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Streaming online: o que é e qual a sua natureza jurídica?

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18 de junho de 2018

Você muito provavelmente já consumiu conteúdo online por meio de serviços de streaming. YouTube, Spotify e Netflix são exemplos de serviços que utilizam essa técnica para distribuir seu conteúdo para os usuários. Mas, afinal, o que exatamente é essa tecnologia tão presente em nossas vidas? Este texto busca fazer uma breve exposição sobre o tema, bem como analisar de forma crítica qual a natureza jurídica do streaming no sistema jurídico brasileiro.

 

O conceito de streaming

Streaming” é um termo em inglês que significa “transmissão”. No contexto da internet, streaming diz respeito à possibilidade de se disponibilizar um determinado conteúdo (vídeo, áudio, jogos) para um ou mais dispositivos conectados à rede, sem que estes necessitem de uma cópia desse conteúdo em sua máquina para executá-lo. O streaming, portanto, é uma tecnologia que possibilita que esse conteúdo, salvo apenas no dispositivo que o transmite – que pode ser desde um simples celular conectado à rede até um servidor de larga escala -, é enviado para os destinatários finais através da internet, o que possibilita que estes tenham acesso ao conteúdo normalmente, como se ele estivesse armazenado em seus próprios dispositivos.

Para utilizar o streaming, contudo, o usuário necessariamente depende da disponibilidade de uma conexão à rede. A velocidade de acesso exigida para realizar o streaming depende do tipo de serviço que se busca utilizar e também do tamanho dos pacotes de dados que precisam ser enviados – um stream de vídeo, por exemplo, costuma demandar uma velocidade muito maior do que um de áudio, e o próprio vídeo pode exigir velocidades diferentes, dependendo da qualidade da transmissão.

Atualmente, a tecnologia de streaming online possibilita diversas aplicações práticas. Há, por exemplo, os serviços que possibilitam que os dados do serviço fiquem hospedados em um servidor da empresa e não no computador ou celular do usuário, não existindo necessidade do usuário dispor do espaço de sua máquina para o armazenamento do conteúdo. É o caso dos serviços anteriormente citados, como YouTube, Spotify, Netflix, entre outros.

Além disso, a melhoria da velocidade de acesso à internet ao redor do mundo nos últimos tempos também tem possibilitado  a utilização do streaming para terceirizar até mesmo o próprio processamento de um dispositivo. É o caso da computação em nuvem, com a qual torna-se possível utilizar um dispositivo pouco potente para realizar tarefas que demandam muito processamento. Exemplos de serviços que usam essa prática podem variar desde o streaming de jogos –  como PlayStation Now, Xbox Play Anywhere e NVIDIA GameStream – até a disponibilização de supercomputadores para a condução de pesquisas acadêmicas avançadas e simulações que demandam quantidades inacreditáveis de processamento – tudo isso sem que o pesquisador precise de acesso direto ao referido supercomputador.

 

A natureza jurídica do streaming segundo a jurisprudência

Dessa forma, fica evidente que a tecnologia de streaming possibilitou a criação de diversas ferramentas extremamente úteis para o nosso dia a dia – e a quantidade de usos possíveis cresce a cada dia, conforme rumamos para um mundo cada vez mais conectado.

Contudo, como quase todas as inovações que  permeiam a internet, o surgimento de uma tecnologia tão disruptiva colidiu com as noções de Direito que tínhamos antes. Como resultado disso, temos uma  grande dificuldade em classificar os fenômenos jurídicos que ocorrem por meio da internet empregando apenas conceitos jurídicos concebidos antes da ascensão dessa ferramenta, e essa dúvida pode causar repercussões na maneira como tratamos as relações que se dão por meio da internet e das novas tecnologias.

No caso do streaming, uma das principais questões que permeiam a prática gira em torno da natureza jurídica desse ato de se obter acesso a um conteúdo armazenado em dispositivo que não pertence ao usuário. Como classificar  a relação que o usuário tem com relação ao conteúdo transmitido?

