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A importância da pesquisa científica em meio ao caos

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24 de fevereiro de 2025

São tantas as surpresas e desafios no noticiário que dedicar a atenção para atividades de pesquisa são uma forma de manter a calma e seguir em frente.

Essa semana estive dedicado ao meu doutorado, além das muitas atribuições dos projetos de pesquisa de que faço parte aqui no IRIS. Essas duas frentes de trabalho tem se mostrado muito importantes para minha sanidade mental, na medida em que me permitem continuar dedicando atenção à pauta da governança da Internet e do direito digital, sem que eu me perca em meio ao turbilhão de novidades (em especial desagradáveis) que tem tomado conta do noticiário. Vem comigo pra entender como isso funciona.

 

A pesquisa acadêmica tem suas dores

O noticiário recente sobre o campo das tecnologias digitais tem estado repleto de motivos para cravar que vivemos tempos difíceis. Ainda imersos na sociedade da informação, assistimos a uma torrente de novidades desagradáveis sobre novas decisões das Big Techs e dos governos, vindas em especial dos Estados Unidos e da Europa.

Assim, podemos colocar o último prego na tampa do caixão daquele imaginário romântico e inocente de que as conexões promovidas pela Internet inevitavelmente nos levariam em direção a cada vez mais democracia e mais efetivação de direitos. Intensificando tanto vantagens quanto desvantagens da modernidade, a Internet também nos trouxe um maior contato com o que há de pior na humanidade. Em meio a numerosos reveses, quero destacar apenas que, tal qual o cliché das argumentações condenado pela chamada lei de Godwin, estamos realmente às voltas com a reaparição pública cada vez mais frequente e desavergonhada de discursos nazistas.

Diante desse cenário, praticamente nenhuma solução de curto prazo pode ser elaborada por meio da pesquisa científica, seja ela realizada nas estruturas formais da academia, seja na criatividade de centros privados. Especialistas são ouvidos nos noticiários, estudos são referenciados para dar a dimensão dos problemas, mas pesquisadores não são tomadores de decisão.

Some-se aqui que a realidade material do campo da pesquisa está longe do ideal. Além da falta de dinheiro pura e simples, em várias áreas faltam também recursos de diversas ordens, desde pessoal qualificado até estrutura e equipamentos atualizados. Em especial no Brasil, a fuga de cérebros é uma realidade: todo mundo conhece alguém que faz pesquisa e foi morar em outro país, em busca de melhores oportunidades.

É difícil imaginar que qualquer mudança possa ser realizada por uma pessoa que esteja no campo de pesquisa realizando levantamento de dados ou mesmo sentada na cadeira e de frente para os dados coletados de um experimento qualquer, de ciências humanas, sociais, da saúde ou exatas. No imaginário social, mas também na epistemologia científica, a razão de existir da atividade de pesquisa não exige sempre resultados concretos que interfiram diretamente no mundo, em especial num campo tão interdisciplinar e complexo como o das tecnologias digitais e da Internet.

Mas a pesquisa acadêmica tem as suas delícias

Há várias notícias recentes de que empresas como a Meta e o Google, na esteira da eleição de Donald Trump, vêm abandonando práticas de ESG (sigla em inglês que remete a meio ambiente, ao social e à governança) e DEI (diversidade, equidade e inclusão), além de abrirem as portas para o discurso de ódio e da desinformação ao reduzirem os esforços de moderação de conteúdo, como detalhou Fernanda Rodrigues. Também há notícias tristes sobre os EUA e o Reino Unido não aderirem ao compromisso dos países na condução responsável do desenvolvimento das tecnologias de inteligência artificial. Pra piorar, como explicou Luisa Melo, temos lidado com tendência de sexismo nas redes sociais.

A pesquisa científica tem seus limites em termos de resultados práticos imediatos, mas com certeza ela compensa bastante em razão da doçura do caráter coletivo da colaboração entre pares (como já explorei em um texto anterior). Nessa trilha de boas interações, tenho vivido duas grandes vantagens de estar me dedicando à investigação científica de temas de direito digital e governança da internet.

Primeiro, eu consigo ter ainda mais estímulo para conduzir as minhas pesquisas, na medida em que acredito que os resultados que vamos alcançar serão imensamente úteis e importantes nessa “nova realidade velha”. No contexto do IRIS, entre outros projetos de pesquisa existentes, tenho estado diretamente envolvido na sistematização de dados empíricos sobre conectividade significativa, sobre decisões judiciais a respeito da moderação de conteúdo e sobre a regulação da criptografia na MERCOSUL. E bem na linha da missão do Instituto, esses são o tipo de insumo que podem auxiliar de verdade na tomada de decisões mais eficientes, porque mais atreladas à efetiva realidade em que vão se inserir como elementos de mudança.

