Violência Sexual Online e Criptografia
5 de março de 2024
Qual a correlação entre a criptografia e o debate sobre violência sexual contra crianças e adolescentes em ambientes digitais?
Neste texto gostaríamos de apresentar você, pessoa leitora, ao contexto da nossa nova pesquisa. Você talvez já tenha visto em nossas redes que pretendemos compreender o cenário no Mercosul sobre os direitos digitais de crianças e adolescentes, especificamente na intersecção com a criptografia. Afinal, você já sabe, e não é de hoje, que quando falamos de fragilização ou quebra de criptografia, um personagem que é vez ou outra convocado para a arena discursiva é o “defensor das crianças”. Com aspas mesmo, porque, no fim, a gente sabe que isso é mais uma guerra de narrativas.
Neste sentido, para demonstrar as complexidades envoltas nesse debate, e tentar vislumbrar caminhos possíveis que estejam expostos na arena de disputa de tal debate, nos propomos, enquanto IRIS, a desenvolver uma pesquisa que analise os discursos e propostas regulatórias desenvolvidas ou em desenvolvimento no MERCOSUL.
Assim, neste texto, queremos mostrar nossos primeiros achados e convidar você a iniciar com a gente essa reflexão. Ps.: sabemos que aqui não é uma rede de vídeos curtos, mas fica até o fim do texto que eu juro que tem fofocas boas vindo aí…
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes em Ambientes Digitais
Segundo indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet Brasil, foram notificadas e processadas cerca de 1.973.116 denúncias do crime de pornografia infantil nos últimos 17 anos. Isso totaliza aproximadamente 116.066 denúncias por ano. Neste ranking, o Brasil ocupa o 5º lugar de países com maior número de denúncias.
Na mesma medida que o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) avançam e criam oportunidades, elas podem também apresentar fragilidades, especialmente para grupos vulnerabilizados socialmente, como é o caso de crianças e adolescentes.
Todavia, as TICs acirram o cenário de violência sexual, em alguma medida, mas não são, por si só, responsáveis pelos alarmantes números de abuso e exploração sexual existentes no país. Afinal, as práticas de violências sexuais são apontadas pela literatura como atos também de determinação de poder e da afirmação do caráter coisificado (transformar em objeto/coisa) da infância.
Nesta perspectiva, dados apontam que uma média de quatro abusos sexuais acontecem no país a cada hora. E se ampliarmos o olhar para outras práticas de violência como exploração sexual, estes números tendem a subir ainda mais.
Aliás, cabe destacar que no senso comum abuso e exploração sexual são utilizados como termos sinônimos. Mas a literatura brasileira tem constituído distinção, especialmente para políticas públicas mais ativas e cautelosas.
Como ilustra a dissertação de Wilson Guilherme Pereira, a violência sexual contra crianças e adolescentes é um macro-conceito, com duas subcategorias: abuso sexual e exploração sexual.
Abuso sexual é uma agressão que desrespeita a intimidade e a sexualidade de uma criança. Em suas muitas modalidades, pode ocorrer através da indução (sedução, conquista, ou até mesmo ser confundida pela vítima como forma de carinho), ou da agressão (envolvendo força física ou coerção psicológica e/ou moral), e independe da proximidade do agressor com a vítima: pode ser um parente próximo (intrafamiliar) ou um completo desconhecido (extrafamiliar).
Já a exploração sexual traz uma dupla violência. Além da ofensa à integridade física, psicológica e sexual da vítima, a prática implica lucro ou ganho financeiro, de modo a reificar (tratar como mercadoria) a criança ou adolescente. São exploradores nesta categoria:
- Aliciador: pessoa que induz ou obriga a criança/adolescente ao ato;
- Intermediador: pessoa responsável por intermediar a mercantilização da sexualidade;
- Abusadores-clientes, pessoas que fazem a prática e pagam pelo serviço.