No início do ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu sobre o tema, por meio do Recurso Extraordinário nº 1056363. Essa decisão reitera o entendimento anterior apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nas decisões dos Recursos Especiais nº 1.559.264 e nº 1.567.780, e, em suma, determina que o streaming de conteúdos deve ser classificado como execução pública para fins de cobrança de direitos autorais por parte do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).

O entendimento dos tribunais superiores foi fundamentado no artigo 68, §2º, da lei nº 9.610/98, segundo o qual “considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”.

Adicionalmente, é importante levar em consideração a classificação de “locais de frequência coletiva”, que, segundo o §3º do mesmo dispositivo legal, podem ser entendidos como “os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas”.

O streaming, segundo essa linha de raciocínio, foi classificado como execução pública; e a internet, como um local de frequência coletiva no qual essa execução pública é realizada. Esse entendimento, contudo, é extremamente questionável, pelos motivos que a seguir serão expostos.

 

Contraponto ao entendimento dos tribunais superiores

Primeiramente, é importante ressaltar que existem duas formas de se realizar o streaming online: o webcasting e o simulcasting. O webcasting corresponde ao método que permite a autonomia da vontade do usuário sobre o conteúdo que ele consome. Esse método possibilita que se escolha pessoalmente o conteúdo transmitido, dentre as opções disponíveis pelo serviço de streaming. O simulcasting, por sua vez, melhor se assemelha a um serviço de rádio ou televisão por meio da internet. Há uma programação determinada oferecida pelo transmissor, e o usuário não tem sobre ela autonomia que não seja a escolha de consumir ou não aquele conteúdo disponibilizado.

Na decisão do STF, essa distinção é totalmente deixada de lado, o que resulta em uma generalização errônea da tecnologia de streaming. Uma transmissão por simulcasting, por exemplo, até poderia ser considerada execução pública, por impossibilitar a interação ativa dos usuários e consistir simplesmente na disponibilização do conteúdo para a grande massa de usuários que compõem a internet, mas seria difícil aplicar esse raciocínio ao multicasting. O multicasting, por sua vez, assemelha-se muito mais a um modelo de mera disponibilização do conteúdo transmitido para os usuários, que podem escolher exatamente o que querem consumir do catálogo, o que não caracterizaria uma execução pública e afastaria a possibilidade de cobrança pelo ECAD.

Nesse sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), nas decisões da Apelação Cível nº 0386089-33.2009.8.19.0001 e dos Embargos Infringentes nº 0174958-45.2009.8.19.001. Foi adotada uma interpretação sistemática do termo “locais de frequência coletiva”, e concluiu-se que o webcasting consiste em uma transmissão individual – e não coletiva – do conteúdo para o usuário, visto que envolve a autonomia da vontade deste. Essas decisões, juntamente com outras que também foram proferidas antes do novo posicionamento dos tribunais superiores, formavam a maioria da jurisprudência sobre o tema no país, e demonstravam uma maior maturidade dos aplicadores da lei quanto à natureza jurídica do streaming.

Em contraponto a esse entendimento, é fato que a Instrução Normativa nº 1, de 04 de maio de 2016, do Ministério da Cultura determinou que os provedores de aplicação de internet também se enquadram no conceito de “usuário” constante no art. 22 do Decreto nº 8469/15, sendo também responsáveis pelas obrigações relativas aos direitos autorais que competem à execução pública. Contudo, essa Instrução Normativa parece também tratar os provedores de aplicação de maneira genérica, sem distinguir os serviços de webcasting dos de simulcasting e, portanto, desconsiderando uma conceituação de extrema importância para o devido endereçamento do tema sobre o qual se buscou legislar.

Para além do argumento da jurisprudência majoritária, tem-se que o art. 68, §3º, da Lei nº 9.610/98 é claro ao apontar, em seu rol exemplificativo do que seriam “locais de frequência coletiva”, apenas exemplos de lugares físicos, que subentendem a presença material das pessoas para que seja possível uma execução pública. A internet, portanto, não seria uma inclusão pacificamente presumível para esse rol de locais de frequência coletiva, pelo fato de a presença dos usuários se dar de maneira não corpórea. Dessa forma, seria extremamente difícil uma argumentação jurídica sólida em prol da classificação do streaming como execução pública. Esse argumento será melhor explorado na sessão seguinte do texto.

