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Streaming e a Arte na Era dos Algoritmos: como o Big Data desvela antigos preconceitos

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24 de fevereiro de 2021

“[…] ninguém chegou a pensar que essa série talvez seja a maior obra de arte do algoritmo da Netflix. – Gustavo Miller

Frente ao indubitável sucesso crítico e comercial de Stranger Things (produção seriada original da gigante Netflix), Gustavo Miller, gerente de marketing digital na Shopify e ex-professor da ESPM, publica em 2016 sua crítica citada na epígrafe ao que vou apelidar de “natureza manufaturada” desse produto midiático. O método, de acordo com ele já testado com outra produção original aclamada (a adaptação americana de House of Cards), era de construir precisa e “inorganicamente” uma obra audiovisual a partir do acúmulo dos dados sobre as preferências dos assinantes do serviço de streaming. No mesmo sentido, foram publicadas diversas críticas sobre a centralidade do algoritmo na concepção, inclusive na Folha de São Paulo.

O que dados tem a ver com entretenimento? Algoritmos estão criando suas séries favoritas? Estamos sendo manipulados a ter fortes respostas emocionais a produtos do audiovisual com base em nossos dados pessoais? Existe espaço ainda para arte na era da digitalização? Essas são algumas das discussões que esse texto abordará. 

É preciso entender os conceitos

Antes de entrar em conceitos espinhosos como arte, entretenimento e mídia, primeiro há de se limpar a mesa e deixar claro o que significa algoritmo, análise de dados e big data.

Algoritmos nada mais são do que listas de instruções para um computador, receitas de bolos digitais. Isso significa que a partir de uma linguagem de programação – ênfase na ideia de linguagem porque denota como esses processos são mais comunicacionais do que necessariamente exatos e imparciais – alguém cria um código que será seguido pela máquina à risca. A discussão em torno dos “algoritmos” surge com muita força quando pensamos em experiências com machine learning (algoritmos que se aperfeiçoam de acordo com os inputs que recebem e que, a partir de uma determinada complexidade, passam a ser tratados como inteligência, uma vez que os próprios desenvolvedores já não conseguem mais prever os outputs com precisão) que geram problemas como o viés racista na publicação de fotos no Twitter ou a contribuição do YouTube na captação de jovens para a extrema direita

No entanto, nem todos os códigos são algoritmos de inteligência artificial. Na verdade é muito mais comum que eles estejam relacionados à captação de dados sobre a atenção dos usuários (o tempo diário gasto com uma determinada série, o tempo que se demora para terminar um filme, quantas pausas foram dadas ao longo de uma assistida completa, o tempo de busca por alguma produção para se assistir, etc.; tudo isso cruzado com seus atores, diretores, produtores e roteiristas favoritos) e ao tratamento desses dados (operações matemáticas e lógicas para aglutinar ou separar esses dados em grupos a partir de padrões). Nesse sentido, parafraseando Carlos Kramer, profissional de design de produtos digitais, os algoritmos ainda não estão escrevendo nossas séries favoritas, mas é muito evidente que os serviços de streaming usam e abusam da análise de dados.

O que nos leva à segunda questão: análise de dados não é algo novo, principalmente naquilo que tange ao marketing e a publicidade. As primeiras tentativas mais formais de aplicação da estatística à realidade social podem ser traçados de volta a clássicos das ciências sociais como Durkheim em seu livro canônico “O Suicídio”, no entanto os métodos de análise foram elevados a uma nova categoria de sofisticação a partir da década de 50 nos Estados Unidos da América com a emergência da escola do Comportamento do Consumidor, perspectiva do marketing com foco nos “mercados consumidores”: informações demográficas de quem são e quantos são. O que muda a partir da digitalização desses processos não é nem necessariamente as técnicas às quais os dados são submetidos quando tratados, mas sim o volume de dados e operações que podem ser feitos com menos recurso (apenas um computador). A isto que nomeia-se big data.

A forma como os serviços de streaming operam essas análises dos dados acumulados a partir das experiências dos assinantes é explicada magistralmente no texto disponibilizado pela própria Netflix que utiliza da sua empreitada com “Defenders” como um exemplo – uma “série” de séries de super-heróis da Marvel produzidas originalmente pela empresa: “[…] baseado em uma análise realizada em mais de 40 países entre 2015 e 2017, a empresa traz as séries da Marvel como exemplo. Quem gosta de temas envolvendo ambiguidade moral e anti-heróis como visto nas séries ‘House of Cards’ e ‘Dexter’ foi direcionado para ‘Demolidor’. Se o humor inteligente de ‘Friends’ e as personagens femininas fortes de ‘Orange is the New Black’ fisgaram o espectador, ‘Jessica Jones’ é uma recomendação que atenderá às expectativas. Enredos sobre perigo e consequências complexas são gatilhos para ‘Luke Cage’ e a transição da juventude para vida adulta em séries configura um cenário que leva a recomendação de ‘Punho de Ferro’.” (texto publicado pelo blog Series Talkers parafraseando e sumarizando o artigo da Netflix).  

Resumindo e citando novamente Carlos Kramer: “é possível que a Netflix crie novas séries ou escolha atores e temas tendo como insumo a análise dos dados que nós geramos ao interagir com o sistema deles? Sim, possível e provável. Isso é feito de maneira automática? Um computador cospe um script com casting e trilha sonora baseado num cálculo das nossas preferências? Não, não é bem assim. Ainda há muito trabalho humano nesse processo.”

