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“Empreendedores” que só têm a si mesmos – avanços no direitos dos trabalhadores de apps

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22 de março de 2021

Nas últimas semanas, mudanças importantes na legislação trabalhista da Espanha  transformaram as condições de trabalhadores de aplicativos. A Espanha foi o primeiro país a legislar sobre essa questão, e dá a tônica sobre um problema urgente: a necessidade de assegurar direitos para trabalhadores que experienciam uma precarização das condições de trabalho.  No Reino Unido, motoristas do Uber passam a receber direitos tais como salários, férias e seguro saúde. O tema nos remete imediatamente ao filme de 2019, Você Não Estava Aqui, dirigido por Ken Loach, que narra com sensibilidade as dores e dificuldades de uma família que luta para sobreviver, viver e, sobretudo, trabalhar. 

O empreendedor de si mesmo – ou que só tem a si mesmo

O filme começa com a contratação de Ricky, um ex-operário da construção civil que, em meio a problemas financeiros, decide arriscar tudo e virar um trabalhador autônomo de entregas. O personagem, confiante que numa jornada autônoma poderia lhe permitir desfrutar de condições de vida melhores para si e para a sua família, presta serviços de entrega para um galpão.

A primeira cena do filme, no ato da contratação, são comunicadas as condições que regem seu “não-vínculo” com a empresa, e dizem: “Você não trabalha para nós, você trabalha conosco”, indicando a responsabilidade pelo seu desempenho e sucesso profissional.

O desenrolar da estória, porém, demonstra uma jornada de muitas dores e desafios. Para começar, Ricky precisa garantir seus próprios meios de trabalho, alugar ou comprar uma van, ainda que autônomo, é penalizado a cada quebra de expectativa do chefe (apesar de se denominar colaborador), falta de amparo em incidentes de trabalho e total precarização da vida pessoal e profissional. 

A esposa, também autônoma e que trabalha como cuidadora de idosos, acompanha a jornada de trabalho destrutiva do marido e, juntos, veem problemas familiares manifestarem como sintoma de uma vida onde não sobra tempo e energia para cuidar de si e do outro. O contexto precarizado em que os personagens se encontram parece oferecer poucas alternativas, e o drama para os espectadores acompanha o cansaço dos personagens. 

Dramas pessoais, problemas coletivos 

A família que enreda a trama não vive uma condição excepcional. Ao contrário. O filme é longe de distópico e se torna mais dramático na medida em que se aproxima da realidade de tantas famílias que experienciam a precarização do trabalho. Trabalha-se muito por acreditar que isso os levarão a condições de vida melhores, o que recebem, contudo, é exaustão, frustração, desamparo, dívidas e, ainda, o enfraquecimento dos vínculos familiares. 

Em agosto de 2020, no Brasil, os trabalhadores de entrega por aplicativo fizeram uma greve, conhecida pela #breakdosapp. O movimento organizado digitalmente dava visibilidade às condições de trabalho precárias às quais estavam submetidos e a baixa remuneração. Os entregadores exigiam o fim do sistema de pontuação dos aplicativos que, assim como o chefe tirano de Ricky, pressiona métricas de rendimento dos trabalhadores ditos “autônomos”. Além disso, pedia-se o fim dos bloqueios injustificados pelas plataformas e auxílio para o contexto de pandemia, com equipamentos de proteção como máscaras e álcool. 

O movimento dos trabalhadores é heterogêneo e tem pautas diversas, mas tomou visibilidade nas redes, ganhando apoio popular e foi pauta de projetos de leis que buscavam regulamentar suas jornadas de trabalho. No Brasil, a situação ainda recebe pouca atenção, ao passo que em países europeus o contexto vem se transformando com alguns países reconhecendo esses trabalhadores como tais e assegurando seus direitos trabalhistas, como férias e salário. 

“Um trabalhador que percorre nossas ruas de bicicleta para um aplicativo não é um empreendedor”

Essa frase foi dita pela Ministra do Trabalho na Espanha, em defesa dos direitos trabalhistas dos entregadores, motorizados ou não. No último dia 11, o país incluiu na sua legislação trabalhista os entregadores dos aplicativos como trabalhadores assalariados. A ministra Yolanda Díaz enfatizou o papel essencial que essa categoria desempenha na pandemia e que terão, então, seus direitos assegurados. Dentre as mudanças está a obrigatoriedade das plataformas de serem transparentes sobre o funcionamento dos algoritmos que gerem as aplicações. Foi o primeiro país da Europa a tomar uma decisão nesse sentido, em favor dos trabalhadores, e as empresas terão três meses para se adequarem às novas regras. 

Em fevereiro, no Reino Unido, a Uber perdeu uma batalha judicial iniciada por motoristas em 2016. O tribunal da Suprema Corte britânica reconheceu e tratou os motoristas como trabalhadores (workers), e não como autônomos (self-empolyed) forma como a empresa os nomeia tradicionalmente. Um mês depois, no último dia 16, a Uber anunciou que pagará salário mínimo, férias remuneradas e fundo de aposentadoria para os motoristas da plataforma. As novidades do campo regulatório são motivos de alegria para movimentos sindicais e organizações de trabalhadores que há muito lutavam na justiça por reconhecimento e melhores condições de trabalho. 

Esse é mais um caso onde vemos a tecnologia interagir e transformar modos de vida e de existência. A chegada da economia do compartilhamento alterou substancialmente nossa forma de consumo e trabalho e é preciso repensar e revisitar nossas demandas para que não percamos de vista nossos direitos e garantias fundamentais. O filme de drama “Você Não Estava Aqui” nos lembra sobre o quão destruidora pode ser uma realidade onde o discurso do homem empreendedor de si mesmo nos convence por inteiro. Onde o trabalhador é ludibriado por uma falsa autonomia e se vê, cada vez mais, subserviente à novas formas de exploração do trabalho. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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