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Um novo tipo de propriedade intelectual?

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4 de julho de 2017

Em Dezembro de 2015, um empreendedor israelense finalmente lançou no Kickstarter a campanha para financiamento de uma de suas invenções: um case para smartphones que podia ser convertido facilmente em um bastão para selfies. O empreendedor havia gasto aproximadamente um ano desenvolvendo o produto, desenhando protótipos e adquirindo fundos mínimos para sua realização. Qual não foi sua surpresa quando, uma semana após o lançamento da campanha no Kickstarter, sua ideia já estava à venda por preços baixíssimos em diversos sites chineses de e-commerce?

No curso de uma semana, manufaturas chinesas foram capazes de analisar a ideia do empreendedor, desenvolver o produto e colocá-lo à venda.

Este tipo de situação é mais comum do que parece. O fenômeno dos “copycats” chineses é fruto de uma cultura de compartilhamento e inovação que remonta à decada de 90, quando diversas multinacionais Norte-Americanas e Européias começaram a transferir a produção bruta de seu hardware para as Zonas Econômicas Especiais chinesas, em especial Shenzhen. Se no mundo do software existem correntes que advogam pela liberdade na análise, alteração e compartilhamento do código (Os chamados movimentos Free and Open Source Software), no mundo do hardware uma cultura própria se debruça sobre o chamado “hardware open source”: é o movimento dos makers. No que diz respeito ao Software Livre e Open Source, existem quatro liberdades essenciais que, de uma forma ou de outra, também foram absorvidas pelo movimento maker no que diz respeito ao hardware:

  • Liberdade para executar o programa como desejar, para qualquer propósito;
  • Liberdade para estudar o programa, e modificá-lo como desejar;
  • Liberdade para distribuir cópias de forma colaborativa;
  • Liberdade para distribuir suas cópias modificadas, oferecendo à comunidade a chance de se beneficiar das melhoras que você fez;

A cultura maker é uma intersecção de ideias DIY (Do-it-yourself) com a cultura hacker que se concentra na criação de novos dispositivos e na experimentação com hardware já existente.

A cidade de Shenzhen foi a primeira Zona Econômica Especial da China, e durante as décadas de 80, 90 e 2000 vivenciou um crescimento vertiginoso abastecido por investimentos estrangeiros e caracterizado pelo foco na produção de manufaturados têxteis e eletrônicos. Especialmente após a década de 90, tornou-se comum que as fábricas chinesas que produzissem eletrônicos de marca fossem utilizadas também para produzir versões ‘piratas’ destes produtos, para então revendê-los a preços mais baixos nos mercados chineses e mesmo estrangeiros.

O fenômeno, conhecido como ‘shanzhai’, foi considerado um incômodo pelos polos de inovação europeus e norte-americanos, uma vez que os manufaturados chineses se beneficiavam da inovação produzida nos países periféricos sem oferecer qualquer contraprestação. Além disso, costumavam não oferecer qualquer garantia ou suporte e muitas vezes adquiriam a reputação de baixa qualidade e pouca confiabilidade.

O cenário, entretanto, mudou rapidamente. Os produtos shanzhai gradualmente adquiriram qualidade equivalente aos originais de marca, sejam Samsung, Apple, Sony, etc. Em alguns casos, trazem inovações desenvolvidas na hora que os tornam superiores ao design de marca. Os primeiros celulares com dual-SIM, isto é, capacidade para dois chips diferentes, foram desenvolvidos desta forma antes de se tornarem um padrão no mercado global. O empreendedor Jack Ma, fundador do Alibaba, causou polêmica ao afirmar que os produtos pirateados produzidos em Shenzhen seriam melhores que os originais.

Hoje, Shenzhen é até chamada de “O Vale do Silício do Hardware”. A cidade gasta cercade 4% do seu PIB em Pesquisa & Desenvolvimento (O dobro do restante da China), produz mais de 40% das patentes chinesas (E de alta qualidade, diferentemente do padrão chinês), e estima-se que adicione uma média de 76% ao valor agregado dos produtos desenvolvidos lá (Para fins de comparação, a Europa adiciona 86%, e a média do Extremo Oriente, incluindo a própria china em tempos passados, era de 5%).

Os produtos shanzhai se tornaram menos comuns com o passar do tempo e à medida que empresas chinesas começaram a desenvolver sua própria inovação, mas a cultura de compartilhamento de conhecimento permanece. Ainda que muitas marcas tenham surgido em Shenzhen a partir do que originalmente eram apenas fábricas copiadoras, a mentalidade dos manufatureiros na Zona Econômica Especial ainda é de que o hardware e o desenho dos produtos estão abertos a serem alterados ou “pegos emprestado”. Noções de exclusividade tradicionais da propriedade intelectual não são encontradas aqui.

Como, então, é possível fomentar a inovação se não existem garantias legais para o produto da pesquisa e desenvolvimento? Que seja possível lucrar dessa forma parece inicialmente contra-intuitivo: afinal, se uma inovação está aberta para ser usada por qualquer um, mesmo por quem não gastou um centavo no seu desenvolvimento, por que inovar?

A resposta encontra-se na velocidade da inovação chinesa em polos de hardware como Shenzhen.

O ritmo de inovação em Shenzhen se tornou tão rápido que antes que uma ideia possa ser copiada, ela já foi superada pelo próprio desenvolvedor. Os ciclos de inovação em Shenzhen atingiram um passo tão rápido que a proteção tradicional à propriedade intelectual se torna irrelevante. O grosso do lucro com uma inovação é feito antes que ele possa ser copiado. Em alguns casos, uma inovação desenvolvida é copiada por outro empreendimento, melhorada, e então re-absorvida com a melhoria pelo desenvolvedor original.

É possível reproduzir este ritmo de inovação em outros ecossistemas, ou as condições únicas da cidade chinesa, bem como a janela de oportunidade que aproveitou, tornam este fenômeno algo restrito a Shenzhen?

A resposta é nebulosa, mas Shenzhen certamente nos ensina uma lição sobre inovação e propriedade intelectual: talvez a ideia de que uma única pessoa, física ou jurídica, ter direitos exclusivos sobre uma ideia ao redor do mundo inteiro – e.g. a Apple ter o monopólio sobre o design de smartphone retangular com bordas arredondadas – não seja exatamente uma forma de se fomentar a inovação. Abrir oportunidade para o compartilhamento de ideias – especialmente em países em desenvolvimento que não possuem meios e recursos para acessar o conhecimento de forma plena – e se afastar de noções de proteção fundadas no século XIX talvez faça muito mais pela disseminação da inovação do que a exclusividade e a mercantilização do conhecimento.

Para ler mais:

Shenzhen is a hothouse of innovation, The Economist.

China’s Factories in Shenzhen can copy products at breakneck speed – and it’s time for the rest of the world to get over it, Quartz

Shenzhen: the Silicon Valley of Hardware, Wired.

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Fundador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenador e pesquisador do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual. Alumni da 2a turma da Escola de Governança da Internet do Brasil. Membro do Observatório da Juventude da Internet Society.

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