A impossibilidade de inovar olhando para trás

Agora é de entendimento comum que, ainda que os serviços de streaming tenham em suas mãos um recurso valioso (os dados de atenção de seus assinantes), os insights sobre o que fazer com esses dados e de que forma arranjá-los coerente e coesamente em uma série, animação ou filme são obra do esforço e criatividade humana. Então o que as críticas em torno da “natureza manufaturada” dessas produções evidencia?

Quando se fala sobre dados, se fala sobre experiências passadas. Uma base de dados a partir da qual um analista traça uma tendência nada mais é do que um banco de situações e/ou fenômenos acumulados ao longo do tempo e que, quando possuem correlações fortes com alguns parâmetros de análise, podem sugerir inferências informadas sobre o futuro possível. 

Um dos apontamentos do colunista da Folha de São Paulo, Matheus Magenta, é que a produção audiovisual do serviço de streaming sinaliza o auge de manipulação do público. A maior graça da série […] é se dar conta da precisão alcançada pelo algoritmo da Netflix.” O que ressoa nessa fala é a preocupação de que construir obras de ficção a partir de gostos pré-definidos e modelados no passado categoriza manipulação no sentido em que não permite o contato dos espectadores com produtos de mídia que os desafiem, os tirem da zona de conforto e os instiguem a criarem novas sínteses a partir do léxico audiovisual que é expandido por novos filmes, novas séries e novas animações.

A ideia é de que é impossível inovar quando as bases referenciais dos produtores apontam para algo já ruminado pelo público. A manipulação ainda confere às grandes empresas do streaming a possibilidade de influir no comportamento dos usuários como explica Letícia Saturnino no blog da UOL: “É importante, ainda, notar como essa cultura algorítmica tem impactado o usuário, de modo que produza nele novos hábitos de pensamento e conduta. ‘Sem sombra de dúvidas a gente deve assistir uma mudança breve de comportamento não só de consumo, mas também de outras questões comportamentais. Por exemplo, quais serão as carreiras do futuro baseadas nisso?’, questiona Mariane [Firmino, ex-líder da unidade da IBM Commerce no Brasil]”. 

Visto que essas estratégias têm rendido sucesso comercial e crítico, principalmente quando se leva em conta que as produções originais da Netflix escalaram de 34 indicações ao Emmy Awards em 2015 para 160 indicações em 2020, só nos resta, assim como alguns críticos apontam, aplaudir a precisão dos analistas empregados nas grandes empresas do streaming. 

Novos argumentos e velhas críticas

Embora seja possível entender a preocupação a partir da perspectiva exposta no tópico acima – o que recai mais sobre o modo de produção capitalista do que no funcionamento específico em que são arquitetados esses serviços digitais -, desvencilhar essas ideias de um “apocalipticismo” em relação às novas tecnologias de informação e comunicação se torna difícil. Na melhor das hipóteses, essas análises revelam como a crítica cultural ainda está ligada a determinados mitos como o da genialidade do autor.

Explicando de forma superficial, o autor gênio só pode existir quando isolado completamente do contexto social que ocupa. O autor gênio não é um produto sociocultural de seu tempo: ele transgride as barreiras do senso comum e a mediocridade da tendência de forma hermética e não como uma resposta lógica e dialética à produção artística com a qual está em contato. Ele ainda não deve nada à tradição histórica da arte, uma vez que está desconectado da história. 

Esse é o mesmo mito que foi invocado tantas vezes como argumento contra o bem-estar social, como lenha para uma ideia meritocrática de acesso e capacitação. Pierre Bourdieu em seu livro “O Poder Simbólico” nos apresenta a ideia de campo como um conceito que abrange um espaço simbólico onde se desenrolam  as lutas dos agentes pela determinação, validação e legitimação das representações. É dentro do campo que se estabelece uma classificação e, consequentemente, uma hierarquização dos signos. 

No campo da arte, por exemplo, a luta simbólica entre críticos e produtores de arte determina o que é erudito, ou o que pertence à indústria cultural; o que é das classes baixas, ou o que pertence às classes abastadas. É interessante notar onde estiveram esses marcadores de classe quando os filmes originais da Netflix Okja, de Bong Joon-ho, e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach foram criticados e deslegitmados no Festival de Cannes de 2017 por nomes de peso do cinema autoral como Pedro Almodóvar e Steven Spielberg pela ausência da “experiência cinemática” – e que sejamos francos, os diretores infelizmente não estão falando sobre a experiência do “cinema de shopping” das quais 10 de 12 salas exibem filmes do conglomerado Disney -.

O “apocalipticismo” da relação da crítica cultural contemporânea com as novas mídias digitais desvela antigos preconceitos no sentido em que, quando se olha diretamente para as tecnologias como fonte de problemas, tira-se de questão os agentes que utilizam dessas tecnologias como forma de manutenção da desigualdade social e das discriminação. Continua sendo, como sempre foi, uma questão ideológica da classe dominante.

Por isso, é importante a leitura dos termos de privacidade e entendimento de como seus dados pessoais são tratados, para que haja consentimento apenas daquilo que o usuário  achar válido. Esse é não só um direito (discutido melhor por uma convidada do IRIS no texto (não) estou ciente e permito a coleta dos meus dados pessoais) como também uma forma de não se deixar levar por discursos que se aproveitam da ignorância generalizada em torno de temas da internet para reforçar ideias que deveriam cair em desuso.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Escrito por

Aluno de graduação em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do projeto de pesquisa voltado a investigação da inclusão digital. Já esteve envolvido com projetos referentes a comunicação política, educação e patrimônio cultural imaterial. Atualmente se dedica aos estudos culturais.

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