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Criação de conteúdo digital: entre a ilusão do mérito e o burnout

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17 de maio de 2021

“Trabalhe com o que ama e nunca mais terá que trabalhar.”

Se essa mentira conveniente do sistema produtivo fosse verdade, qual seria sua resposta para a clássica pergunta estimulante – ou angustiante – “O que você quer ser quando crescer?”. “Digital Influencer” foi a resposta de 86% dos jovens americanos, segundo pesquisa recente da agência de comunicação Morning Consult. E, sim: criar conteúdo para a internet pode ser um caminho divertido para o sucesso, mas ainda é um trabalho e que – como quase todos – tem levado cada vez mais pessoas à alienação e à exaustão. E é desse lado não tão glamuroso que vamos falar no post de hoje.

Poste, poste e poste

Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. (…) Cliquem cliquem cliquem para não ficar para trás e morrer diria Eliane Brum  num diagnóstico triste de tão realista da nossa interação com o virtual, sejamos nós criadores ou consumidores de conteúdo – se é que todos não somos os dois em alguma ou em grande medida.

Mas, afinal, seria a internet – com seu fluxo de conteúdo cada vez mais constante e instantâneo – o cenário responsável por essa corrida sem fim, como poderia parecer num primeiro olhar? Ou seria ela uma ferramenta que potencializa um contexto maior e anterior?

Para o filósofo sul-coreano Byul Chu Han, ao contrário da Modernidade, que era marcada pela repressão e pela negatividade, que condicionavam o reconhecimento e a realização ao atendimento de determinados padrões sociais rígidos, o principal motor da pós-modernidade é a positividade. “Yes. We can!”. “Basta que você se esforce e todos os seus sonhos podem se tornar realidade. Basta que você lute e você conquistará sua liberdade de ser quem você é e de fazer o que você quiser.”

E qual o contexto mais favorável para essa promessa de liberdade se concretizar senão o “país internet”, visto por tantos como sem fronteiras? Qual a melhor forma de conquistar recursos para atingir o ideal de felicidade vendido pelas propagandas – que cada vez mais consumimos sem escolher – do que trabalhando para si mesmo?

Se há dez anos um anúncio “como fiquei rico só trabalhando pela internet” não convencia quase ninguém por parecer fácil demais pra ser verdade, quanto mais assistimos pessoas conquistarem riqueza e reconhecimento criando conteúdo para as mídias digitais, mais gente resolve se arriscar nessa empreitada.

Na realidade, porém, essa conquista que nunca foi fácil demais, torna-se cada vez mais distante. E é essa ilusão, potencializada pela sociedade do desempenho, que tem adoecido pessoas que criam conteúdo no digital, na mesma intensidade.

O “criador de conteúdo” é o novo “jogador de futebol”

Sonhar em ser “YouTuber” ou “blogueira” pode parecer absurdo para quem nasceu antes de 2000, mas, pensando bem, esta é uma opção muito parecida com a escolha de ser “jogador de futebol” feita por grande parte dos meninos da escolinha do bairro naquela época. As duas situações estão diretamente conectadas pelo desejo do reconhecimento.

Na década 60, a televisão passou a ser não só a principal fonte de informação e de entretenimento, mas um canal para se reproduzirem simulações de realidade tão absurdas em que comer margarina passou a ser símbolo de ter uma família feliz.

Nesse contexto, trabalhar “na televisão” já era um sonho distante de muitos que viam nesse meio uma grande promessa de reconhecimento – este que é um ideal quase que inerente ao ser humano segundo a psicanálise. Por nascer desamparado, como diria o psicanalista Pedro Santi, o ser humano é absolutamente ligado ao outro; ele depende do olhar de um outro para realizar seu sentido de existência e, nessa perspectiva, o medo de não ser visto seria um tipo de medo de morte

E tem forma melhor de ser visto que ter sua imagem transmitida para um país inteiro? Porém, até as crianças de décadas atrás sabiam que conquistar esse sucesso dependia de muitos fatores externos, até mesmo de sorte.

Hoje a realidade é outra. Não só com as telas, mas com câmeras nas mãos – que transmitem não só para um país, mas para o mundo todo – o sonho de ser visto por milhares de pessoas e de conquistar riqueza e sucesso parece cada vez mais possível. Mas será mesmo?

Criar conteúdo não só dá trabalho: é trabalho

Em sua obra Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx traz o conceito de “salto mortal da mercadoria”, caracterizado como o momento em que esta encontra um comprador. Sem ser comprado, um produto – ou um estoque lotado dele – representa apenas custos e fracasso para aquele que empreendeu sua produção.

E é para atender a esse objetivo que, assim como na segunda metade do século XX, investiam-se milhões em comerciais para a televisão, que hoje se compra espaço na nova principal fonte de informação e de entretenimento: as redes sociais.

E este é um dos grandes papéis do conteúdo digital: manter as pessoas na rede; permitir a manipulação dos hábitos de consumo, e é aqui que entra o nosso criador.  Este que, achando que está desbravando uma nova terra, sem fronteiras e sem leis, está trabalhando como servo de um proprietário invisível.

E, nesse sistema de propriedade, só quando o conteúdo produzido retorna para os financiadores invisíveis da estrutura de trabalho o seu “quinto”, é que esse trabalhador poderá começar a receber pelo seu tempo e pela sua energia.

Ser criador de conteúdo é ser trabalhador, e não empreendedor, mas, sem consciência disso, e achando que trabalham para si mesmas e que são donas do próprio negócio, cada vez mais pessoas investem seu tempo e sua energia em uma atividade, sim, extremamente lucrativa para tantos, mas não para elas.

Saindo da ilusão: do burnout à consciência

Portanto, o discurso da sociedade do desempenho é duplamente falho. Tanto porque conquistar sucesso não é apenas uma questão de esforço em nenhum contexto em que não haja igualdade de recursos; quanto porque o “sucesso do conteúdo” serve a interesses externos ao indivíduo que se empenha nele. Não há nada de tão novo sob o Sol. Não é de hoje que nossa energia é consumida pelo sistema produtivo, mas nesse tempo em que até nossa identidade está sendo, é preciso cuidado. “Crie conteúdo sobre o que ama e ainda trabalharás”. Muito.

Antes de pensar na regulamentação das relações de trabalho no digital – que, sem dúvida, já é necessária -, é urgente tomar consciência de “o quê nesse novo contexto é trabalho”. Então, pare de clicar por um minuto, e reflita sobre esse assunto. Colabore com o criador de quem você consome todos os dias refletindo e, depois, contribua com esse debate. Para seguir se questionando sobre trabalho virtual, confira o post do pesquisador Leandro Soares, aqui no blog.  aqui no blog, do Leandro Soares.. Ainda da autoria de Leandro,, não deixe de conferir sua reflexão sobre o documentário “Dilema das Redes”, que me inspirou na construção do aspecto econômico da discussão que acabamos de compartilhar.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Formada em Direito pela UFMG, criadora de conteúdo para a internet e educadora para a autonomia. (Des)professora de redação e comunilósofa.

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