Interoperabilidade é chave – ou “por que o metaverso precisa ser repensado”
Escrito por
Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
10 de maio de 2022
Nos últimos tempos, têm sido constantes as notícias sobre o metaverso e a promessa de uma revolução nas interações humanas mediadas pela tecnologia. O texto de hoje é uma tentativa de analisar esse cenário de um ponto de vista logístico, para a viabilidade de um metaverso “coeso” e funcional.
O ponto principal do post será a questão da interoperabilidade entre os diversos metaversos propostos atualmente. Da forma como as coisas estão avançando, será que as promessas desse admirável mundo novo têm chances razoáveis de se tornarem realidade? Seguem minhas impressões.
Preliminarmente: um panorama sobre o metaverso
Recentemente, publiquei um outro texto sobre essa temática aqui no blog do IRIS, no qual questionei como o próprio conceito de metaverso tem sido comercializado atualmente. Em resumo, minhas críticas giraram em torno de o metaverso estar sendo anunciado como uma grande mudança na forma como interagimos com a internet e o mundo.
Como apontei nessa oportunidade anterior, minha impressão é a de que o metaverso basicamente já existe – na forma de realidade virtualmente amplificada, que é em suma o estado da internet em nossas vidas hoje. Nesse sentido, as tecnologias imersivas componentes do “metaverso” não representam um novo paradigma, mas sim um avanço nesse contexto 100% online e digitalizado em que já vivemos.
Reitero: essas críticas não negam o avanço tecnológico extremamente promissor que essas tecnologias representam. Como minha colega Rafaela Ferreira apontou em um outro post recente aqui no blog, o uso de tecnologias imersivas para fins de treinamento, entretenimento, educação, cultura, entre muitos outros, traz inesgotáveis possibilidades futuras – ainda que dentro de um paradigma de sociedade digital já essencialmente consolidado há anos.
O ponto central da minha ressalva é o conceito estar sendo enunciado como jargão de marketing, para vender a ideia de um progresso baseado em realidade estendida (extended reality – XR). O termo metaverso hoje traduz a expectativa de algo que de certa forma já existe, e paradoxalmente ao mesmo tempo não se sabe ao certo o que é. Mas se é essa a palavra popularmente vinculada às discussões sobre tecnologias imersivas, então que seja: sigamos o texto usando o termo metaverso, mas com a transparência de que ele não faz muito sentido do meu ponto de vista.
Vários “metaversos” – todos querem o bolo todo para si
Tenho me referido ao metaverso no singular, mas quero discutir neste texto justamente que não é essa a realidade que vivenciamos hoje. Em verdade, o que observamos são diversas tentativas de implementação de metaversos independentes – uma infraestrutura fragmentada.
Diversas empresas buscam o posto de vanguarda em direção à popularização do tal chamado metaverso. O Meta – antigo Facebook (ainda sinto a necessidade de contextualizar) – é apenas o mais proeminente entre os vários exemplos disponíveis. Contudo, as gigantes Google, Microsoft e Amazon, e mesmo a Nvidia, a Roblox, a Unity e a Linden Lab (criadora do Second Life), entre numerosas outras, também têm realizado investimentos substanciais nessa área.
É natural que existam vários players nesse mercado em plena ascensão. O problema está no fato de que cada uma dessas empresas busca, concomitantemente, instalar-se como “o metaverso” – no singular. Esse fenômeno de diversas empresas buscarem emplacar um metaverso próprio, monopolístico, que busca centralizar o todo das experiências no metaverso, me remete ao relativamente famoso paradigma dos padrões tecnológicos concorrentes. A tirinha do XKCD abaixo ilustra bem o problema:
As tentativas de monopolização nesse caso específico se amplificam por um fator chave: a ideia de metaverso que é vendida hoje gira muito em torno de um local social onde as pessoas podem fazer compras, e quem conseguir emplacar “o” metaverso terá essencialmente controle total como a entidade centralizadora desse grande volume de transações. Me refiro aqui não apenas a transações “usuais”, como fazemos em sites como Amazon e Mercado Livre, entre outros, mas também a ativos digitais – NFTs, por exemplo – que podem ser utilizados dentro do próprio contexto do metaverso em questão. Quem controlar esse ecossistema terá acesso à melhor parte do tal “bolo”: os percentuais sobre as vendas de todos os ativos comercializados no metaverso.
