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Enxergando além da guerra: Rússia, agronegócio e tecnologias imersivas

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3 de março de 2022

Atualmente, a Rússia tem protagonizado notícias sobre a ocupação militar na Ucrânia. Algum tempo atrás, mais especificamente em 2019, o motivo do boom no alcance de notícias russas era outro: a utilização de óculos de realidade virtual em vacas, com o objetivo de fazê-las produzir maior quantidade de leite

 O que essas duas situações aparentemente desconexas podem ter em comum, além da origem russa? Respondemos: o uso de tecnologias imersivas. 

Por isso, o convite de hoje é para um diálogo sobre o que são essas ferramentas tecnológicas, os modos como elas são utilizadas e os motivos pelos quais elas merecem nossa atenção. Vem comigo? 

Mapeando o terreno: o que são tecnologias imersivas?

De início, é importante registrar que este é o segundo texto, de uma série de outros neste blog, em que trataremos sobre realidade estendida (em inglês, “extended reality” ou simplesmente “XR”). No plano de fundo dessas produções, temos um projeto de pesquisa no qual nos debruçamos para entender o que são essas tecnologias e quais são os seus impactos, sobretudo no que se refere à privacidade e à proteção de dados pessoais. 

Dito isso, direcionemos nosso olhar para “a pergunta que não quer calar”: em que consiste o que estou chamando de “tecnologias imersivas”? 

Fonte: Dicionário Michaelis

Basicamente, a escolha desse termo engloba diferentes tipos de recursos tecnológicos relativamente recentes, através dos quais é possível produzir uma experiência de imersão do usuário. Para tornar possível esse “mergulho” em uma realidade produzida por máquinas, esses aparelhos ou aplicações utilizam variadas vias sensoriais humanas, sendo as mais comuns a visão, a audição, o olfato e o tato

Tendo em vista os efeitos ainda mais realistas e persuasivos que podem ser produzidos por essas técnicas, essas vias têm sido utilizadas para diferentes propósitos, os quais podem ir desde o treinamento militar à expansão do lucro da indústria agropecuária. Neste ponto, o ponto em comum entre uma possível terceira guerra mundial e a superexploração de vacas leiteiras passa a fazer cada vez mais sentido, diante da vastidão das possibilidades de instrumentalização das tecnologias de realidade estendida. 

E não para por aí: sua utilização e, consequentemente, seus impactos prometem não ficar somente nos noticiários. As tecnologias imersivas tendem a ser popularizadas e inseridas no nosso cotidiano, sobretudo considerando recursos recentes que provocam seu barateamento e facilitam seu manuseio, como a conexão 5G e a iniciativa de grandes empresas de tecnologia, como o metaverso

Dessa forma, tentamos imaginar um futuro em que nós, cidadãs e cidadãos comuns, convivamos com a possibilidade acessível de um mergulho profundo em uma realidade que se aproxima cada vez mais da ficção científica

Do leite à guerra: para que servem as ferramentas imersivas?

Anos atrás, em 2016, pesquisadores do Tech Policy Lab, da Faculdade de Direito da Universidade de Washington, indicavam à comunidade científica a mudança considerável na maneira que a humanidade poderia interagir com os dados: não há uma grande diferença em como uma pintura neolítica e um livro os apresentam, eles disseram, afinal há uma exposição externa ao usuário e que não modifica a sua percepção sobre a realidade física; por outro lado, a realidade aumentada (ao lado de outras tecnologias imersivas, pontuamos) pode apagar a distinção entre a tela dos dispositivos eletrônicos e o ambiente concreto.

Utilizando essa possibilidade, a transmissão de informações assume outro patamar, com impactos ainda mais íntimos no usuário, de modo que a influência nas emoções humanas se torna ainda mais incisiva. 

Talvez por isso o exército norte-americano cogitou a utilização de simuladores em treinamento militar já em 2014

Por outro lado, em 2018, uma parceria entre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a Google e a agência Don’t Panic London lançou o filme A Escolha Certa, no qual, mediante uma realidade imersiva, as pessoas espectadoras experimentam a guerra urbana síria ao lado de uma família de civis, tendo como missão a sobrevivência. Esse episódio ilustra uma nova maneira de contar histórias e é um meio para demonstrar a crueldade da guerra.

