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A disseminação da informação em contexto de crise

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3 de fevereiro de 2020

Vivemos num tempo onde informação é uma das mercadorias mais valiosas. Saber primeiro e contar primeiro são vantagens importantes que muitos buscam. A informação nos permite fazer melhores escolhas, nos torna mais conscientes, prevenidos e preparados para acontecimentos e desafios. No entanto, o fluxo acelerado de geração e compartilhamento de conteúdos também nos leva a um cenário de confusão, onde verdade e mentira se misturam. Esse cenário forma terreno fértil para a disseminação do pânico e para a acentuação de crises, dando espaço para que outras mazelas da nossa humanidade emerjam em forma de preconceitos e intolerância. 

De uma informação se faz humor, solidariedade e pânico

O ano de 2020 começou com alguns grandes sustos na cidade de Belo Horizonte. Primeiro, o caso de intoxicação por uma cerveja popular na cidade. Mais de 20 pessoas passaram mal pela cerveja contaminada e 4 faleceram. Durante os primeiros dias do ano, a cidade foi tomada por diversos boatos sobre a precedência da doença, sobre o caráter clínico das vítimas, entre muitas outras histórias especulativas. Foram inúmeras correntes no Whatsapp trazendo informações e desinformações sobre a doença – veiculou-se, inclusive, que se tratava de um ressurgimento da crise do ebola. A população ficou em estado de alerta, bebidas foram retiradas das prateleiras de supermercados e, ao mesmo tempo, centenas de memes foram criados sobre o caso. Passado esse momento de alarde, o caso está sob investigação. 

Nas últimas semanas de janeiro, a cidade de Belo Horizonte tem convivido com fortes chuvas e um constante alerta para tempestades. Para a sexta feira do dia 24 de janeiro, alertas foram disparados pela defesa civil, a fim de evitar ou minimizar os danos à população. Logo a informação se espalhou por outros canais de notícia e perfis pessoais, com tons sensacionalistas e informações fantasiosas. Na última terça feira, dia 28, uma outra forte chuva atingiu a cidade, dessa vez nos bairros mais caros da cidade, gerando discussões na rede sobre as diferença na repercussão de uma tragédia quando ela atinge setores mais privilegiados da sociedade. 

Tão logo os danos da chuva começaram a se manifestar, vídeos se espalharam nas redes, acentuando a percepção de gravidade da situação. De repente, assistimos vídeos da cidade alagada, casas desabando, carros sendo arrastados, árvores caindo, teto de shopping desabando… Com as imagens do caos diante dos olhos a rede se mobilizou sobre o assunto e os mesmos materiais de mídia se repartiram entre pânico, memes, indignação seletiva, discussões sobre o desleixo da administração pública e campanhas de suporte aos atingidos. 

 A desinformação é parte de outros problemas 

Em escala mundial, a população acompanha receosa as notícias sobre o novo vírus que tem se espalhado pelo mundo. O corona virus, que teve foco na China, já chegou a 18 países e os casos se acumulam entremeados por notícias imprecisas e manifestações de preconceito e xenofobia travestidos seja de humor ácido, seja de cautela. A coluna da antropóloga Rosana Pinheiro Machado para o The Intercept, coloca em evidência como as reações ao redor do mundo demonstram que a epidemia de xenofobia e preconceito é ainda maior e pode ser mais danosa do que o vírus que, segundo a OMS, matou 2% das pessoas infectadas. A autora aponta como os nossos imaginários estereotipados do oriente se manifestam em desinformação e se espalham impulsionados pela partilha de uma sensação de autoridade política construída historicamente do ocidente sobre o oriente. 

As informações absolutamente fantasiosas que tomaram as redes – como a de que a origem do vírus tenha vindo de uma sopa de morcegos consumida na China, ou de que os pais estivessem abandonando crianças infectadas no aeroporto – são oportunas para que se destile xenofobia, projetando estereótipos rasos sobre uma realidade que não conhecemos. As mentiras espalhadas de forma indiscriminada e desrespeitosa deixam transparecer uma pretensão de superioridade etnocêntrica, que aponta no outro traços de exotismo e de absurdo e se apega com facilidade a explicações simplistas para problemas e realidades que não partilhamos. Por etnocentrismo, se entende a tendência de que as pessoas coloquem a própria cultura, nação e ideias como fundamentos para a compreensão do mundo e do outro. Não é a primeira vez que isso acontece, tampouco parece que será a última. No surto de ebola, em 2014, vivemos situações parecidas e também apontamos no outro problemas, deixando transparecer que tínhamos, além de um problema político de saúde pública, um problema de político de racismo, como apresentado na coluna da jornalista Eliane Brum. 