Essa disputa pela liderança, por sua vez, nos leva a um outro problema: como disponibilizar uma experiência verdadeiramente interconectada se o que observamos hoje são diversas “ilhas” de metaverso, todas inacessíveis entre si? Da forma como as coisas estão se desenvolvendo, a ideia de um mundo virtual contínuo – como tem sido prometido – existirá apenas quando, após uma longa disputa concorrencial, alguma fornecedora desses serviços sair vitoriosa. E, considerando o nível de competitividade das concorrentes, esse futuro não parece próximo – e na verdade nem sequer é desejável, considerando o que todos já bem sabem sobre monopólios.
Na prática, isso indica que o metaverso caminha para aquela clássica situação que acredito que muita gente já vivenciou: tentar convencer a usar o Telegram/Wire/Signal/??? o(a) coleguinha que só usa WhatsApp, ou coisa parecida. Contudo, temos a importante distinção de que o metaverso se propõe a englobar muito mais aspectos da vida em sociedade do que os aplicativos de mensageria instantânea, o que por sua vez pode amplificar os efeitos dessas “ilhas” digitais.
Há uma solução possível para esse problema?
Aí que está: não sei.
A ideia deste post desde o princípio não era necessariamente propor soluções, mas sim evidenciar o problema e torcer para gerar discussões frutíferas a respeito. Digo isso porque a própria interoperabilidade dos “metaversos” existentes hoje traz consigo algumas repercussões no mínimo preocupantes.
Uma delas, por exemplo, diz respeito ao regime de tratamento e compartilhamento de dados pessoais, caso diversas empresas compartilhem um metaverso plenamente conectado e interoperável. Caso caminhemos para um futuro de interoperabilidade das experiências oferecidas por diversas empresas, os dados de todos os usuários serão compartilhados entre todas elas? Para além disso, se não for esse o caso, teremos uma entidade que fará essa “ponte” para a interoperabilidade? Se sim, quem? Como? Socorro.
Todas essas questões tornam-se ainda mais delicadas quando paramos para pensar que, por definição, as experiências de realidade estendida dependem da captura de uma série de dados pessoais para funcionar. Esses dados incluem não somente elementos dos perfis pessoais e evidências de atividade e consumo nessas aplicações, mas também dados de rastreamento de geolocalização, ambientes e movimentos necessários para o funcionamento de tecnologias imersivas. Sensores de movimento, câmeras, entre outros, são empregados para gerar a sensação de imersão dos usuários nesse sistema. Esses dados, por sua vez, podem ser utilizados como identificadores biométricos, um tipo de dado pessoal considerado sensível, que exige maior cuidado e proteção jurídica.
Por isso, a solução para a questão do isolamento no metaverso não é nada simples. Sugerir que tudo seja interconectado ignora que a interconexão pode ser um problema por si só – se não um ainda maior do que o próprio isolamento, com consequências ainda mais preocupantes.
Voltando ao meu texto anterior sobre o tema, talvez a solução passe por entendermos o metaverso como algo que: 1) essencialmente já existe e que pode ser aprimorado em alguns aspectos pelo uso de tecnologias baseadas em realidade estendida; e 2) constitui em boa parte um jargão de marketing para promover hype sobre essa estrutura digital. Talvez, alternativamente, a solução passe por reconhecermos que o metaverso precisa ser repensado, ou que essa meta “ideal” de vida no metaverso está mais distante do que se quer fazer parecer. As soluções para os problemas apontados aqui, afinal, parecem conflitantes.
Considerações finais: metaverso e déjà vu
Não esperava finalizar mais um texto com essencialmente a mesma conclusão, mas acho que, mais uma vez, a mensagem que quero deixar é no sentido de recalibrarmos nossas expectativas sobre o metaverso.
Essa tecnologia provavelmente não representará uma quebra de paradigma tão monumental em nosso cotidiano. É normal, contudo, olharmos para avanços tecnológicos com uma boa dose de otimismo e esperarmos pelo melhor – embora o contrário também seja verdadeiro, e acho que já ficou claro que é aí que eu me encaixo. De qualquer forma, o uso de tecnologias imersivas como complemento à infraestrutura digital que utilizamos já hoje representa uma perspectiva intrigante de avanço tecnológico – que deve ser encarada com cautela, mas que não deixa de ser promissora.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).