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O Capitalismo pela ótica do Vale do Silício: os Problemas de “O Dilema das Redes Sociais”

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4 de novembro de 2020

“[…] preocupados em entender o capitalismo de vigilância, as pessoas tem que entender primeiro o que é o capitalismo”. – Mauro Iasi

Uma descrição possível do documentário estadunidense “O Dilema das Redes” (dirigido por Jeff Orlowski e escrito por Orlowski, Davis Coombe e Vickie Curtis) é de uma obra educativa no sentido técnico da produção e reprodução das tecnologias de informação e comunicação, porém deficitária naquilo que diz respeito a leitura de conjuntura. Algo decorrente da sua forte inspiração no livro “The Age of Surveillance Capitalism”, que incorre em alguns dos mesmos erros conceituais presentes no documentário. O longa-metragem se divide em duas partes: a primeira, uma série de entrevistas com grandes nomes das indústrias Big Tech; a segunda, uma ficção que se pretende tanto como exemplo do dilema a ser tratado quanto como argumento sociopolítico.

Nesse post, pretende-se discutir quais são as estruturas que realmente determinam os problemas que o documentário falha em denunciar e por que essa “falha” analítica pode, assim como o dilema das redes sociais, não ser tão acidental como se sugere.

Qual o dilema de fato?

“Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”. – Sófocles

Com essa epígrafe, o primeiro momento do documentário (as entrevistas) naturaliza práticas comerciais predatórias desenvolvidas pelas empresas do Vale do Silício e a palavra “desenvolvidas” é chave nesse texto. Ainda que os entrevistados – grandes figuras por trás do design de plataformas como Google, Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, entre outras empresas – acreditem terem acidentalmente desenvolvido novas modalidades de produção de valor no mercado global, a realidade é até talvez mais simples. 

O dilema consiste em grandes “agências publicitárias” cujo trabalho foi elevado em sofisticação e volume de tal maneira que fenômenos básicos do capitalismo como a coisificação (reificação) dos sujeitos, o fetichismo da mercadoria e a alienação dos desenvolvedores – de forma que há uma incongruência ou desencontro entre o produto final (o funcionamento pleno das redes sociais) e as intenções dos programadores na construção de cada parte desse produto – se tornam impossíveis de ignorar.

Karl Marx, no Volume II do Capital, argumenta que o capitalismo em sua totalidade é unidade entre produção e circulação da mercadoria, o que implica dois tempos diferentes para a concretização do valor dessa mercadoria: a realização do serviço ou confecção do produto, onde o trabalho é apropriado; e a venda, quando se concretiza o lucro, que consiste numa sobrevalorização da mercadoria sobre seu valor de produção, ou seja, um mais valor sobre o trabalho. Ambos os processos correspondem a transformação de capital (maquinário, matéria prima e força de trabalho) em commodities (produtos que podem ser trocados em uma relação quantitativa por dinheiro e até mesmo o próprio dinheiro). 

A questão que essa perspectiva abre é que o valor da mercadoria, no caso a atenção dos usuários de redes sociais e os perfis e nichos traçados a partir acúmulo de dados sobre essa atenção, se concretiza em sua compra por grandes empresários, enquanto a indústria do Big Tech, ainda que tenha acumulado uma enormidade de recursos financeiros, está somente na esfera da circulação e se apropria apenas de uma fatia do valor produzido. 

