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A caixa preta do impulsionamento de campanhas eleitorais

16 de novembro de 2020

Com o isolamento social devido à pandemia do COVID-19 e o protagonismo da internet na atualidade, as campanhas eleitorais se reformularam e pudemos ver que a principal forma de contato e conhecimento do eleitor com os candidatos foi pela internet. Stories, postagens, vídeos, tik toks, reels, lives, mensagens privadas e anúncios em buscadores foram utilizados estrategicamente no convencimento do eleitor. Entretanto, por trás desses conteúdos digitais, que podem parecer despretensiosos, existe um cenário complexo. Ele envolve desde empresas bilionárias que estão submetidas a outras jurisdições e até a própria recente experiência da Justiça Eleitoral brasileira em traçar limites para as campanhas digitais. 

Este texto pretende analisar uma das ferramentas existentes nos bastidores da política brasileira e que foi central para que os candidatos eleitos no último domingo tenham sido vitoriosos: a compra do alcance digital de propaganda eleitoral. No contexto democrático, o princípio da isonomia garante que todos os candidatos tenham a mesma igualdade de chances. Assim, qualquer prática de ampliação do alcance das propagandas eleitorais por meio de dinheiro deve ser acompanhada de perto para que abusos não corrompam a liberdade de consciência do eleitor e o próprio resultado final das urnas.

Impulsionamento e conteúdo patrocinado nas campanhas eleitorais

No Brasil, a legislação eleitoral reconhece o impulsionamento de postagens e conteúdos patrocinados como tipos de uma mesma forma de propaganda eleitoral. Considerando o disposto no art. 26, §2º da Lei 9.504/97, tanto um anúncio patrocinado do Google quanto uma publicação impulsionada no Instagram são passíveis das mesmas modestas restrições e exigências pela Justiça Eleitoral para seu uso.

As exigências ao impulsionamento de conteúdos são básicas e gerais e incluem a obrigação de se declarar todo gasto com impulsionamento na prestação de contas do candidato; proibição de novos anúncios no dia das eleições -ainda que impulsionamentos antigos são permitidos-; proibição do impulsionamento de propaganda eleitoral por pessoa física; identificação do anúncio – como é feito no Google por meio do acompanhamento do termo “patrocinado” no resultado da pesquisa que foi contratado. Há impulsionamento e anúncios de conteúdo político no Instagram, Facebook e Google, enquanto o Twitter e o TikTok não permitem esse tipo de propaganda paga.

De outro lado, diante da liberdade legislativa aos impulsionamentos, alguns pontos controversos são, por enquanto, práticas permitidas, mas que devem ser analisadas com maior atenção. Observa-se o problema diante da utilização de palavras-chaves para construção do anúncio político envolvendo terceiros que não são (ou não deveriam ser) parte do jogo eleitoral, o impulsionamento de conteúdos que confundem eleitores, a baixa transparência das plataformas que se beneficiam com a indústria eleitoral e o enorme impacto que o poder econômico tem nas eleições. 

Lacunas normativas – Caso Boulos e Lula e a pré campanha

Na presente disputa eleitoral em São Paulo, tivemos uma amostra do que os impulsionamentos podem proporcionar aos candidatos. No caso, o candidato Guilherme Boulos realizou anúncios no Google que faziam referências ao Partido dos Trabalhadores, a Luiz Inácio Lula da Silva e, até mesmo, ao candidato do PT, de forma a captar votos de eleitores que buscassem informações a respeito de um candidato que teria perfil ideológico próximo ao seu. Nesse aspecto, o Google define como “índice de qualidade” os fatores que tornam um anúncio prioritário, como a qualidade do site anunciante, a palavra-chave e o histórico do usuário. São esses elementos, extremamente abstratos, que permitem a exibição do anúncio de um candidato em pesquisa referente a outro. 

Nos tribunais brasileiros, o artigo 242, do Código Eleitoral, é utilizado para fundamentar contestações a esses tipos de conteúdos. O artigo dispõe que a propaganda eleitoral não deve “empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. Nota-se que a regra dos tribunais é a liberdade de expressão, entretanto, por vezes, o objetivo principal das eleições, que consiste em um pleito verdadeiramente democrático e isonômico pode ser perdido com isso. Observa-se que diversos usos inicialmente não idealizados aos anúncios e impulsionamentos das plataformas estão sendo postos em prática.

Dentre as estratégias frequentes na corrida eleitoral dentro do universo do impulsionamento de conteúdo digital, destaca-se a compra de um resultado de busca que realiza associações inverídicas. Essa tem sido prática comum ao jogo eleitoral: a sobreposição de informações de um candidato quando o eleitor buscou por outro; e, ainda, ataques ao candidato cujo eleitor buscou informações.

Desse modo, percebe-se que o impulsionamento pode ser utilizado com fins desinformativos e que, por vezes, isso pode trazer danos a campanhas propositivas. Observa-se que algo visto por vezes como inofensivo traz contornos que podem ser entendidos como impeditivos à livre informação de eleitores. Nesse aspecto, o vazio legislativo que permeia a temática dos anúncios nas redes mostra-se algo perigoso e, de forma geral, os tribunais brasileiros estão permitindo tais práticas. 

Por fim, um outro ponto controverso consiste no uso de impulsionamentos em período de pré-campanha eleitoral, que tem como pilar a isonomia entre pré-candidatos. Nesse contexto de paridade de armas, o impulsionamento está sendo constantemente utilizado para romper com essa suposta isonomia eleitoral, visto que seu uso não é considerado propaganda antecipada desde que não haja pedido explícito de voto e nem mesmo é contabilizado como gasto de campanha, pois não há prestação de contas de pré-campanha. Dessa forma, observa-se que diversos pré-candidatos fazem uso dessa ferramenta para se antecipar ao início de suas campanhas, sem que desague em clara contrariedade à lei.

