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Mudanças na Lei de Acesso à Informação: redução da burocracia ou restrição da transparência?

30 de janeiro de 2019

Top trend no Twitter nesta quinta-feira, 24/01, as alterações no Decreto 7.724/12 que regulamenta a Lei de Acesso à Informação durante a  presidência interina do general  Hamilton Mourão gerou grande alerta. A polêmica  principal se deu com a agora possibilidade de servidores comissionados classificarem as informações como secretas ou ultrassecretas, o que influi diretamente no seu grau de sigilo e pode simbolizar a restrição dos mecanismos de transparência. O governo justificou alegando que ela “diminui a burocracia na hora de você desqualificar alguns documentos sigilosos”.

Quer entender melhor o impacto dessa alteração, a importância da lei de acesso à informação e o que são esses graus de sigilo? Continue lendo!

O Acesso à Informação

O direito de acesso à informação é garantia central em uma democracia. A garantia de que as informações produzidas sejam disponíveis é essencial tanto para que o cidadão possa exercer a atividade de controle e participação administração pública, como para que ele possa também possa se resguardar individualmente perante o estado.

Nos governos autoritários brasileiros, notadamente na ditadura de Vargas e na ditadura militar, a tradição do segredo administrativo foi ferramenta fundamental para perseguição política. Barbosa Moreira destaca como muitas medidas punitivas ou discriminatórias foram baseadas por informações colhidas incorporadas a registros oficiais ou paraoficiais, que antes eram colhidas “em fontes de discutível idoneidade e por meios escusos, não raro manipuladas sem escrúpulos, ou mesmo fabricadas pela paranóia de órgãos repressivos”. Sem acesso aos dados constantes dos registros, os acusados ou interessados não tinham como se defender, seja demonstrando a falsidade das informações ou a incorreção de algo que conhecia.

Documento do Sistema Nacional de Informação – Lista de Jornais Subversivos (grau de sigilo: confidencial)

 

Foi buscando coibir tais arbitrariedades que está prevista, na Constituição Federal, uma série de princípios a fim de assegurar os direitos fundamentais do cidadão, como  o direito de petição aos órgãos públicos, em defesa de direitos, ilegalidade ou abuso de poder e à obtenção de certidões em repartições públicas, para a defesa de direitos e esclarecimentos de situações de interesse geral, bem como o direito de impetrar habeas data para assegurar o conhecimento de informações pessoais constantes de registros ou banco de dados de órgãos públicos e para retificação de dados (artigo 5º, incisos XXXII, XXXIII, LXXII).

Também foi assegurado o dever de transparência do Estado. A transparência pública parte da compreensão de que  as decisões públicas não podem ser limitadas à subjetividade do administrador, devendo considerar os interesses da população em um processo gestão de constante de controle social e participação. Para tanto, é necessário que sejam efetivados o direito de saber, do direito de controle e do direito de participar dos mecanismos administrativos, tal como apontado por Taborda.

Com a redemocratização, muito embora a publicidade e às garantias de acesso à informação estivessem na Constituição Federal (CF) desde sua promulgação, em 1988, poucos eram os mecanismos que permitissem a sua efetividade. Fruto do movimento Open Government Data, em 2007, foi promulgada, em 2011, a Lei de Acesso à Informação brasileira (Lei 12.527/11 – a LAI), deixando claro que no Brasil, a publicidade é regra e o sigilo  é exceção. Era o que também dizia a Constituição em seu artigo 5º, inciso XXX, que afirma que o sigilo só poderá ser admitido quando este for  “imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Classificação das Informações: aberta, Reservada, sigilosa ou ULTRASSECRETA

O sigilo da informação só é autorizado pela Constituição em situações excepcionais, sendo todas elas elencadas no artigo 23 da LAI em um rol exaustivo. Todas limitam-se a hipóteses nas quais o acesso poderia colocar em risco a soberania ou estabilidade nacional, seja na esfera da defesa, saúde ou econômica. Nota-se que, muito embora as situações indicadas autorizem o governo a restringir o acesso livre à informação, essa restrição não é absoluta e nem se configura de uma única forma. A informação mais sensível deve ser classificada pelo critério menos restritivo possível, considerando a “gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado” e “o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final” (artigo 24, §5º, LAI).