É vital destacar que, nesse contexto, o pagamento pode nem sempre ser em dinheiro, mas em outras formas de ganho. E, por isso, é justamente nessa categoria que estão inseridas as violências sexuais que ocorrem contra crianças e adolescentes em ambiente digital– afinal, os conteúdos sexuais desses sujeitos em desenvolvimento, quando expostos nas plataformas, geram valores para alguém. Seja para o indivíduo que o publicou, seja para os sujeitos envolvidos na circulação do material, ou até mesmo para a plataforma, que pode lucrar com as interações envolvidas e os dados gerados pelos diversos consumidores-exploradores envolvidos.
É importante mencionar, que no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, criminaliza tanto o registro, a manutenção e a circulação de conteúdos sexuais que envolvam crianças e adolescentes, quanto a exposição de conteúdos pornográficos para esses sujeitos, o que, também, estaria abarcado no conceito de exploração sexual/abuso sexual, a depender da finalidade dessa exposição.
Assim, como podemos perceber, os conceitos de abuso e exploração sexual são distintos, todavia, quando se trata do ambiente digital, podem estar diretamente conectados. Desse modo, sugerimos o uso do macro-conceito “violência sexual contra crianças e adolescentes em ambientes digitais” como uma saída conceitual para abarcar todas as práticas de agressão a integridade sexual de crianças e adolescentes que estejam mediadas ou impulsionadas pela internet.
E por que a criptografia importa nesse contexto?
O uso de tecnologias para investigação penal não é um debate novo no Brasil. Existem propostas que vão até mesmo à predição de um crime. Essas propostas são por vezes defendidas, por vezes criticadas por diversos setores da sociedade. Nesse cenário, temos também os projetos legislativos e discursivos que focalizam na criptografia enquanto uma técnica que “dificulta” as investigações criminais.
Neste campo de visão e discurso, alguns atores, especialmente os mais voltados a setores de segurança pública e judicialização, tendem a afirmar a criptografia como uma técnica impeditiva da justiça. Nesta ceara, propostas como a varredura pelo lado do cliente, rastreabilidade de mensagens instantâneas e até mesmo o hacking governamental, vêm ganhando contornos e sendo reforçadas enquanto saídas argumentativas e possibilidades de ações concretas de investigação criminal e persecução penal em ambientes criptografados – principalmente de ponta a ponta.
Nos últimos anos, nossa equipe se debruçou a estudar as três técnicas mencionadas acima, e constatou que a aplicabilidade de qualquer uma delas não apenas fragilizaria o campo técnico da criptografia, como também seus efeitos políticos e jurídicos, como a privacidade e a defesa dos direitos humanos.
Porém, durante os estudos, verificamos que uma série de argumentos sensibilizadores são convocados à arena de disputa quando o diálogo é a fragilização da criptografia. Dentre eles, justamente casos de combate de material de abuso sexual infantil.
Ocorre que a proteção do direito de acesso a ferramentas de criptografia forte e segura representa um imperativo social insuperável nos dias atuais. E isso de forma alguma significa que questões como a proteção de crianças e adolescentes e a responsabilização das pessoas responsáveis violências sexuais infanto-juvenil devam ser ignoradas: trata-se de uma questão que depende de um balanceamento de garantias e do aprofundamento dos debates técnicos e jurídicos para que sejam desenvolvidas (e adequadamente empregadas) técnicas investigativas que não prejudiquem a segurança digital e outros direitos de toda a base de pessoas usuárias da internet.
(Mas já deu pra perceber como essa discussão é muito mais complexa do que parece, certo?)
Se esse é só o pontapé da pesquisa, o que vem por aí?
Como mencionamos, esse é apenas um trecho da parte inicial da pesquisa em desenvolvimento. Nessa análise nos propomos a apresentar o aparente embate entre criptografia e proteção de crianças e adolescentes em ambientes online, bem como mergulhar no conceito de violência sexual contra esse público no espaço digital – dedicamos atenção especial a esse último conceito, dado que as principais pesquisas sobre o tema são anglocentradas e eurocêntricas, com a utilização de conceitos como o já citado CSAM, que se refere ao termo abuso sexual sem a complexificação necessária ao debate regional.
Mas, para além da busca e análise dos conceitos, essa pesquisa tem desenvolvido também a catalogação de normas e tecnologias desenvolvidas nos países do Mercosul que articulam as duas principais temáticas aqui apresentadas. A publicação desses primeiros achados deve sair em breve.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.