A complexidade da regulação internacional: o papel da ICANN na governança da internet
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
24 de junho de 2024
A regulação internacional está cada vez mais complexa, transcendendo as fronteiras do direito internacional tradicional. Um exemplo marcante dessa complexidade é a ICANN, uma entidade não estatal que desempenha um papel crucial na governança da internet. Continue lendo para entender quando ela surgiu, de que modo essa organização afeta o seu dia-a-dia como internauta e como tudo isso ilustra as novas dinâmicas da regulação global.
A nova face da regulação internacional
O termo “regulação” pode ser entendido aqui de uma forma descentralizada, que nos permite ver o Direito para além do Direito, pois enxerga iniciativas normativas fundamentais para a organização do nosso cotidiano: abriga, então, variadas normas, além das leis e da Constituição, tais como regulamentos, resoluções, padrões técnicos, diretrizes e decisões de cumprimento obrigatório etc. Ou seja, são mandamentos que criam formas de deliberação, participação e atribuição de responsabilidade em um mundo que se torna cada vez mais complexo da perspectiva sociotécnica.
A regulação internacional é, portanto, notavelmente complexa e vai além do direito internacional tradicional. Diferente dos tempos em que os Estados eram os únicos protagonistas das normas internacionais, hoje vemos uma variedade de atores não estatais que são fundamentais para a definição dos rumos de questões que afetam diferentes países.
O exemplo mais fácil é a Organização das Nações Unidas (ONU), considerado o principal organismo internacional da atualidade em que são desenvolvidas normas, padrões e decisões judiciais, estas últimas através da Corte Internacional de Justiça (CIJ), além de ter sido o berço para criação de outras organizações relevantes, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas não só: diferentes entidades, como as organizações não-governamentais e empresas têm ganhado cada vez mais espaço de agência na arena internacional, além da construção de instituições que denominamos como “multissetoriais”, ou seja, que abrigam diferentes setores da sociedade em vez de somente o Estado.
A ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, ou, em português, a “Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números”) é um exemplo nítido dessa nova ordem e de uma instituição multissetorial. Entidade internacional responsável pela coordenação dos identificadores únicos da internet (como endereços www, por exemplo), a ICANN evidencia como organizações não estatais estão moldando a regulação internacional, trazendo novas camadas de complexidade e desafio, mas também representando anseios por incremento da legitimidade e da transparência nos processos decisórios de governança dessa rede.
O que é a ICANN e porque ela é importante?
A ICANN é uma organização privada sem fins lucrativos sediada na Califórnia, criada em 1998 para ajudar a garantir a estabilidade operacional da internet. Ela coordena a atribuição dos nomes de domínio e endereços IP, elementos fundamentais para o funcionamento da internet. Sem a ICANN, a internet como a conhecemos hoje seria um caos de incompatibilidades e conflitos técnicos.
A ICANN é responsável por gerenciar e supervisionar as funções da IANA (Internet Assigned Numbers Authority, ou “Autoridade Para Atribuição de Números da Internet”), as quais são críticas para o funcionamento da internet, a exemplo do gerenciamento dos endereços IP. Originalmente, cabia ao governo dos Estados Unidos a custódia da administração dessas funções. Após a transição concluída em 2016, com a entrega dessa atribuição para a comunidade global, a ICANN implementou passos importantes na administração da IANA, como mecanismos de supervisão, de responsabilidade e um destaque ao papel da comunidade global.
Essa transição significou que a supervisão das funções críticas da internet deixou de estar sob controle unilateral dos EUA, e passou para uma governança multissetorial e colaborativa. A mudança fortaleceu a legitimidade e independência da ICANN, garantindo que a internet permaneça uma plataforma global aberta e segura. Ao envolver diretamente a comunidade global na supervisão da IANA, a transição promoveu um modelo de governança mais inclusivo e responsável, essencial para a continuidade e segurança dos serviços da internet.
Desvelando os impactos práticos da estrutura da ICANN
A estrutura de tomada de decisão na ICANN é complexa e multifacetada, refletindo a própria natureza da internet. A organização opera através de uma série de comitês e conselhos multissetoriais. Essa diversidade busca assegurar que todas as partes interessadas tenham voz no processo de governança.
A partir de vários mecanismos para garantir a responsabilidade e a transparência na execução das funções da IANA, a ICANN inclui auditorias regulares, relatórios de desempenho e feedback da comunidade global da internet. Esses recursos são projetados para manter altos padrões de operação e garantir que as necessidades dos usuários sejam atendidas.
Nesse contexto, a relação entre a ICANN e a IANA é caracterizada por uma forte ênfase na participação multissetorial. Governos, setor privado, sociedade civil, comunidade técnica e acadêmica têm voz no processo de governança, refletindo um modelo colaborativo e inclusivo. Isso garante que a administração das funções da IANA atenda às necessidades e expectativas de uma comunidade global diversa.
No entanto, essa estrutura levanta questões sobre legitimidade, transparência e participação social. Afinal, como garantir que todos os interesses sejam equilibrados e que decisões críticas sejam tomadas de maneira justa e aberta em teias de micropolítica tão complexas? Além disso, como garantir a efetividade das normas e decisões geradas pela ICANN em temas limítrofes?
Os desafios estão em curso e o objetivo deste texto é lançar luz sobre o fato de que o direito internacional tradicional não dá conta de fornecer as respostas adequadas para problemas como esse. Sabendo que existem tais estruturas, reconhecendo seu impacto em nossas vidas e abrindo caminho para que essas reflexões sejam feitas, espera-se que seja possível construir um futuro da internet efetivamente democrático.
Reestruturando o olhar para o Direito em um mundo conectado
A regulação internacional está em constante evolução, e entender esses novos paradigmas é essencial para quem deseja acompanhar as mudanças globais. A ICANN é apenas um exemplo de como a regulação está se adaptando a um mundo cada vez mais interconectado e complexo.
Essa corporação exemplifica como os atores não estatais desafiam a estrutura tradicional do direito internacional, que historicamente colocou o Estado no centro. As novas tecnologias, como a internet, são fenômenos sociotécnicos que revelam os limites dessa estrutura formal e rígida. Isso exige uma reestruturação e uma maior atenção à regulação do nosso cotidiano online e às relações internacionais de forma mais ampla, que são forjadas por sujeitos diversos, inclusive atores não estatais.
Para aprofundar seu entendimento sobre os desafios da regulação internacional no contexto das novas tecnologias e, em especial, na governança da internet, confira como participar de iniciativas que viabilizam a participação social neste texto do blog do IRIS. Além disso, você pode refletir conosco sobre a importância prática desse debate para uma efetiva consolidação de direitos neste blog post.
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisadora e líder de projetos de Moderação de Conteúdo no IRIS. Mestranda em Direito da Regulação na FGV Rio e graduada em Direito pela UFBA. É advogada e se interessa por temas regulatórios que envolvam regulação de plataformas digitais, inteligência artificial e discussões sobre neurodireitos.