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Trump, COVID-19 e Síndrome de Cassandra

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14 de outubro de 2020

No começo de outubro de 2020, o mundo recebeu a notícia de que o Presidente dos EUA, Donald Trump, contraíra COVID-19. Após meses de pandemia, incontáveis vítimas pelo mundo todo e muitas polêmicas sobre informação, um dos mais polêmicos atores — especialmente por seu comportamento em redes sociais — passa a fazer parte das estatísticas. E nos leva a  mais uma vez, parar para pensar no papel da informação, da ciência e na distribuição de notícias falsas

Uma onda de boatos

Um estudo identificou uma nova onda de desinformação sobre a covid-19 e seus possíveis tratamentos após o anúncio da infecção de Trump. Segundo o levantamento, que inclui conteúdo online, mídias sociais e mídias tradicionais, houve um pico de informações falsas envolvendo os temas “Hidroxicloroquina”, “Trump está fingindo”, “Conspirar para matar ou infectar o presidente” e “Máscaras não funcionam”. As polêmicas sobre possíveis tratamentos- inclusive com conteúdos controversos vinculados por autoridades (não só dos EUA)- ou quais seriam os meios corretos de proteção contra a COVID-19, reacendem discussões sobre os problemas que as informações falsas podem representar para a saúde pública. 

No Brasil, o PL 2630 corre de forma tumultuada no Congresso e começou até motivado pelo combate às chamadas “fake news” nesse contexto de pandemia. É importante reconhecer que esse tipo de conteúdo precisa ser combatido e sinaliza para problemas reais relativos a conspirações e outras atitudes que representam riscos à saúde pública. Algumas abordagens na proposta legislativa sacrificam os fins pelos meios: um escopo pouco delimitado, a tentativa de incluir questões paralelas relativas à internet e provedores e a pouca coerência com o que o direito brasileiro já prevê podem oferecer ainda mais riscos para a internet no Brasil. Nos primeiros movimentos do PL, o IRIS lançou suas considerações. Alguns pontos de atenção do projeto e que causam mobilização da Coalizão Direitos na Rede estão reunidos aqui

“Os lírios não nascem das leis” 

Obra-prima de literatura brasileira, “Nosso Tempo”, de Carlos Drummond de Andrade, não poderia ser mais pertinente. Em várias reflexões sobre as questões do nosso tempo, relacionadas às tecnologias da informação e do conhecimento e de seus efeitos sobre a sociedade, a economia, o estado e a cultura são os versos do conterrâneo ilustre que ecoam: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”.

Também quando buscamos — enquanto sociedade — enfrentar as informações falsas e os riscos que elas podem trazer, especialmente durante a pandemia da COVID-19, ainda que o impulso regulatório exista, uma abordagem mais abrangente precisa ser considerada. E se te parece estranho ler de alguém cuja formação é jurídica que “as leis sozinhas não dão conta” dos fenômenos sociais —  ainda mais aqueles atrelados à informação —  minha resposta é: por isso mesmo. Dificilmente somos formados para admitir que as abordagens jurídicas precisam ser atreladas e coerentes a abordagens sociais, psicológicas, de saúde, educação e cidadania. 

As notícias falsas evidenciam a complexidade não apenas de seu combate, mas também da disseminação das informações corretas. No caso das notícias relativas ao COVID-19 ganha ainda mais relevância a comunicação da ciência, da medicina, da farmacêutica, da infectologia, entre outras, para a sociedade em geral. Do ponto de vista das ciências humanas, sociais aplicadas e políticas, precisamos aprender a mesma lição. 

Precisamos falar e precisamos ouvir

A infecção de Trump, o tsunami de desinformação e as tentativas de combatê-las não têm nada de mitológico. Por outro lado, a relação da sociedade com a informação, a construção de crenças e o compartilhamento de conteúdo controverso precisam ser pensados como Cassandra, a personagem mitológica em cujas previsões ninguém acreditava. Já há algum tempo, bem antes da pandemia, a profa. Natália Pasternak alertava que a ciência sofria do mesmo mal

Qualquer caminho que busque enfrentar as notícias falsas, especialmente aquelas que afetam a saúde pública, passa pela necessidade de que a informação correta, o pensamento crítico e a formação cidadã cheguem a todas as pessoas. E isso apenas se alcança a partir da valorização do conhecimento, do acesso à informação e da superação das barreiras digitais. Do contrário, trataremos apenas os sintomas (e para que conste: não há evidências de que a hidroxicloroquina funcione). 

* Os pontos de vista e opiniões expressos nesta postagem do blog são de responsabilidade do autor. As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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