A informação livre e aberta é regra, mas se identificado alguns dos elementos anteriores, ela poderá ser classificada como reservada, secreta ou ultrassecreta – são essas duas últimas as mais sensíveis e com o prazo de sigilo bastante significativo, considerado o impacto do tempo a uma informação. A atribuição do grau deve ser seguir o procedimento rígido que prevê, dentre outros, que a classificação seja fundamentada em um termo (artigo 31 do Regulamento) a ser avaliado pela Comissão Mista de Reavaliação, composta por membros dos três poderes. O artigo, no entanto, que prevê a composição mista foi vetado, sendo re-estabelecida por Decreto com nova configuração unicamente executiva (artigo 46).

 

Prazos máximos de restrição de acesso à informação (artigo 24 da LAI)
Reservada Secreta Ultrassecreta
5 (cinco) anos 15 (quinze) anos 25 (vinte e cinco) anos

 

Por essa razão, a Lei disciplina um procedimento ainda mais rigoroso para que tais classificações sejam atribuídas a uma informação. Só poderiam, por exemplo, classificar uma informação como ultrassecreta, impedindo seu acesso em até 25 anos, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os Ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e os Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior.

Para classificação da informação como secreta, além dos acima elencados, só possuem competências os titulares (presidentes ou diretores chefes) dos entes da administração indireta. Para o grau de informação reservada, cujo sigilo tem um prazo um pouco menor, 5 anos, a competência é estendida para aqueles que exerçam funções de direção, comando ou chefia do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores. Vejamos que à época da vigência da Lei, o decreto regulamentador proibia qualquer delegação da competência para atribuição do grau de secreto ou ultrassecreto. Ou seja, não poderiam as autoridades permitirem  que outros agentes atribuíssem tamanha restrição ao acesso no lugar delas.

As alterações promovidas pelo Decreto nº 9.690/19 e seu impacto

Na última quinta-feira, dia 24 de janeiro de 2019, o Presidente em exercício, Hamilton Mourão, publicou o Decreto nº 9.690/19, alterando o Regulamento da Lei de Acesso à Informação, de forma não só a atualizar o nome dos Ministérios e órgãos, mas também revogando a vedação de delegação da competência de atribuição do grau de sigilo secreto ou ultrassecreto. Ou seja, ele autoriza que as autoridades legalmente competentes possam atribuir a agentes públicos do Grupo de Direção e Assessoramentos Superiores (DAS de nível 101.5 e 101.6) a função de definir quando a informação é imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Os cargos de código 101.5 e 101.6 podem ser ocupados por agentes públicos comissionados, sem vínculo efetivo, que exercem atividade de direção com função de confiança. A ausência de vínculo efetivo mostra-se relevante, vez que o agente não possui segurança na manutenção da função em eventual discordância com seu superior. Segundo último levantamento do Ministério da Economia, que hoje inclui o antigo Ministério de Planejamento, o governo federal, até dezembro de 2018, possui 1.082  agentes públicos classificados como DAS 5 e 206 como DAS 101.6.

Nota-se que, embora a alteração não seja ilícita, vez que a delegação da competência era permitida pela Lei, a supressão de uma norma por Decreto que estabelecia como exceção o sigilo e a abertura como regra representa uma regressão no regime jurídico, que deve  promover cada vez mais a transparência.