Obrigações de transparência das plataformas

Apesar da legislação brasileira acerca das campanhas eleitorais digitais ainda ser incipiente, qualquer proposta de regulação deve ser acompanhada de avaliações sobre o real poder de eficácia da legislação. Um dos aspectos a ser considerado é o fato das principais empresas que permitem a realização de propaganda paga pela internet não serem empresas brasileiras. Na realidade, todas as principais empresas que ofertam o serviço de ampliação de propaganda política são empresas norte-americanas submetidas à legislação dos EUA.

O Marco Civil da Internet (MCI) é a principal legislação brasileira sobre questões envolvendo o mundo digital. O art. 11, §2º do MCI determina que em assuntos envolvendo o tratamento de dados, todas as empresas que ofertam serviços e realizam tais operações de dados de brasileiros devem observar a legislação pátria. Então, no caso da propaganda eleitoral paga na qual o conteúdo é direcionado ao usuário da internet que possui determinado perfil construído a partir da base de dados da plataforma, a legislação brasileira deve ser seguida

Entretanto, entendemos que questões que vão além do tratamento de dados de usuários e estão relacionadas ao impulsionamento de conteúdo eleitoral não são cobertas pelo MCI, apesar da interpretação sobre a extensão do art. 11 demandar análises mais aprofundadas. Considerando que o Marco Civil da Internet se caracteriza como uma lei principiológica que pretende estabelecer os alicerces da legislação sobre o uso da internet no Brasil, é esperado que questões mais específicas e recentes, como as obrigações de transparência das plataformas digitais, não tenham sido abrangidas pelo MCI e futuramente sejam normatizadas. 

Por exemplo, as obrigações de transparência de conteúdo impulsionado são impostas apenas na minirreforma eleitoral – e, neste ano, pela Resolução 23.610/19 -, a qual passou a exigir que todo conteúdo digital eleitoral pago fosse identificado. Entretanto, essa obrigação aplica-se aos responsáveis pelo pagamento, e não às plataformas. Ainda que diversas plataformas, como Google e Facebook, tenham disponibilizado maneiras para identificação de conteúdo pago de modo a atender a legislação, nenhuma sanção seria aplicada a elas caso não houvesse tal cumprimento. Quando essa exigência de identificação foi aprovada, o Twitter, por exemplo, parou de possibilitar o impulsionamento de conteúdo eleitoral por não se disponibilizar a oferecer formas de identificação das postagens pagas.

Além da obrigação de identificação do conteúdo eleitoral pago, a transparência dessa estratégia de campanha política também é comprometida pela inexistência de padronização das informações que as plataformas devem disponibilizar sobre conteúdo pago. Por exemplo, o Facebook possui uma página web, a Biblioteca de anúncios, que informa questões a respeito dos anúncios sobre temas sociais, eleições ou política no geral que são financiados dentro da plataforma. Dentro da página é possível saber quem foi o investidor do conteúdo pago, o valor do anúncio e a localização

Página Web que apresenta informações sobre anúncios políticos nas plataformas do Facebook:

Fonte: Facebook

Outra grande empresa que oferece serviços de maximização do alcance de conteúdo eleitoral por meio de pagamento é a Google. Os anúncios da Google (Google Ads) promovem um melhor rankeamento do site do candidato, partido ou coligação, como praticado pelo candidato Guilherme Boulos e mencionado anteriormente. Entretanto, diferentemente do praticado pelo Facebook, a Google não disponibiliza um site com informações gerais sobre conteúdo pago, e sim uma extensão que permite que o usuário tenha mais informações sobre cada anúncio pago quando faz uma pesquisa no buscador.

Extensão que possibilita que o usuário tenha mais informações sobre os anúncios na plataforma: 

Fonte: Google

Apesar da Justiça Eleitoral exigir que candidatos prestem informações acerca do impulsionamento de conteúdo aleitoral na prestação de contas, outras informações extremamente importantes ainda são negligenciadas, como as palavras-chaves aplicadas, o grupo ao qual o conteúdo foi direcionado e a governança algorítmica.

Além da inexistência de informações, a falta de padronização da transparência da plataforma dificulta a compreensão e comparação das práticas eleitorais, o que está relacionado com o conceito de gestão de visibilidades de Flyverbom. Ou seja, considerando que atualmente vivemos em um momento em que a transparência é mediada pelo computador, sabe-se que é inviável ter conhecimento de absolutamente todos os processos envolvidos nas campanhas eleitorais. Entretanto, algumas informações são essenciais para o aumento da racionalidade das escolhas – afinal, quanto mais imbuídos de informações acerca dos representantes políticos, melhor exercício do poder de voto – e também para o desestímulo a comportamentos considerados negativos. Assim, esforços de transparência devem ser pensados de forma holística e concreta, pois, para além da disponibilização da informação, o verdadeiro acesso e compreensão de tal informação deve ser garantido.

A importância do debate continuar.

O vazio legislativo e a falta de obrigações de transparência tornam uma ferramenta de estratégia eleitoral em potencial forma de práticas abusivas e opacas. Neste breve texto buscamos levantar algumas questões envolvendo a temática de forma a colaborar com o longo debate envolvendo o uso de poder econômico para promoção de campanhas digitais. Se você tem interesse em conhecer as práticas de transparência das principais empresas de rede social do mundo, acesse o paper recém lançado do IRIS.

*Os pontos de vista e opiniões expressos nesta postagem do blog são de responsabilidade do autor. As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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