A difusão desses discursos nos remete ao conceito de orientalismo, que Edward Said o apresenta como um fato político e social partilhado na construção do conhecimento sobre o oriente pelo mundo. O teórico argumenta sobre como a identidade ocidental europeia se construiu em oposição à oriental, com uma relação próxima marcada por questões de política e poder historicamente vivenciadas por uma notável dominação do ocidente sobre o oriente, pela história colonial e por uma “superioridade posicional flexível”, que confere vantagem ao ocidente nas suas relações. Segundo o autor, ideias, culturas são marcadas por relações de força e poder, e estudá-las sem levar isso em conta seria um erro. Neste sentido, o conhecimento que consumimos sobre o outro não deve ser entendido somente como uma descrição neutra mas como instrumento pelo qual se dá a manutenção de relações de poder e dominação manifestas em categorias e entendimentos políticos.

Governos, plataformas e usuários: quem pode parar a desinformação? 

Na China, pelo menos 8 pessoas foram presas por espalhar informações falsas sobre o coronavírus e outras 40 estão sob investigação. Mesmo de fontes oficiais do governo surgiram informações mentirosas, como o vice-diretor geral do departamento de informações do Ministério das Relações Exteriores da China, que publicou um vídeo da construção de um prédio residencial alegando que se tratava de um novo hospital em Wuhan. A prisão pelo compartilhamento de fake news parece uma medida desproporcional e que demonstra, também, a falta de repertório por parte do governo para lidar com esse tipo de problema. O esforço para regulação da internet é importante para criar diretrizes e impedir que fenômenos como esse aconteçam. Ainda que hoje em dia haja mais perguntas do que resposta à esse respeito, é preciso que os atores se esforcem de maneira responsiva e responsável, sobretudo os atores com maior poder de agenda e ação – tais como governo, instituições jurídicas, grande mídia, provedores de aplicação. 

Nas plataformas de redes sociais, segundo a Axios, entre os dias 24 e 27 de janeiro mais de 13 mil posts foram disparados nas redes Twitter, Facebook e Reddit disseminando desinformação sobre o vírus. Algumas cogitavam, inclusive, que se tratasse de uma arma biológica ou uma medida de controle populacional. Há uma chamada para que as plataformas trabalhem em formas de contenção da disseminação de fake news com uma estrutura robusta e responsiva, que administre esse problema. Há uma dificuldade especialmente acentuada quando se tratam de informações que correm em grupos privados. Na última semana, o Facebook resolveu que retiraria do ar conteúdo inverídico sobre o coronavírus, uma decisão notável, visto que distoa das ações adotadas pela plataforma até então.

Enquanto isso, os usuários são aconselhados a não compartilhar informações imprecisas, que suscitam teorias conspiratórias e que não apresentem credibilidade. Bem como não se deve compartilhar conteúdos sensíveis, que exibam pessoas em situação de sofrimento. O respeito pela imagem e condição do outro deve prevalecer como um princípio a ser respeitado para um uso consciente e positivo da internet. Em situações de crise como essas que temos experienciado é preciso ter, mais do que nunca, sensibilidade para cuidarmos de nós e do outro e fazermos dessa rede um lugar que nos una frente aos desafios sociais, políticos, ecológicos, sanitários e todos os outros que devemos fazer face de forma coletiva.  

Conclusão 

Saber o que acontece no mundo e ao nosso redor é uma condição da nossa geração. No entanto, é preciso compreender que o compartilhamento de informações é um ato que precisa vir acompanhado de responsabilidade e consciência. Uma informação pode salvar vidas ou arruinar outras, comentários podem sensibilizar bonitas campanhas de solidariedade ou alimentar o ódio e o preconceito. Devemos, enquanto usuários, prezar por um jornalismo comprometido com a veracidade e seriedade das notícias e reconhecer o nosso papel na promoção de uma internet mais positiva. Em tempos de catástrofes, a internet pode ser grande ferramenta a serviço do bem estar social que nos ajude a superar nossos problemas enquanto sociedade, que nos permita uma mobilização inteligente e estratégica. O medo e o pânico são vetores potentes para suscitar as nossas características sombrias, e a internet é um espaço propício para potencializar o alcance de ideias, informações e, então, construir ou destruir pontes de apoio e cooperação . 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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