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Qualidade e disponibilidade de conexão, um problema de classe

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6 de dezembro de 2021

A quem chamamos conectados? O quê consideramos para categorizar uma população digitalmente incluída? À primeira vista pode parecer que a conexão à internet será o suficiente, o que não é verdadeiro, já que a conexão não garante um uso seguro, apropriado da rede. Mas, ainda que considerássemos a conexão como o primeiro grande desafio à universalização da internet, um olhar mais cauteloso nos fará perceber que ela não só ainda é insuficiente no território brasileiro, como é mal distribuída entre a população.

Subclasses dos conectados  

Em 2017, Flávia Lefèvre escreveu um texto em seu blog intitulado “Zero-rating – A Internet dos Pobres”, o texto alertava para a tendência de que a popularização da prática do zero rating – onde o custo de conexão à determinadas plataformas é transferido à operadora do serviço após o fim da franquia de dados contratada – pudesse criar subclasses de usuários da internet. Isso aconteceria ao passo que cidadãos ficassem limitados aos sítios “gratuitos”, enquanto todo o resto de conteúdo e possibilidade da rede estariam simplesmente indisponíveis para o usuário. 

Agora, em 2021, temos acesso aos resultados da pesquisa realizada por uma parceria entre o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e o Instituto Locomotiva. O relatório deBarreiras e limitações no acesso à internet hábitos de uso e navegação na rede nas classes CDE” traz dados muito relevantes para a compreensão do cenário de conectividade no país, que não termina no acesso. 

A pesquisa demonstra que, nas classes mais vulneráveis socioeconomicamente, o celular é destacadamente o meio mais utilizado para a conexão à rede (91%). Ainda, 58% utilizam planos de dados pré-pagos, que não geram uma despesa fixa mensal, mas acabam por oferecer um serviço mais limitado. Isso faz com que “a internet acabar” seja algo cotidiano na vida de milhões de brasileiros. 

Os dados demonstram que, entre as classes C, D e E, o pacote de dados dura uma média de 23 dias no mês e entre os usuários de planos pré-pagos, especificamente, 21 dias. Isso significa dizer que passam praticamente um quarto do mês privados do acesso à rede, utilizando apenas aplicativos gratuitos. Isso acaba por restringir a experiência online, transformando-a em uma rotina de acesso às aplicações e compromete a qualidade do acesso, das informações, dos serviços disponíveis online. Em última instância, grande parte dos considerados conectados à internet, acabam por ser, somente, clientes do serviço de grandes plataformas. Fato que nos remete aos resultados do relatório de 2019 sobre “Saúde da internet” da Fundação Mozilla, onde 55% dos brasileiros consideravam que o Facebook era a internet

Digitalização do estado e digitalização da cidadania 

84% da população entrevistada das classes C, D e E declararam que a internet é muito importante em suas vidas. E, considerando os dados que indicam a precariedade da conexão, é muito importante analisarmos o impacto disso no exercício da cidadania e na inclusão digital efetiva dos indivíduos. 

Num contexto onde o acesso à internet é determinante para o acesso a serviços, informações e notoriamente uma via para o exercício de direitos, é preocupante que ele aconteça de forma tão desigual entre cidadãos. O resultado é a privação de serviços: 66% dos respondentes declararam já ter deixado de realizar alguma atividade por falta de internet. 43% afirmam ter deixado de buscar notícias, 30% já deixaram de verificar a veracidade de informações recebidas, 35% já deixaram de assistir aulas, 24% deixaram de receber algum benefício do governo – como o auxílio emergencial. 

Essa privação é mais grave entre os usuários que utilizam planos com franquias, o que os levam, inclusive, a se esforçarem para “economizar internet”, deixando de fazer uso da rede para que ela dure mais tempo. 

O problema vai além do acesso, a solução também

A desigualdade na qualidade de conexão no Brasil se sobrepõe às desigualdades sociais e econômicas que marcam nossa sociedade há muitos anos. Em comunidades periféricas há insuficiência de infraestrutura, de disponibilidade de sinal, má oferta de serviços e, ainda, precariedade no acesso às tecnologias de acesso.

Equipamentos obsoletos e não funcionais ocupam os cômodos da população mais vulnerável economicamente no país. Os preços inflacionados de eletrônicos – em especial nos últimos anos, onde o custo de vida e acesso aos bens básicos aumentaram significativamente – também representam uma barreira significativa para a inclusão. 

E, mesmo entre aqueles que são considerados conectados pelos dados estatísticos, encontramos problemas seríssimos de qualidade de conexão – como esses elucidados pela pesquisa do Idec e Locomotiva. Criamos uma massa de cidadãos mal conectados e pouco nos preocupamos em aprimorar a sua presença na rede, tanto em termos de disponibilidade da tecnologia, quanto no desenvolvimento de habilidades e alfabetização digital, aspectos incontornáveis para uma inclusão digital eficiente.

Conectar coisas, conectar pessoas 

O descompasso entre as estratégias de modernização do país e as políticas públicas engajadas em consolidar a universalização do acesso e a promoção da cidadania digital nos coloca frente a velhos problemas, ainda que novas tecnologias nos causem entusiasmo. É o caso da chegada do 5G no Brasil, uma tecnologia importante para o desenvolvimento brasileiro, que já começa com um leilão controverso que pouco arrecadou no quesito compromisso com o desenvolvimento social. Em alguns anos, a promessa é que sejamos capazes de conectar “todas as coisas”, ainda que nem todas as pessoas estejam devidamente conectadas. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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