Como combater a desinformação sem violar direitos fundamentais?
Escrito por
Paloma Rocillo (Ver todos os posts desta autoria)
27 de maio de 2020
A pandemia causada pelo COVID-19 evidenciou e potencializou problemas enfrentados há anos pela sociedade, como é o caso da desinformação. É certo que a disseminação de conteúdos forjados para enganar o público pode causar enormes prejuízos econômicos, políticos e morais em uma sociedade. Especialmente agora, observamos o prejuízo à saúde da população que a disseminação de informações falsas sobre curas e remédios do vírus em questão pode causar. Apesar dos inúmeros projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, a pauta da desinformação ganha força agora, com os PLs 1429/2020 e 2.630/20, de autoria do gabinete compartilhado de Felipe Rigoni, Tábata Amaral e Alessandro Vieira. Entretanto, ainda que assunto urgente, é necessário que regulações que pretendem garantir o acesso à informação de qualidade não violem outros direitos fundamentais como à liberdade de expressão e à privacidade.
Este post pretende destacar alguns pontos críticos das propostas de enfrentamento à desinformação, bem como apresentar estratégias adequadas para esse problema. Desde já, destaco a contribuição elaborada pelo IRIS sobre os PLs supramencionados, bem como as notas técnicas da Coalizão Direito na Redes, Lapin, Intervozes e IP.Rec e Coding Rights que aprofundam o tema.
Quem responsabilizar pela desinformação?
Os projetos de lei mencionados acima pretendem alterar o regime de responsabilização por desinformação atualmente vigente no ordenamento jurídico brasileiro. Hoje em dia, ainda que o Marco Civil da Internet não disponha especificamente sobre normas relacionadas à desinformação, ele estabelece o regime de responsabilização dos provedores de aplicação (como o Facebook, Instagram, Google) o regime notice-and-take down. Ou seja, se algum conteúdo ilícito é publicado pelo usuário, é necessário que um ordem judicial determine a medida a ser adotada pelo provedor e, apenas no caso do provedor não cumprir essa ordem, ele é penalizado.
Esse tipo de responsabilização é recomendado por diversas organizações internacionais, pois ele delega ao Estado, na figura do judiciário, o poder de determinar o que deve ou não ser veiculado na internet, então direitos fundamentais como a liberdade de expressão e devido processo são garantidos ao usuário.
A alteração proposta pelos parlamentares do gabinete compartilhado transfere a responsabilização pela disseminação de desinformação para as próprias plataformas. Desta forma, empresas privadas passam a ter o dever de monitorar os conteúdos divulgadoss, checando se aquele conteúdo é verdadeiro e, caso não seja, tomar medidas para restringir o acesso de outros usuários.
Diversos problemas surgem com a transferência de responsabilidade do autor da desinformação para a plataforma em que o conteúdo é veiculado. Destaco que esse tipo de regime coloca as empresas em posição de retaguarda e, como sanções incertas podem ser aplicadas, o cenário possível é que as plataformas restrinjam acesso a muitos conteúdos que não são desinformativos, representando grave ameaça à liberdade de expressão, especialmente quando são conteúdos relacionados a paródias, críticas humorísticas, políticas ou reproduções artísticas.
Além disso, a alteração no regime de responsabilização estimula as plataformas a utilizarem mecanismos automatizados para monitoramento de conteúdo e checagem da veracidade das informações. Entretanto, é comum casos de erros de categorização de conteúdos quando feitos por inteligência artificial (IA), afinal, muitas vezes é necessário o contexto ou um conhecimento de mundo que a IA não possui para reconhecer que não se trata de conteúdo desinformativo.
Estratégias factíveis para o enfrentamento da desinformação.
Especialmente na União Europeia, diversas modelos foram elaborados como forma de responder de forma concreta ao problema da desinformação e considerando a necessidade de respeitar direitos fundamentais. Elenco a seguir as principais recomendações sobre o assunto:
- Melhoria na transparência sobre a forma como as informações são produzidas, patrocinadas, divulgadas e direcionadas para o usuário na internet. Essa medida acentua o fato de que os provedores de aplicação possuem sim responsabilidade sobre a disseminação de desinformação. Entretanto, essa responsabilidade está vinculada à finalidade das atividades do provedor, ou seja, intermediar as comunicações pela internet. Portanto, qualquer estratégia de enfrentamento da desinformação deve prever dever de transparência a ser cumprido pela plataformas para que os cidadãos tenham plena condições de compreender como a informação se propaga pela rede e quais interesses e interessados estão por trás do conteúdo publicado online.
- Melhoria no nível de letramento informacional. No volume 1 do Glossário da Inclusão Digital letramento informacional é definido como a competência de manuseio de informações de forma adequada, responsável e produtiva, bem como a capacidade de distinguir entre conteúdos confiáveis e forjados. Nesse sentido, tão necessário quanto medidas de sanção aos autores de desinformação, é educar os usuários que receberão tão desinformação para que tal conteúdo não seja compartilhado de forma tão massiva. O desenvolvimento de competências digitais está disposto formalmente na educação brasileira pela competência nº5 da Base Nacional Comum Curricular. Contudo, ainda são incipientes as políticas governamentais de efetivação dessa competência.
- Responsabilização por desinformação criada ou propagada por agente público. Uma vez que as contas, páginas e perfis oficiais de agentes públicos, especialmente aqueles do alto escalão, estão associados à própria figura do Estado; é esperado que as informações veiculadas por esses agentes sejam confiáveis e de caráter instrutivo. Portanto, medidas de responsabilização e sanção pela criação e replicação de conteúdo desinformativo devem ser aplicadas a agentes públicos como forma de garantir a confiança nas instituições democráticas e evitar mal uso de recursos e visibilidade própria do cargo público.
Conclusão
Especialmente no momento que vivemos, de isolamento social, diversas ferramentas que propiciam o funcionamento da democracia, como as audiências públicas e coletivas de imprensa, estão suspensas. Por esta razão, qualquer proposta legislativa que dialogue (e potencialmente restrinja) direitos fundamentais deve ser analisada de forma ainda mais acurada, para que a ausência de participação popular na formulação de estratégias para enfrentamento de problemas sociais, como a desinformação se apresenta, não resultem em violações ainda maiores de direitos adquiridos.
Se você se interessou pelo assunto, leia o texto de Raquel Saraiva sobre a infodemia do coronavírus.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
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Paloma Rocillo (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).