro motivo pelo qual o rótulo de PL da censura é descabido: há toda uma seção da proposta que visa proteger precisamente a liberdade de expressão durante a moderação de conteúdo. O texto obriga a plataforma a notificar a pessoa afetada sobre as medidas tomadas, sua fundamentação e procedimentos e prazos para exercer o direito à revisão, bem como a responder aos pedidos de revisão de decisões e revertê-las imediatamente em caso de equívoco. Essas medidas são fundamentais para uma moderação de conteúdo mais consistente e protetiva da liberdade de expressão.

E o tal do Ministério da Verdade?

Um dos aspectos que mais provoca incerteza em torno da proposta diz respeito à definição do órgão responsável por regular e fiscalizar o cumprimento das obrigações de transparência e gestão de riscos estabelecidas na proposta pelas plataformas. Em versões anteriores do texto, propunha-se a criação de uma nova entidade cujas atribuições incluiriam a abertura do protocolo de segurança. Na mais recente, a definição dessa autoridade foi removida.

Nesse cenário, as críticas ao PL tem designado como “Ministério da Verdade” a possível autoridade. O rótulo referencia a instituição fictícia existente na obra de 1984 de George Orwell, cuja função era reescrever a história e fazer propaganda governamental de informações manipuladas conforme os interesses do Estado. Essa comparação simplesmente não reflete o que vinha sendo proposto: uma entidade que, além de ser independente justamente para evitar captura política, não teria qualquer atribuição relacionada a analisar conteúdos, muito menos ditar o que é verdade ou mentira na internet.

A construção de um sistema regulatório em que haja nitidez sobre quais entidades públicas ficam responsáveis por quais aspectos da implementação da lei é importante para garantir que a regulação tenha eficácia no mundo prático. Nesse sentido, é necessário  destacar o papel do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que tem liderado o debate sobre governança da internet no país na última década. Similarmente, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem um papel importante a desempenhar nas questões que dizem respeito ao uso dos dados pessoais pelas plataformas.

Por outro lado, são bastante preocupantes as investidas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em torno do tema. Além das questões de direitos humanos no cerne do debate não serem o foco da agência, é público e notório que seu desempenho tem sido insatisfatório no próprio setor de telecomunicações, basta olhar os diversos problemas do leilão do 5G. Seria melhor para o país que a Anatel direcionasse suas energias para melhorar a qualidade dos serviços de telecomunicação e promover a conectividade significativa no país, visto que é evidente o quanto ainda precisamos avançar nisso.

A questão do órgão regulador segue em aberto. Uma possibilidade, recentemente proposta pela OAB, diz respeito à construção de um sistema regulatório tríplice, que inclua o CGI.br, uma entidade de autorregulação das empresas e um Conselho regulador e fiscalizador com representantes dos três poderes. Abordagens nessa linha podem ser importantes para construir uma arquitetura democrática que garanta efetividade prática na legislação e segurança jurídica para indivíduos e empresas. O que parece nítido, no entanto, é que atribuir tais funções à Anatel seria um erro político histórico para o país.

O PL 2630 precisa de um debate democrático produtivo

Enquanto busca equilibrar a proteção da liberdade de expressão e o combate a ilícitos na internet, o PL 2630 tem sido foco de múltiplas controvérsias. Embora seja inegável que aspectos passíveis de melhoria persistam na proposta, como o tema da imunidade parlamentar e as questões de remuneração de jornalismo, rótulos como “PL da Censura” e “Ministério da Verdade” não contribuem para um debate democrático produtivo

Pelo contrário, essas caricaturas acabam por prejudicar a construção de políticas públicas maduras e efetivas para endereçar problemas complexos e reais. Ao enfatizar somente esses aspectos, muitas das críticas à proposta desconsideram as demais contribuições contidas nela para um ambiente digital mais seguro, inclusivo e livre.

É essencial que o debate em torno do PL 2630 se concentre em encontrar soluções equilibradas, considerando a diversidade de perspectivas e interesses envolvidos. É preciso reconhecer que a regulação das plataformas digitais é uma necessidade cada vez mais premente para garantir a segurança dos usuários e o combate à disseminação de conteúdos prejudiciais.

Também é fundamental assegurar que essa regulação não restrinja indevidamente a liberdade de expressão e não se torne uma ferramenta de censura governamental. O diálogo aberto e construtivo entre setores segue sendo essencial para encontrar um equilíbrio que promova os direitos humanos, a segurança jurídica e preserve o caráter colaborativo e multissetorial da governança da internet no Brasil.

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É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.

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