Segundo veículos de notícia, Mourão afirmou em entrevista que a alteração “única e exclusivamente diminui a burocracia na hora de você desqualificar alguns documentos sigilosos”. A Controladoria-Geral da União, em Nota, afirmou que as alegações de que as alterações relativa à classificação das informações trariam efeitos nocivos à LAI “não procedem” e que “as mudanças ora propostas têm por intuito simplificar e desburocratizar a atuação do Estado”, sendo “fruto de intensa discussão, desde 2018, entre a CGU e diversos atores”.

Iara Vianna, mestre em ciência política e co-fundadora do Centro de Pesquisas em Política e Internet (CePPI/UFMG), demonstrou grande preocupação quanto aos desdobramentos da decisão:

A meu ver, o decreto que altera a LAI (sancionado pelo vice-presidente na última quinta-feira) coloca uma série de questões e de conquistas (em termos de transparência de informações e o controle social que advém desta oportunidade de acesso a dados governamentais) em sério risco. Sério risco mesmo. Acho que muitas pessoas, infelizmente, não têm a dimensão do que significa essa medida, esse retrocesso.

Para quem estava insistentemente levantando a bandeira do combate à corrupção, essa medida já no primeiro mês de governo soa fortemente contraditória.

Com a restrição dos agentes públicos que anteriormente poderiam classificar documentos como reservados ou secretos (que antes eram: presidente e vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas ou consulares permanentes no exterior), a possibilidade de responsabilização e acompanhamento era muito maior. Movimentos sociais, sociedade civil, jornalistas e demais profissionais que atuam na área tinham mais facilidade de estarem atentos às classificações executadas e, se fosse o caso, questioná-las e problematizá-las. Com a nova permissão de que essa classificação seja feita por quaisquer servidores públicos de alto escalão, além da diminuição da capacidade de acompanhamento, controle e responsabilização, tem-se o seguinte (grande) problema: será muito mais fácil ocultar improbidades administrativas e demais formas de corrupção.

Outra coisa: tomara que eu esteja redondamente enganada, mas ampliar o leque de pessoas que podem executar tais classificações só pode significar um desejo de também aumentar o número de documentos assim classificados. Não faria sentido tal ampliação caso a intenção do governo fosse tornar suas informações cada vez mais transparentes, abertas e acessíveis para todos.

A preocupação externalizada pela pesquisadora também foi compartilhada por diversas entidades da sociedade civil. Destaca-se a Nota Pública divulgada pela organização governamental Artigo 19, contando com a assinatura de 16 especialistas e entidades que acompanham o acesso à informação no país. Eles alertam que a transparência pública deve ser tratada de forma séria, não podendo ser apenas discurso retórico do governo. Afirmam ainda que a proposta quanto a revogação da delegação não fora incluída na pauta da CGU ou discutida devidamente com a sociedade civil.

É hora de reforçar a Cultura da Transparência

A Lei de Acesso à Informação, ao estabelecer a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção, consolida no âmbito normativo um importante instrumento para a prática democrática. O acompanhamento da garantia dos direitos que ela estabelece, no entanto, aponta que ao longo do território, os cidadãos ainda sofrem  diversas violações, demonstrando que ainda há muito a que se fazer para aperfeiçoá-la. Nota-se ainda que o ano de 2018 foi encerrado  com atitude injustificada e, portanto, suspeita, ao atribuir sigilo todos os dados do orçamento previsto e executado com a Comissão de Transição entre os governos do presidente Michel Temer (MDB) e do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

A garantia da transparência no âmbito federal necessita de proposições que sejam mais ativas quanto à garantia da abertura dos dados governamentais e não o contrário. É nesse sentido que mostram-se coerentes a críticas. A cultura do sigilo precisa ser afastada de vez.

Embora as classificações de documentos como secretos ou ultrassecretos sejam atualmente realmente raras, com a mudança promovida pelo governo, possibilitando a delegação de competência para mais agentes públicos do que na ditadura militar, a tendência é que o número de documentos secretos e ultrassecretos se amplie, merecendo nossa completa atenção, em defesa da Cultura da Transparência.

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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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