Temas da Internet na pauta do STF: oportunidades para o Constitucionalismo Digital
Escrito por
Paulo Rená (Ver todos os posts desta autoria)
18 de novembro de 2024
Entenda os vários temas que são objeto dos processos que foram listados para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no dia 27 de novembro de 2024
O Supremo Tribunal Federal listou na pauta de julgamento da sessão do dia 27 de novembro de 2024 (com previsão de continuidade no dia seguinte) uma série de sete processos que envolvem vários temas relacionados à Internet: perfil falso, comunidade ofensiva, suspensão do WhatsApp, monitoramento de uso de redes sociais, bloqueio de contas no Twitter e no Instagram.
A seguir quero apresentar uma breve síntese explicativa de cada um dos sete processos, para então fazer uma contagem regressiva, com três reflexões teóricas à luz do constitucionalismo digital, dois palpites práticos sobre as possibilidades reais, e uma conclusão.
Os sete processos
São sete os processos listados pelo STF para julgamento no dia 27/11/2024:
- RE 1037396
- RE 1057258
- ADPF 403 (com MEDIDA CAUTELAR)
- ADI 5527
- ADPF 765
- MS 36666
- MS 37132
Vamos ver detalhes sobre cada um deles.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1037396 (Tema de Repercussão Geral nº 987): REMOÇÃO DE PERFIL FALSO NO FACEBOOK
Nessa ação, iniciada em 2014, está em discussão se o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) é constitucional ou não. Ele prevê que as empresas provedoras de aplicações de Internet (redes sociais, motores de busca, serviços de mensagem, etc.) só podem ser responsabilizadas por danos decorrentes de um conteúdo publicado por seus usuários caso elas tenham descumprido uma ordem judicial específica determinando a remoção desse conteúdo.
O STF vai julgar um recurso extraordinário apresentado pelo Facebook contra uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que condenou a empresa a pagar uma indenização por dano moral no valor de dez mil reais. O motivo da condenação é a empresa não ter atendido uma solicitação de excluir um perfil falso criado com o nome e fotos de uma mulher. Esse perfil vinha sendo utilizado para publicar mensagens ofensivas a outras pessoas.
A empresa alega que, de acordo com o art. 19 do Marco Civil, ela não teria obrigação de atender à solicitação sem uma decisão judicial prévia e específica.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1057258 (Tema de Repercussão Geral nº 533): REMOÇÃO DE COMUNIDADE OFENSIVA NO ORKUT
Esse processo também discute o regime legal de responsabilidade de provedores de aplicações online na moderação do conteúdo gerado por usuários. Mas o caso é anterior ao Marco Civil da Internet, e portanto a discussão não envolve diretamente o art. 19.
Aqui o recurso extraordinário foi interposto pela Google, dona da extinta rede social Orkut. A empresa também foi condenada ao pagamento de indenização por dano moral, decorrente da criação, por estudantes, de uma comunidade no Orkut, direcionada a ofender uma professora.
Então, o STF vai julgar se, na ausência de regulamentação legal, a empresa tinha o dever jurídico de fiscalizar o conteúdo publicado em seus domínios eletrônicos e retirar do ar informações consideradas ofensivas, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 403: ORDEM JUDICIAL DE SUSPENSÃO DO WHATSAPP
Nesse processo, a questão é a constitucionalidade das decisões judiciais que determinaram a suspensão do Whatsapp, à luz do direito à liberdade de expressão.
Trata-se de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) proposta em maio de 2016 contra a decisão do Juízo da Vara Criminal da cidade de Lagarto (SE), que havia determinado a suspensão do WhatsApp em todo território nacional, em razão de a empresa não colaborar com uma investigação criminal, por força da criptografia ponta-a-ponta das mensagens. A decisão foi revogada, à época, mas outras ordens judiciais do mesmo tipo foram proferidas, o que justifica a manutenção da ADPF.
Aliás, em 19/07/2016, o Ministro Presidente Ricardo Lewandowski chegou a deferir um pedido liminar para restabelecer imediatamente o funcionamento do aplicativo WhatsApp, contra uma decisão do Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias (RJ). Essa decisão liminar também estará em análise.