 

O cenário normativo da internet brasileira

Como pode-se perceber, há uma forte controvérsia em torno da natureza jurídica de práticas de streaming em território brasileiro. Percebe-se, contudo, que o principal fator que motiva essa controvérsia diz respeito à lei aplicada à questão.

A lei de direitos autorais vigente no Brasil data do ano de 1998. Trata-se de uma época em que a implementação da internet para uso comercial massificado no Brasil e no mundo era muito incipiente e ainda passava por seus primeiros momentos de implementação e desenvolvimento por seus estágios iniciais. Tem-se, portanto, que o texto da Lei nº 9.610/98 foi aprovado sem levar em consideração as profundas mudanças pelas quais passou a matéria de direitos autorais desde o surgimento de ferramentas online como o streaming.

Levando-se em consideração o contexto histórico no qual a lei entrou em vigor, é fácil compreender o porquê de não haver nenhuma menção pormenorizada da internet no texto legal. Assim, compreende-se o motivo pelo qual é necessária uma interpretação tão extensiva do rol exemplificativo do art. 68, §3º, para qualificar o streaming online como execução pública.

É certo que a hermenêutica jurídica tem como função a interpretação teleológica da lei vigente, para que seja aplicada de acordo com as intenções originais do legislador apesar da considerável desatualização quanto à atualidade. Contudo, a internet representou um cenário de mudança tão paradigmática e disruptiva no modo como os indivíduos consomem conteúdo autoral que não é mais suficiente uma mera atualização terminológica dos conceitos apontados no texto legal: mostra-se necessária a criação de uma nova legislação de direitos autorais no Brasil, atualizada e consciente da realidade em que vivemos. Nesse sentido, cabe mencionar que está em tramitação o Projeto de Lei nº 3.133/12, que busca alterar, atualizar e consolidar a legislação sobre direitos autorais, entre outras providências. O Projeto de Lei foi arquivado em janeiro de 2015, mas desarquivado cerca de dois meses depois, em março de 2015, embora não tenham havido avanços em sua tramitação desde então.

Isso se mostra ainda mais importante no Brasil devido à importância internacional que o país conquistou no cenário legislativo da internet. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) é considerado por todo o mundo como uma referência em legislação de internet, tendo antecedido processos legislativos similares em países da Europa e da América do Norte, por exemplo. Nesse contexto, é de extrema importância que o Brasil mantenha esse ambiente legislativo saudável à inovação, por meio de leis adequadas aos tempos atuais.

 

Conclusão

Em resumo, portanto, é possível perceber um debate acirrado acerca da tecnologia de streaming como ferramenta de consumo de obras protegidas por direitos autorais. Esse debate, contudo, gira em torno de diversos fatores, mas principalmente do estado de desatualização no qual se encontram as leis brasileiras sobre esse tema e outros similares. A solução do problema gira em torno de um amadurecimento do ordenamento jurídico em relação às novas tecnologias e também de uma atualização na lei de  direitos autorais vigente no país. Só assim será possível construir um ambiente regulatório adequado ao contexto da expansão do uso de novas tecnologias.

E você, o que pensa sobre a classificação dos serviços de streaming no Brasil? As leis atuais são suficientes para suprir as demandas do judiciário ou acredita ser necessário um novo processo legislativo que busque tutelar essas novas tecnologias? O IRIS continuará acompanhando o tema e suas discussões no cenário brasileiro e no internacional.

Como já sabemos após a leitura deste texto, o streaming é uma tecnologia utilizada por todos no cotidiano. O IRIS, por exemplo, tem um canal no YouTube, no qual publicamos frequentemente uma série de conteúdos relacionados a Direito, internet e sociedade. Se você se interessa pelo tema, não se esqueça de conferir nossas postagens clicando aqui!

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Escrito por

Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).

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