Christian Fuchs, sociólogo marxista estudioso da Internet e, mais especificamente, das redes sociais, ao se debruçar sobre o tema da definição do conceito de classe social, contribui para a discussão por meio da expansão do conceito para abarcar novas formas de produção relacionadas àquilo que ele nomeia capitalismo informacional. Ou seja, 

“uma categoria que é usada para descrever as partes das sociedades contemporâneas que estão baseando suas operações predominantemente na informação a qual é entendida como processos de cognição, comunicação e cooperação e outros processos relativos a tecnologia de informação”. – Christian Fuchs

Fuchs pretender discutir a comodificação da informação e do conhecimento e como eles ainda são apropriados em relações exploratórias e assimétricas entre a classe trabalhadora e os capitalistas. Nesse sentido, a indústria Big Tech se apropria de fato do trabalho, posto que a produção de conteúdo para as redes sociais ainda constitui uma forma laboral. Em seu artigo “Labor in Informational Capitalism and on the Internet” o autor aponta que “Há trabalhadores diretos do conhecimento (tanto empregados em profissões assalariadas em firmas ou terceirizados, empregos nos quais ‘você é seu próprio contratante’) que produzem bens do conhecimento e serviços que são vendidos como commodities no mercado (e.g., software, dados, estatísticas, expertise, consultoria, publicidade, conteúdo midiático, filmes, música, etc.)”.

O que isso acarreta é que as decisões sobre como as redes sociais são arquitetadas respondem menos à “decisões tomadas por cinquenta designers homens e brancos entre 25 e 35 anos” – como diria Tristan Harris (um dos entrevistados) – do que aos interesses das categorias que de fato subsidiam o funcionamento e manutenção desses serviços. Embora essas categorias, os anunciantes que compram os perfis traçados a partir da sua atenção nos conteúdos das redes sociais, muito provavelmente sejam homens e brancos, suas ambições não estão alinhadas aos interesses dos desenvolvedores e dos trabalhadores dessas empresas, o que os tornam o sujeito oculto desse filme: não são nomeados e muito menos citados como parte do problema. 

Tecnologia e imparcialidade

Ainda próximo ao início do filme, um dos entrevistados diz que “essas coisas criam vidas sozinhas” ao se referir aos algoritmos desenvolvidos para a personalização da disposição de conteúdo para cada usuário em uma rede social e suas consequências. Aqui, fica implicado um conceito a ser desenvolvido mais tarde pelo documentário que é a ideia de machine learning: algoritmos que se aperfeiçoam de acordo com os inputs que recebem e que, a partir de uma determinada complexidade, passam a ser tratados como inteligência, uma vez que os próprios desenvolvedores já não conseguem mais prever os outputs com precisão. 

Uma das entrevistadas, Cathy O’Neil, autora do livro “Weapons of Math Destruction”, aponta um equívoco na lógica acidental em que se racionaliza o problema das redes sociais: algoritmos são opiniões embutidas em um código. Com essa síntese, a autora denota que, ainda que não se consiga precisar os resultados aferidos pelos códigos que regem as redes sociais, as definições de ordem subjetiva daquilo que é uma “operação bem sucedida” foram definidos a priori pelos programadores. Disso resulta não só reais aberrações algorítmicas como o recente escândalo do viés racista na publicação de fotos no Twitter ou a contribuição do YouTube na captação de jovens para a extrema direita, como também permite compreender que a neutralidade científica e técnica que o documentário pretende imprimir sobre as redes sociais é falsa.

Não é novidade nos debates das ciências sociais, principalmente na antropologia, que a pretensão científica tem, por diversas vezes, o objetivo de legitimar um discurso como mais correto ou como uma visão mais imparcial (uma grande referência para esse debate seria Thomas Kuhn no tratamento da ideia de legitimidade). Nesse sentido, as entrevistas com experts do Vale do Silício operam uma redução da discussão aos seus parâmetros técnicos, não só ignorando, como dito acima, as questões estruturais do desenvolvimento das redes sociais como serviço e trabalho no contexto de capitalismo tardio, como de fato apagando os interesses de classe que levaram a sua confecção.

Uma ficção política feita por pessoas que não entendem de política

O que mais chama atenção nesse documentário e que acaba cumprindo o papel de exprimir toda a carga dramática do dilema é a parte ficcional do roteiro. Ela foca numa família classe média estadunidense e as consequências do uso indiscriminado e não supervisionado das redes sociais pela juventude. 