E no contexto da minha pesquisa de doutorado em Direito, Estado e Constituição na UnB, tenho observado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação ao direito digital, tendo em vista o debate sobre a criptografia nas ações que debatem a constitucionalidade dos bloqueios do WhatsApp no Brasil. Na situação atual, tenho convicção de que o apanhado histórico e jurídico, bem como as reflexões teóricas que estou produzindo, poderão eventualmente contribuir para o resultado mais adequado do julgamento das controvérsias que estou analisando.

Segundo, de um ponto de vista bem pessoal, eu consigo me desligar um pouco das agruras do dia a dia quando estou com a cabeça voltada para tarefas pontuais que preciso realizar como parte de um conjunto de passos pensado em equipe, e que são esperadas por colegas de pesquisa; ou para os passos de pesquisa que tenho seguido sob as instruções do meu professor orientador. Se estou com a cabeça ocupada, o diabo não vai ter oficina, certo?

Não quero dizer que eu esteja a salvo ou alheio às tantas e diárias questões que emergem nesse manancial de toxicidade alimentado pela extrema-direita e com o qual a esquerda não demonstra que vai conseguir lidar. Nem quero dar nenhuma margem para qualquer ideia de que eu esteja me olhando apenas de um ponto de vista individual, isolado do mundo como uma ilha, pois eu sei que faço parte do promontório da humanidade, e que os sinos dobram por mim, como escreveu John Donne.

Minha intenção nesse texto tão pessoal e reflexivo é apontar como tenho encontrado na pesquisa científica motivos para alimentar algum mínimo de expectativas positivas. E que não apenas estou ombro a ombro com uma gente maravilhosa aqui no IRIS, mas que também na redação da tese de doutorado pela UnB estou contando com a ajuda e companhia de outras pessoas. Em conjunto temos podido fazer algo, não como um beija-flor ingênuo cuspindo água no incêndio florestal, mas como abelhas operárias que fazem parte de um enxame que está se fortalecendo para poder atacar e ferroar a fera até a vitória.

Esperançando o realismo

A pesquisa, tanto na Universidade de Brasília quanto no IRIS, são pra mim um porto seguro, onde posso estar ao lado de pessoas que compartilham da mesma visão de mundo e juntos sonham o mesmo sonho, enquanto estão com o pé no chão, ou melhor, o teclado e o mouse na mão. A pesquisa sozinha não muda a realidade, mas ela é um primeiro passo, seja porque revela um diagnóstico mais preciso sobre os problemas, seja porque pode nos servir individualmente como válvula de escape, sem significar nenhum escapismo.

Ariano Suassuna defendia que entre a tolice do otimismo e a chatice do pessimismo, o melhor era ser realista com esperança. E a esperança precisa estar ancorada na prática para alcançar sua concretude histórica, e assim poder olhar nos olhos da realidade e encarar as dificuldades. Paulo Freire já ensinava que a esperança deve ser um verbo, que envolve se levantar, ir atrás, construir, não desistir, levar adiante e juntar-se com outros para fazer de outro modo. 

Com um pé em cada um desses barcos, creio que posso seguir navegando como terceira margem do rio, sem me enganar pela ilusão de que tudo uma hora vai ficar bem com certeza, mas também sem me render ao niilismo de desacreditar em qualquer possibilidade de melhora.

Para manter a cabeça no lugar não é necessário fechar os olhos para a dureza da realidade, nem exagerar na percepção de que as coisas vão mal. Metendo a mão na massa, trabalhando e tendo em mente os caminhos para a mudança, é possível manter a indignação contra os problemas do momento presente, e ao mesmo tempo imaginar e colaborar para o futuro que queremos.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Escrito por

Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador bolsista no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS); integrante voluntário do Aqualtune LAB: Direito, Raça e Tecnologia; ex-Diretor Presidente do Instituto Beta Internet e Democracia (IBIDEM), três ONGs componentes da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Consultor Sênior de Políticas Públicas do Capítulo Brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) para os temas Responsabilidade de Intermediários e Criptografia. Conselheiro Consultivo do centro de pesquisa Internetlab. Consultor Associado da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ).

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