Em 2020 o relator, Ministro Edson Fachin, já votou pela inconstitucionalidade da ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica. A Ministra Rosa Weber acompanhou o Ministro Relator, mas o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista do processo.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5527: PREVISÃO LEGAL DE SUSPENSÃO DO WHATSAPP
Este caso é muito próximo do caso anterior, e ambos inclusive foram objeto de uma audiência pública em 2017. A diferença é que neste o foco são as previsões legais usadas como fundamento nas decisões judiciais que ordenaram a suspensão do WhatsApp. Assim, esta ADI, ou Ação Direta de Inconstitucionalidade, questiona os artigos 10, §2°, e 12, incisos III e IV, do Marco Civil da Internet.
A Ministra Relatora Rosa Weber julgou procedente o pedido de interpretação dos artigos conforme o art. 5º, XII, da Constituição Federal, de modo que o conteúdo das comunicações privadas somente pode ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Ainda, entendeu ser cabível a ordem de suspensão temporária para provedores de conexão e de aplicações de internet se houver descumprimento da legislação brasileira quanto à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. Mas afastou qualquer punição por não observar ordem judicial que exija enfraquecer mecanismos de proteção da privacidade inscritos na arquitetura da aplicação.
O julgamento também foi suspenso em 2020, depois do voto do Ministro Edson Fachin, acompanhando a relatora.
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 765: PRODUÇÃO ESTATAL DE DOSSIÊ SOBRE USO DE REDES SOCIAIS
Nesta ADPF, proposta em 2020, é discutida a constitucionalidade dos relatórios produzidos pelo governo de Jair Bolsonaro a partir de monitoramento de parlamentares e jornalistas nas redes sociais. Aponta-se que essa vigilância ofende o preceito fundamental da liberdade de expressão.
A Ministra Relatora, Cármen Lúcia, votou em 2022 pela inconstitucionalidade de todo e qualquer ato de produção de relatórios de monitoramento das atividades de parlamentares e jornalistas em suas redes sociais.
Em 2023, o Ministro André Mendonça divergiu. Votou para o STF não conhecer da ADPF ou, caso seja analisado o mérito, julgar improcedentes os pedidos. Acompanharam a relatora os Ministros Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso e Rosa Weber.
MANDADO DE SEGURANÇA 36666: BLOQUEIO DE CONTA NO TWITTER POR AUTORIDADE PÚBLICA
Aqui se trata de um mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado em 2019 contra a conduta do então presidente da República Jair Bolsonaro de, no X (antigo Twitter), bloquear o perfil de um jornalista. O jornalista afirma ter direito líquido e certo a poder acompanhar e criticar autoridades públicas na rede social, inclusive as contas particulares, como forma de exercício pleno da cidadania, e afirma que o bloqueio configurou censura e abuso de poder, restringindo sua atividade profissional.
Vale destacar que o bloqueio pelo ex-presidente foi questionado por várias outras pessoas, em outros mandados de segurança.
MANDADO DE SEGURANÇA 37132: BLOQUEIO DE CONTA NO INSTAGRAM POR AUTORIDADE PÚBLICA
Este MS de 2020 é semelhante ao anterior. Muda que o impetrante é um advogado e a rede social é o Instagram, mas também se trata do então presidente da República Jair Bolsonaro bloquear uma conta.
Ainda em 2020, em julgamento virtual, o ministro Marco Aurélio Mello, então relator do processo, negou o pedido liminar, mas, ao analisar o mérito do mandado de segurança, votou pela proibição de o presidente da República bloquear o acesso de outros usuários a suas contas nas redes sociais.
Três reflexões à luz do Constitucionalismo Digital
Diante desse conjunto de ações, quero desenvolver três reflexões teóricas, a partir do olhar do Constitucionalismo Digital. Essa ideologia, na abordagem de Edoardo Celeste, propõe lidar com os desafios jurídicos impostos pela sociedade da informação em compromisso com duas missões centrais. De um lado, reafirmar direitos humanos fundamentais, como liberdade de expressão, cidadania, privacidade, proteção de dados pessoais, livre iniciativa, acesso ao poder judiciário, etc.); e, de outro lado, promover o equilíbrio entre os poderes (não apenas Executivo, Legislativo e Judiciário, mas também os poderes do setor privado).