Uma primeira crítica possível é a tentativa de universalização dessa experiência como o “caso médio” do problema das redes sociais. A apropriação que se faz dessas tecnologias obviamente varia de acordo com a localização do sujeito nas estruturas sociais, posto que a vivência do virtual não está departada da experiência subjetiva da realidade material. Uma tentativa de universalizar essa situação acaba por apagar até mesmo resultados positivos das redes, como a organização de categorias minoritárias (mulheres, LGBTQs, negros, PCDs, etc.) e pessoas em situação de repressão política, assim como a difusão de um senso crítico voltado às políticas de identidade.

A narrativa ficcional ainda desvencilha, junto das “propostas de resolução” dos entrevistados, os problemas sociopolíticos da arquitetura das redes sociais de seu caráter eminentemente econômico e estrutural. Isso ocorre por meio das constantes chamadas para questões da subjetividade como os problemas de saúde mental da filha mais nova da família. O problema dessa representação não é que esses efeitos não ocorram de fato, no entanto, a centralidade impressa neles tira de foco os agentes responsáveis por esse fenômeno e desloca tanto as tentativas de resolução para uma ordem individual de consentimento quanto o dilema para uma questão ética dos desenvolvedores não ligados aos interesses de classe que realizam a manutenção de suas plataformas.

Ainda sobre essa dissimulação empregada pelo filme, surge de fato a maior crítica ao argumento da narrativa ficcional: a teoria da ferradura. Ao não localizar por quem e como são empregadas técnicas como o uso intensivo de fake news, o documentário traz a tona sua visão de que qualquer forma de radicalização que critique o status quo das democracias liberais é de fato uma anomalia social. A história emprega uma associação fictícia chamada de “Radicais do Centro” como forma de criar um foil para toda e qualquer organização política que reinvidique suas pautas de “forma enérgica”.

    Mesmo que para muitos daqueles que assistam ao documentário pareça óbvia a referência às organizações de extrema direita, o argumento, ao se omitir de localizar o fenômeno, corrobora com a visão de Donald Trump que categoriza, por exemplo, tanto a Ku Klux Klan quanto os movimentos Antifascistas enquanto insurgências terroristas da mesma esfera. É a velha ideia de que fascismo e comunismo são diferentes faces da mesma moeda, mas dessa vez dissolvidas em manifestações menores e não menos polêmicas de esquerda e direita dentro das próprias democracias liberais.

Por um olhar crítico da obra

Embora os problemas denunciados pelo documentário sejam realmente questões a serem trabalhadas nesse novo momento de Capitalismo de Vigilância, a análise é falha. Fica evidente a falta de conhecimento dos produtores sobre as formas como publicidade, marketing e propaganda são serviços “manipuladores” (linguagem empregada no filme) desde o próprio cerne. Alguns dos argumentos realizados pelos entrevistados como forma de denúncia ao dilema das redes sociais (como a criação de desejos e a transformação calculada de comportamentos individuais) poderiam ser facilmente transportados a década de 50 para discutir o American Way of Life e o cinema de Hollywood. A questão aqui está em volume, escala e sofisticação. 

É muito interessante e muito bem vinda a tentativa de educar um grande público sobre o funcionamento particular das redes sociais e seus consequentes problemas com um conteúdo mais técnico. Entretanto a resolução, ao contrário do que sugere o documentário recorrentemente, não é de ordem ética, nem moral e muito menos individual, mas sim passa pela organização e demandas da sociedade civil e de agentes políticos interessados.

Quer saber mais sobre redes sociais e as medidas que têm ou não sido tomadas para lidar com seus desafios? Confira também nosso Café & Chat sobre “O que (não) sabemos sobre a moderação de conteúdo nas redes sociais?“.

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Aluno de graduação em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do projeto de pesquisa voltado a investigação da inclusão digital. Já esteve envolvido com projetos referentes a comunicação política, educação e patrimônio cultural imaterial. Atualmente se dedica aos estudos culturais.

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