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Eu, você, Mark Zuckerberg e o fenômeno da plataformização

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26 de abril de 2021

Construímos uma sociedade cada vez mais dependente das plataformas disponibilizadas pelas cinco maiores empresas do mundo digital, as chamadas Big Five: Google (Alphabet), Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. Quais as consequências deste fenômeno? Como nos afeta e de que maneira podemos ajudar a reverter ou minimizar as consequências da chamada plataformização da sociedade? Neste artigo, apontamos autores que discutem a temática e apontam possíveis caminhos. 

O que Zuckerberg tinha a dizer

Em 11 de abril de 2018, Mark Zuckerberg, presidente executivo de uma das maiores plataformas de mídias sociais, o Facebook, teve de enfrentar a fúria dos deputados americanos na audiência realizada no Comitê de Energia e Comércio da Câmara dos Estados Unidos. A intensa maratona de perguntas superou o tom condescendente dos senadores no dia anterior. 

Dessa vez, os deputados não hesitaram em colocá-lo contra a parede, com perguntas incisivas e desconcertantes, interrompendo-o quando insatisfeitos com o caminhar das respostas.

Zuckerberg sentiu a pressão, conforme relato dos jornalistas Bruno Capelas e Claudia Tozetto, do jornal O Estado de São Paulo . Apesar de ter chegado à audiência da Câmara mais relaxado do que no Senado, muitas vezes hesitou em responder, evadiu-se ao dizer que não estava bem informado sobre alguns dos temas levantados e, até mesmo, mostrou-se irritado, quando demandado a restringir suas respostas em sim ou não. Seu rosto ficou vermelho, gaguejou. Ainda assim, não se exaltou em nenhum momento durante a longa audiência.

Logo na abertura, o deputado republicano Greg Walden citou um dos principais valores do Facebook, o “Move fast and break things” (Se mova rápido e quebre coisas), como um dos fatores que levaram a empresa a chegar a diversas polêmicas, como o escândalo do uso ilícito de dados pela Cambridge Analytica, a disseminação de notícias falsas e as tentativas de influência de russos nas eleições. “O Facebook não é maduro”, disse Walden. “A empresa cresceu rápido demais e quebrou muitas coisas. A quebra de confiança com os usuários deve ter consequências.”

E então, perguntou: “O que exatamente é o Facebook? Uma plataforma social? Uma empresa de dados? Uma empresa de publicidade? Uma empresa de mídia? Tudo isso ou alguma outra coisa?”

Quando autorizado, Zuckerberg encarou o deputado e respondeu em voz firme:

Obrigado, senhor presidente. Eu nos considero uma empresa de tecnologia, porque a principal coisa que fazemos é ter engenheiros que escrevem código e construir produtos e serviços para outras pessoas. Existem certamente outras coisas que fazemos também. Pagamos para ajudar a produzir conteúdo. Nós construímos software empresariais, embora eu não nos considere uma empresa de produção de software. Nós construímos aviões para ajudar a conectar as pessoas, e não nos consideramos uma empresa aeroespacial.   Mas, no geral, quando as pessoas nos perguntam se somos uma empresa de mídia, o que entendo é:  nós temos responsabilidade pelo conteúdo que as pessoas compartilham no Facebook? E eu acredito que a resposta para essa pergunta é sim. 

Essa resposta é importante para qualquer pessoa que queira compreender criticamente o cenário contemporâneo das mídias e o ecossistema de informação que permeia esfera pública em todo o mundo. Especialmente, o fenômeno conhecido como plataformização

A sociedade das plataformas

Em 2018, José van Dijck, professora da Universidade de Utrecht, Holanda, lançou o livro The Platform Society: Public Values in a Connective World, em coautoria com Thomas Poell e Martijn de Waal, no qual afirma que a plataformização da sociedade refere-se à inextricável relação entre plataformas online e estruturas societais. 

Tal fenômeno se deve ao fato de que muitos dos nossos setores sociais, seja transporte, saúde, educação ou jornalismo, têm se tornado quase inteiramente dependentes das infraestruturas digitais disponibilizadas pelas cinco grandes empresas de plataformas dos Estados Unidos: Google (Alphabet), Amazon, Facebook Apple e Microsoft. 

Essas empresas arquitetaram suas infraestruturas de acordo com os mecanismos de plataforma que os autores definem como dataficação, mercantilização e seleção algorítmica. Gradualmente, esses mecanismos começam a estruturar nossas vidas por inteiro. 