A minha primeira reflexão é sobre o Poder Judiciário ser convocado pela sociedade a operar como fiel da balança para equacionar a mais variada lista de questões envolvendo conflitos em torno da Internet. Vejo esse fenômeno como uma face da dupla necessidade central ao Constitucionalismo Digital, repito, afirmar direitos e equilibrar poderes.
A segunda reflexão é sobre como muitos desses assuntos controvertidos já poderiam ter sido resolvidos pelo Poder Legislativo, mas estão sem uma regra específica na legislação. Não que uma lei nova pudesse resolver os processos já ajuizados, mas já se passaram dez anos desde a aprovação do Marco Civil da Internet, e em certas questões não só parece que não demos passos adiante, como fico com a impressão de que estamos prestes a retroceder.
E minha terceira reflexão se debruça sobre a relevância crescente das plataformas digitais para nossa vida em sociedade, e como não há uma proporcionalidade em nossas produções de regras legais. Além de todos esses casos, há ainda muitos outros conflitos nos quais as Big Techs e seus serviços ocupam um papel crucial, mas seguem exercendo uma postura pouco transparente e reproduzindo um discurso de que não deveriam assumir mais responsabilidades.
Dois palpites práticos sobre a pauta do STF
Divagações abstratas à parte, tenho aqui comigo a intuição bem pragmática de que, considerando a extensão e o conteúdo da pauta de julgamento marcada as sessões de 27 e 28 de novembro de 2024, haverá dois acontecimentos:
- Alguns processos não serão julgados, talvez até a maioria deles: além de as discussões de cada caso serem muito complexas, em cada um deles há muitas vozes entre julgadores, partes e amigos da corte (amici curiae) que ainda terão espaço para se pronunciar. Imagino que a demora natural da dinâmica de julgamento vai fazer com que sobrem casos sem resolução ao final do dia 28. Talvez os julgamentos sigam em dezembro, talvez sejam novamente retirados de pauta;
- O Congresso Nacional não vai acatar o resultado com tranquilidade: qualquer que seja o resultado jurídico, prevejo uma chuva (ou seria enxurrada?) de projetos de lei contrários ao que decidir o Supremo, seja pela defesa sincera da perspectiva contraposta, seja pelo simbolismo de desafiar o Poder Judiciário, nessa queda de braço comprada por alguns parlamentares e que vem se arrastando por meses.
São apenas duas singelas especulações. Mas creio que não estou muito longe da realidade. Será que existe um jogo de azar onde eu possa apostar que estou certo? (brincadeira!)
Um futuro em construção no presente
Esses são apenas alguns dos muitos processos judiciais que, ao lado de projetos de lei e políticas públicas, bem como definições de atores privados, fazem parte da construção atual do mundo digital em que iremos viver daqui em diante. Em verdade, como não existe propriamente uma separação efetiva entre o mundo virtual e o mundo presencial, trata-se de um grande conjunto de elementos presentes constitutivos do nosso futuro.
Sim, eles são um monte de números, siglas e documentos repletos de juridiquês. Mas também são processos judiciais importantes para você e o seu dia a dia. Para saber mais e acompanhar de perto as novidades sobre direito e tecnologia, siga acompanhando nossas produções aqui no IRIS.
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Paulo Rená (Ver todos os posts desta autoria)
Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito, Inovação e Tecnologia e líder do grupo de pesquisa Cultura Digital & Democracia no Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pesquisador bolsista no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS); integrante voluntário do Aqualtune LAB: Direito, Raça e Tecnologia; ex-Diretor Presidente do Instituto Beta Internet e Democracia (IBIDEM), três ONGs componentes da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Consultor Sênior de Políticas Públicas do Capítulo Brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) para os temas Responsabilidade de Intermediários e Criptografia. Conselheiro Consultivo do centro de pesquisa Internetlab. Consultor Associado da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ).