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Cibersegurança e gênero: desafios e oportunidades na América Latina

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19 de março de 2024

08 de março foi o dia internacional da mulher e os debates dentro da governança da internet ganharam maior atenção no que se refere às questões de gênero. Mas o que a cibersegurança e a América Latina tem a ver com isso? 

Pesquisadores, estudioses e instituições da sociedade civil vêm demonstrando, ao longo de suas pesquisas, que o marcador social de gênero não tem recebido dos governos locais a importância devida para a criação de políticas e ações públicas institucionais na área da governança da internet. E por quais motivos isso ocorre? Quais os desafios e oportunidades existentes nestes contextos sociais? Eu te convido a brevemente a pensar nessas questões aqui comigo neste texto.

Cibersegurança e gênero – partindo do princípio e tentando conceituar os termos

Definir conceitos sempre é uma tarefa complicada, mas alguns casos são mais espinhosos. Gênero, por exemplo, é um conceito que atravessa as formações de identidades sociais, estruturas e subjetividades socialmente construídas. Por sua vez, cibersegurança é objeto de estudo de várias áreas: segurança pública, segurança internacional, ciência política e sociologia. Mesmo com essas dificuldades, esse esforço é necessário.

Em termos de proximidade dos dois conceitos, destaco que a violência de gênero online tem impacto significativo nos direitos econômicos, sociais, culturais e humanos das pessoas afetadas, repercutindo nos ambientes de trabalho das mulheres e em seus direitos quando são forçadas a se retirar da Internet, reconhecida como um meio fundamental para a realização dos direitos fundamentais pelas organizações internacionais de direitos humanos. Durante o período de 2020-2021, houve um aumento alarmante na violência online, com denúncias de violência e discriminação contra mulheres crescendo 21,27% em abril de 2020 em relação ao ano anterior, segundo dados da ONG SaferNet. A exposição de imagens íntimas também aumentou em 154,90%, com 70% das vítimas sendo mulheres.

Assim, aqui parto do pressuposto de que: 

a) gênero pode ser um conceito entendido dentro de um campo dos efeitos do poder, perpassado por normatividades categóricas; 

b) pensar sobre gênero é pensar sobre processos de produção de identidades e manutenção das relações entre elas, com foco na genealogia dos mecanismos de poder que as tem como efeito; 

c) ou seja, quando falo termo “meninas e mulheres”, me refiro aqui a indivíduos que se identificam dentro do espectro da performatividade feminina, incluindo mulheres cisgênero, mulheres transgênero, travestis e pessoas não binárias que se reconheçam em espectros da mulheridade ; 

d) o conceito de cibersegurança adotado aqui inclui crimes cometidos por meio digital, tanto por pessoas individuais quanto por entidades governamentais e privadas; por fim, 

e) não se pode pensar em cibersegurança sem pensarmos criticamente nos discursos em torno de potenciais formas inovadoras de criminalizar diversos grupos sociais já historicamente vulnerabilizados.

Juntando os dois conceitos, vislumbro que as principais formas de violência de gênero dentro desse contexto encontradas na literatura são: a) censura, b) insultos/discurso de ódio, c) ameaças de violência física, d) perseguição/stalking, e) doxxing, f) uso não consensual de fotos, g) sextorsão, h) pornografia de vingança, i) mobbing, j) hacking, k) uso de identidade sem consentimento e disseminação de dados pessoais falsos, l) algoritmo racista, e m) ataque a categorias profissionais.

Neste sentido, pensar em gênero e cibersegurança – crimes cometidos em meios digitais – é pensar na caixa de ferramentas analítica que possuímos para criarmos desobediências sociais possíveis que nos tragam rupturas e mudanças em nossos meios de ação e mudem um cenário violento e muitas vezes perverso. Ou seja, pensar em formas de combate às violências que não nos tornem perpetuadores de novas formas de violências neste campo de poder, novamente criminalizando grupos vulnerabilizados. Bora pensar em conjunto?

Quais os principais desafios e riscos em países da América Latina em questão de gênero e cibersegurança?

Para os assuntos aqui propostos, talvez seja importante pensarmos nos desafios e riscos encontrados na literatura da área e em nosso contexto latino-americano, marcados por sociedades hierarquizadas em termos de raça, sexualidade e gênero. Eles podem ser agrupados em três grupos:

Esses riscos e desafios estão relacionados à identificação da violência online de gênero, à busca por intervenções eficazes e à integração de tecnologias de cibersegurança em sociedades patriarcais.

Pensando para além dos desafios: oportunidades de ação – o que a caixa de ferramentas nos apresenta?

Diante dos desafios listados, alguns caminhos são possíveis para quebrarmos as imposições de poder e construirmos novos espaços a partir de desobediências nas ações que nos são esperadas.

A avaliação das oportunidades na interseção da cibersegurança e gênero requer uma análise crítica do discurso sobre criminalização, autoridade estatal e espionagem, dada a possibilidade de ações potenciais ampliarem as capacidades de vigilância e espionagem além dos limites de legitimidade. 

As oportunidades destacadas incluem a construção de espaços de formação em tecnologias e segurança digital com perspectiva feminista, a criação de materiais acessíveis sobre privacidade e proteção contra violência digital, e o desenvolvimento de redes de apoio e alfabetização digital. Na literatura, há uma ênfase na autonomia das TICs e em estratégias para mitigar riscos de violência digital, com destaque para a necessidade de políticas de cibersegurança que considerem os marcadores sociais de diferença.

De forma resumida e prática seriam: 

a) construção de espaços alternativos de formação em tecnologias e segurança digital com uma perspectiva feminista; 

b) iniciativas para proporcionar noções básicas de segurança digital para que pessoas LGBTQIAPN+ circularem mais livremente nos ambientes digitais, evitando o ataque constante que podem sofrer nestes meios; 

c) construção de redes de apoio, escuta, letramento digital e segurança digital, que levem em consideração os diferentes marcadores sociais e que não sejam constantemente propostas por grandes corporações, possibilitando redes locais; 

d) uso autônomo das TICs, com publicações frequentes sobre estratégias de segurança digital e direitos digitais; 

e) criação de “bairros digitais” para mulheres exercerem suas profissões e ativismos sem medo;

f) estabelecimento de servidores feministas, como a Kéfir na América Latina, Anarchaserver na Europa e Vedetas no Brasil, para proporcionar espaços seguros em exposições públicas.

Concluindo pouco e repensando muito…

Pensar nos atravessamentos da área de cibersegurança e gênero necessita de uma atenção crítica. Ainda mais se quisermos trazer fissuras nas formas de ação que apostam em dinâmicas punitivistas, racistas e patriarcais, já tão enraizadas em nosso dia-a-dia. Aqui apenas abri um espaço para compartilhar mais angústias do que respostas. 

Talvez um dos pontos seja apostar em uma perspectiva feminista que considera como as mulheres, bem como os corpos e identidades que não se conformam à cis-heteronormatividade, enfrentam riscos distintos e ameaças suplementares no contexto das tecnologias.

A aposta na escuta, na criação de espaços para educação digital, principalmente no que tange à segurança digital, no encontro entre feministas e ativistas dessa pauta, parecem ser caminhos possíveis para pensarmos em conjunto no campo de cibersegurança e gênero.

É nesse sentido, também, que te convido a ler outras publicações do IRIS sobre gênero e tecnologia que podem incitar maiores debates, propostas de ações coletivas e fissuras. 

Escrito por

Luiza Correa de Magalhães Dutra, doutoranda e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Especialista em Segurança Pública, Cidadania e Diversidade pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Ciências Sociais pela UFRGS, com período sanduíche realizado no Science-Po Rennes, França, e Bacharela em Direito pela PUCRS. Pesquisadora.

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