Por exemplo, destaca Van Dick em entrevista ao site Digital Labour, as organizações jornalísticas estão cada vez mais dependentes dos mecanismos de distribuição online possuídos e operados por Facebook e Google. As escolas e universidades começaram a reestruturar seus currículos a partir dos ambientes personalizados de aprendizado fornecidos por Google, Amazon, Facebook e Microsoft.

A grande questão é que essas empresas assumiram a distribuição de notícias sem assumir as responsabilidades que vêm tradicionalmente com as organizações jornalísticas. O Facebook e o Google efetivamente causaram a “desagregação” e o “reagrupamento” do conteúdo de notícias, das audiências e da publicidade. Essas duas empresas juntas controlam o mercado de publicidade e a distribuição de notícias personalizadas. Elas não apenas atrapalham os modelos de negócios das organizações jornalísticas, mas também abalaram os próprios valores e normas em cima dos quais o jornalismo é construído: independência, precisão, accountability, entre outros, ressalta Van Dick. 

Como demonstra o depoimento de Zuckerberg ao congresso norte-americano, o Facebook não se considera uma empresa de mídia e, graças a uma grande falha na lei dos Estados Unidos (seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, de 1996), não pode ser responsabilizado pela distribuição de discursos de ódio, desinformação e outros tipos de poluição no mundo conectivo. 

“A arquitetura imposta pela plataforma também acarreta grandes repercussões na organização do trabalho jornalístico”,  destacam os autores: “assim como a Uber tem motoristas que ‘não são seus’, os jornalistas estão cada vez mais separados das organizações midiáticas. As empresas de plataforma preferem contornar as instituições, promovendo a conectividade entre indivíduos e consumidores privados, minando, desta forma, a coletividade e os valores públicos.”

É preciso retomar os princípios democráticos da internet

Outra pesquisadora que chama atenção para o fenômeno da plataformização é a brasileira Elisabeth Saad, da USP. No artigo Sociedade digitalizada: “plataformização” das relações e uma privacidade “zerada”, Saad lembra que um dos princípios primordiais da internet e da rede mundial de computadores, a World Wide Web, é a amplificação democrática. 

Na comemoração de 30 anos da web, seu criador, Tim Berners-Lee se manifestou sobre a necessidade de analisarmos como a rede evoluiu para o bem e para o mal, além de questionarmos para onde ela ruma. Berners-Lee criou a hashtag #ForTheWeb objetivando disseminar a discussão de forma global.

A proposta do chamado “pai da web”, para que o futuro da rede seja mais inclusivo e propositivo está na renovação do contrato global para erradicar ou estagnar disfunções maliciosas e geradoras de ataques diversos. Ele também propõe gerenciar os sistemas e modelos de negócio que buscam impor conteúdos e anúncios publicitários por meio de governança de algoritmos, uso de robôs e fazendas de clicks.

E daí? 

A questão é complexa e envolve todos nós: eu, você, Zuckerberg e nossas relações com as plataformas de mídias sociais. O filósofo e pesquisador Pierre Levy considera que as conexões em redes digitais provocam um fenômeno de duas vertentes: o controle social em mãos de grandes conglomerados privados e a produção de conteúdo ampliada e ancorada na chamada inteligência coletiva. Henry Jenkins afirma que as divergências movem as redes, em conflitos entre lógicas verticais de comunicação e as lógicas horizontais, dialógicas, dos cidadãos conectados. Este talvez seja o momento de nos assumirmos como parte da solução para lutar por uma web democrática, acessível e na qual as plataformas sejam responsabilizadas como mídia, o que de fato se tornaram. 

Saiba mais

Para saber mais sobre o fenômeno da plataformização, acesse o e-book gratuito de Carlos D’Andrea, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Pesquisando plataformas online: conceitos e métodos.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset

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Jornalista, mestre em Educação, doutora e pós-doutora em Comunicação. Sócia-proprietária da Quando Fábrica de Narrativas. Professora no Centro Universitário de Belo Horizonte e Centro Universitário Una. Coordena pós-graduação de Produção em Jornalismo Digital, na Puc Minas. Trabalha com projetos de educação transmídia para incentivo à leitura e escrita em países de língua portuguesa, como Brasil, Timor-Leste e Moçambique.

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