Do mesmo modo, em 2021, o Projeto Dastaan recorreu à realidade virtual para possibilitar que idosos visitassem sua cidade natal após mais de 70 anos, fazendo com que revivessem memórias interrompidas pela guerra durante a desocupação britânica na Índia e sua consequentemente conturbada demarcação territorial.  

Enquanto isso, nos Estados Unidos, um simulador possibilita que a pessoa usuária se torne presidente do Estado norte-americano e experimente a iminência de um ataque nuclear russo, com o objetivo de fazer com que autoridades possam aprender a lidar melhor com a pressão e o estresse desse cenário.

Esses exemplos ilustram como as tecnologias imersivas têm sido instrumentalizadas há anos, tanto para desenvolver a indústria bélica quanto para criticá-la, quando há interesse político e econômico. 

Apesar de, até então, o contato com tais tecnologias não ser tão popular, a democratização do acesso aos referidos recursos também se dá movida por interesses econômicos.  Por exemplo, a possibilidade do marketing que utiliza dados biométricos, principalmente no que se refere a informações passadas de maneira inconsciente, torna ainda mais nebulosa a linha tênue entre predizer e controlar o comportamento humano. Sob outra perspectiva, esse fato provoca, simultaneamente, o interesse em empresas que lucram com a publicidade personalizada, como o Meta (antigo Facebook) e o Google, por exemplo.

Nesse sentido, é importante ressaltar que as possibilidades de utilização de ferramentas imersivas não acabam em temas relacionados à guerra ou à agropecuária.  A educação,  o treinamento de condutores, jogos e outros meios de entretenimento, entre diversos outros exemplos, fazem com que as possibilidades de uso sejam inesgotáveis.

Dessa maneira, as finalidades possíveis do uso das tecnologias imersivas são vastas à primeira vista, mas, em uma análise mais detida, tornam-se, surpreendentemente, mais complexas, principalmente quando considerados os vetores socioeconômicos incidentes na exploração desses recursos. Sendo assim, não cabe a este texto esgotá-las, mas nos importa sinalizar que este é um tema para “ficarmos de olho”.

Enxergando o agora sob as lentes do amanhã

Como visto, a realidade mista é um fato que está ocupando nosso presente e aparenta ser um recurso iminente no nosso cotidiano.

Novidades como o famoso jogo Pokémon Go ou os dispositivos móveis “vestíveis”, que funcionam como óculos transportadores para tal imersão, como o Google Glass e o Microsoft HoloLens, demonstram, na atualidade, as possibilidades de um futuro promissor para a realidade imersiva, como já sinalizado por Victor Vieira, no primeiro texto desta série sobre realidade estendida.  

Contudo, mais do que conversas sobre o futuro e as cogitações sobre as várias possibilidades que nele nos aguardam, importa, neste momento, pensar os desafios impostos por essas tecnologias, dentre os quais damos ênfase à proteção de dados pessoais sensíveis (sobretudo os biométricos) e aos limites ao consentimento para utilização desses dados para fins publicitários, ambos os temas ligados ao mundo do Direito.

As soluções jurídicas para essas novas nuances do direito à proteção de dados pessoais exigem uma mudança do paradigma tradicional e prometem fazer com que os operadores do Direito saiam da zona de conforto, caminhando em direção a normas específicas e inovadoras, capazes de lidar com a sensibilidade desse tema, as quais ainda estão sendo gestadas. 

O futuro já começou e exige responsabilidade 

Considerando esse cenário que se instala no mundo atual, é possível concluir que as ferramentas que produzem realidades mistas têm diferentes formatos e podem ser utilizadas para variados propósitos, sendo que, em todos eles, impõem novos desafios técnicos, práticos e sociais, além de carregarem um grande potencial. 

Dito isso, seguiremos produzindo textos neste blog e produtos científicos para compartilhar os resultados obtidos na pesquisa em curso sobre a relação entre as tecnologias imersivas e a proteção de dados pessoais. Por isso, te convidamos a acompanhar a série de blogposts sobre essa temática e acompanhar o Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) nas redes sociais.

Assim, seguimos “de olho” no amanhã que estamos construindo hoje.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Pesquisadora e líder de projetos de Moderação de Conteúdo no IRIS. Mestranda em Direito da Regulação na FGV Rio e graduada em Direito pela UFBA. É advogada e se interessa por temas regulatórios que envolvam regulação de plataformas digitais, inteligência artificial e discussões sobre neurodireitos.

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