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Diário de uma pesquisa sobre criptografia e sociedade

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27 de setembro de 2021

Há pouco mais de um ano eu ingressei na linha de pesquisa sobre Segurança da informação e criptografia no IRIS. Foram mais de 40 entrevistas com especialistas, grupo de estudos sobre o tema, reuniões de elaboração de roteiro, desenho de pesquisa, um denso aprendizado sobre manuseio de dados em segurança e sobre responsabilidade com políticas de privacidade de dados de terceiros, discussão dos resultados e, por fim, a elaboração do relatório final, publicado no último dia da #CriptoAgosto, campanha de conscientização sobre o tema. 

Esse não é um texto de relatório de pesquisa, tampouco um texto sobre resultados científicos. Mas sim um texto sobre processos: processos de pesquisa, de estudo, de discussão, e, por fim, sobre o que faz uma cientista social pesquisadora no debate sobre criptografia e segurança da informação. É um diário de pesquisa. 

Método 

É verdade que vivemos com muitas perguntas sem respostas nesse mundo. Mas, com frequência, nos deparamos com perguntas importantes que nos ajudam mais do que se recebêssemos respostas prontas. Nesses casos é preciso estar treinado: tanto para formulá-las quanto para identificá-las, e isso se aprende na prática e também se estuda. 

As primeiras fases do projeto me exigiram estudo e aproximação com o tema que eu iria me debruçar. É então que, junto de meus parceiros de pesquisa, mapeamos os conceitos, a bibliografia importante, as palavras-chave, as explicações técnicas e os pontos de dissenso que já podiam ser identificados nessa etapa. Nenhuma pesquisa parte do zero. É preciso conhecer o que já foi feito sobre o tema, e só assim que podemos pensar em perguntas

Não só perguntas nos levariam onde queríamos, mas também estratégias que nos permitissem alcançar um nicho de especialistas em tecnologia e sociedade. Nesse ponto, a experiência de ter cursado ciências sociais em uma universidade em que preza por um conhecimento sólido em métodos me ajudou a mobilizar diferentes recursos para desenharmos a pesquisa. Em nenhum momento trabalhei sozinha. Pelo contrário: uma equipe de pessoas com diferentes visões e especialidades contribuíram para todas as etapas do trabalho. 

Somar perspectivas, experiências e métodos de diferentes áreas do conhecimento e trajetórias pessoais é um recurso poderoso para quem quer se empenhar em investigar algo. Nenhum tema pode ser plenamente capturado por uma única lente. E quanto mais complexos os nossos problemas, maior complexidade devemos engajar na tentativa de compreendê-lo e solucioná-lo. 

A dança das entrevistas 

É técnica, mas não só. Há muitas coisas nos manuais e há muito o que se aprender com nossos mentores, mas há também um tanto de imprevisibilidade quando você se propõe a encontrar 45 profissionais muito bem qualificados para conversar sobre um tema de tantos dissensos. Captar o conhecimento em movimento exige ouvidos atentos. Tive a oportunidade de escutar e aprender com pessoas que generosamente cederam seu tempo para contribuir com a pesquisa. Cada uma delas me exigiu uma preparação prévia e um tempo de análise do que eu havia escutado. 

O desafio de mapear os discursos presentes no debate sobre o uso de acesso excepcional para fins de investigações criminais nos trouxe muitas novas perguntas. Ouvir cada uma das narrativas nos permitiu acompanhar diferentes fluxos de racionalidade, inclusive aqueles que não esperávamos ouvir e também aquele que vai de encontro ao que pensamos sobre o assunto. 

Nesse ponto, me senti desafiada. Isso porque cada reunião me exigia uma desenvoltura diferente: o entrevistado sabe que há uma expectativa a seu respeito numa entrevista, mas rapidamente percebi que há, também, a expectativa sobre quem o entrevista. Ao mesmo tempo, me senti extremamente entusiasmada por cada conversa que o projeto proporcionou, além de um sensível amadurecimento acadêmico. 

A multidisciplinaridade como caminho e seus desafios 

A certo ponto da pesquisa compreendemos que precisávamos de nos preparar para aplicarmos nós mesmos, ferramentas de segurança da informação com as quais lidávamos no campo discursivo. Isso foi importante como parte da imersão de pesquisa e, também, como uma tomada de consciência sobre a necessidade de se comprometer com processos responsáveis e seguros sobre o manuseio de informações e opiniões pessoais

Cinco anos de ciências sociais podem ter me preparado para entrevistas em diferentes contextos, mas não imaginei que em meu trabalho eu estaria aprendendo a criptografar e descriptografar informações e manusear um compartimento cifrado no meu PC. Inclusive, você pode aprender a fazer você mesmo aqui, em uma das aulas do nosso curso sobre Criptografia e Sociedade. Ah, e você pode confiar em mim que fazer isso não é esse bicho de sete cabeças todo (eu também não sou uma expert em computação). 

Há de se considerar, ainda, que tecnologia é um tema central para a compreensão das nossas dinâmicas sociais contemporâneas. Nesse contexto, analisar a criptografia como um assunto restrito ao estudo de cientistas da computação seria um erro metodológico e uma cilada epistêmica. 

Transitar por diferentes faces de um mesmo problema nos possibilita discuti-lo com a complexidade em que ele se apresenta. Dialogar com outros pesquisadores de áreas distintas me torna mais consciente do que eu ainda não sei e de outras nuances da discussão que podem ocupar o meu ponto cego. Todos nós temos nossas limitações, temos diferentes repertórios, enxergamos e nos sensibilizamos com aspectos diferentes de uma mesma narrativa. E aqui está o grande valor em contar com uma equipe diversa. 

Depois de meses de pesquisa, os resultados

Ao final do projeto temos o relatório: Percepções sobre criptografia e investigações criminais no Brasil: mapeamento e análise, publicado em diferentes idiomas e de forma gratuita. Como todos os nossos materiais, temos novas perguntas que guiarão nossos próximos passos enquanto instituto de pesquisa comprometido com o desenvolvimento do ecossistema digital, e atento aos direitos humanos digitais. No relatório você confere especificações metodológicas e resultados apurados sobre o que encontramos em todos esses meses de exercício. 

Além disso, produzimos um conteúdo denso a respeito do debate sobre criptografia no Brasil, disponível no Youtube, que pode servir como referência para pessoas interessadas no tema. Você pode aprender a criptografar você mesmo, a entender o porquê dessa técnica ocupar a centralidade de um grande debate que se estende através da história. Ou, ainda, descobrir como ela se sobrepõe a questões como o exercício de direitos fundamentais e liberdades na rede. 

Mais uma vez, esse texto é um relato pessoal, e eu gostaria de aproveitar o espaço para, também, agradecer a todos os profissionais envolvidos nesse projeto e que contribuíram para o sucesso da pesquisa: professores, pesquisadores, consultores, tradutores, revisores. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.

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