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Se o futuro está codificado, que a gente hackeie o código juntas

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22 de abril de 2025

Entre o concreto e o sonho, há redes, saberes e disputas que desafiam o modo automático da governança da tecnologia e reprogramam o futuro desde a margem.

Olá, pessoa leitora! Hoje é oficialmente minha estreia sozinha neste blog e, sinceramente, ninguém poderia esperar nada diferente dela senão um esforço de análise afetiva, que combine o acúmulo de conhecimento teórico com aquilo que, na verdade, mais tenho acumulado ao longo dos meus anos profissionais: cuidado e carinho.

Nos últimos dias, tive a oportunidade de participar de um evento onde, logo no início, uma pergunta foi lançada: o que ainda te dá esperanças na tecnologia?

Poucos dias depois, navegando por alguns sites sobre o tema, me deparei com um texto chamado What was the last thing that gave you hope in your work? [Qual foi a última coisa que te deu esperança no seu trabalho?]. Ainda na mesma linha, tivemos recentemente aqui neste blog um texto do brilhante Paulo Rená, que encerra com a mesma provocação, em um chamado para olharmos com atenção para as esperanças possíveis na pesquisa científica.

Eu até gostaria de acreditar que essa, então, coincidência, não passa de um delicado compilado de incentivos do universo, me pedindo para manter viva a esperança. Mas, me deparando com a realidade, percebo que talvez nem caiba chamar de coincidência.

A bem da verdade, chegamos a um momento em que se faz urgente olhar para a tecnologia e perguntar com coragem: o que de bom ainda podemos fazer com tudo isso? Como acreditar que a governança da tecnologia ainda pode ser colocada a serviço do bem comum?

Gostaria muito de poder te oferecer respostas. Mas reconheço minha pequenez diante desse cenário tão complexo. O que posso compartilhar aqui são fragmentos, pedaços de um grande quebra-cabeça que, aos poucos, têm me ajudado a iluminar o caminho, e, quem sabe, possam também lançar alguma luz para você.

Um modelo que nos conecta

Voltando ao início do texto: o que, enfim, me dá esperanças na tecnologia?

A princípio, essa questão pode parecer simples e nos levar rapidamente a conceitos já bastante conhecidos de quem atua com direitos digitais, como soberania, privacidade, inclusão, dentre tantos outros já muito bem articulados no campo dos direitos digitais.

Mas a minha resposta é um pouco mais simples. O que me dá esperança é estar com os pés no chão e de mãos dadas com o coletivo. Sim, o coletivo, essa categoria tão esquecida, desvalorizada, e que, no entanto, ainda pulsa como força vital para qualquer projeto de futuro digno.

Eu posso encontrar respostas em muitos livros (e encontro mesmo). Mas, na minha caminhada profissional, decidi que isso não bastava. Decidi escutar, com atenção, o que as pessoas tinham a dizer. E é aí que entram, com força e beleza, as redes comunitárias.

Antes de tudo: você conhece o conceito de redes comunitárias de Internet? Se ainda não conhece, vale conferir este texto do blog, escrito pelo convidado Nathan Paschoalini, que apresenta com mais profundidade essas iniciativas e sua importância no atual cenário da Internet. Mas se esse já é um assunto familiar para você, então vem comigo. Quero te contar um pouco sobre a minha perspectiva, do que eu tenho visto de perto e do que tem restaurado minha vontade de continuar trabalhando pelo que acredito.

O IRIS tem construído sua história, nesses quase dez anos de existência, bem coladinho a movimentos e projetos que nos inspiram. No último ano, tivemos a alegria de conduzir, junto ao capítulo brasileiro da Internet Society, o projeto da iniciativa Local Networks no Brasil, com o objetivo de desenvolver uma Estratégia Nacional de Conectividade Significativa Centrada em Comunidades.

Durante seis meses, conhecemos inúmeras comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, urbanas, de diversos territórios, escutamos de perto seus desafios, aprendemos com suas soluções e, juntos, fomos descobrindo as possibilidades abertas no campo da conectividade centrada em comunidades. O projeto se encerrou, mas as sementes que plantamos e nutrimos continuam florescendo, cada uma à sua maneira, no tempo que cada território e realidade pedem.

Participantes de evento de redes comunitárias

Uma dessas flores foi o HackaSertão de Redes Comunitárias, realizado em Salgueiro, Pernambuco. O evento, organizado pelo Instituto Federal do Sertão Pernambucano e apoiado por muitas mãos (entre elas, as nossas), reuniu jovens graduandos dos cursos de tecnologia do IF com moradores de comunidades locais, que chegaram sem conhecimento técnico prévio. 

Foram três dias de imersão intensa, pensados para expandir a ideia de um momento formativo, se consolidando como um espaço real de troca e escuta mútua. Conversamos sobre os modos de comunicação já existentes nas comunidades, sobre suas aspirações coletivas, sobre os obstáculos enfrentados cotidianamente para acessar e manter conexão, mas também sobre como a comunicação se organiza com ou sem tecnologia digital. Foi nesse chão compartilhado que nasceu o desafio: pensar, junto, como redes comunitárias de Internet poderiam emergir dessas realidades, como construções enraizadas.

Passamos por debates teóricos sobre conectividade significativa, direitos digitais e soberania tecnológica, e seguimos até a montagem técnica de infraestruturas de rede, onde a prática encontrou o conceito, e o cuidado guiou o fazer. O hackathon, nesse contexto, não foi apenas uma competição ou exercício de projeto, mas foi a organização de um processo coletivo, em que pensar tecnologia significou também pensar território, vínculos e autonomia.

foto dos alunos junto aos membros de comunidades traçando estratégias

E foi aí que comecei a enxergar com mais nitidez as duas peças principais do meu quebra-cabeça de esperanças:

  1. A percepção de que não há caminhos para uma governança da tecnologia mais humana se ela não estiver radicalmente comprometida com o coletivo; e
  2. a certeza de que não existe coletividade real sem o esforço consciente de coletivizar.

E coletivizar o quê? Tudo. O conhecimento, o trabalho, as pautas, os espaços de decisão e até a própria esperança.

Coletivizar, nesse sentido, é ir além da presença simbólica, é repartir a autoria, reconstruir as bases, abrir os códigos, os fóruns, os caminhos possíveis. É deslocar os centros, tensionar as bordas e afirmar, com o corpo inteiro, que os futuros também se constroem em comum.

E é esse gesto, radical e político, que tem me dado forças.

foto dos participantes do evento -de redes comunitárias- com um cartaz elaborado por eles sobre conectividade centrada em comunidades

Governar a tecnologia ou ser governado por ela?

Já não é tanta novidade falar que a tecnologia é política. As críticas que pontuam a concentração de poder em suas arenas vem, cada vez mais, se multiplicando. Também já sabemos que o problema não está apenas na ausência de representação, mas na forma como se define o que é técnico e o que é político, o que é participação e o que é performatividade institucional.

Mas talvez o que dificulte ainda mais os avanços reais seja o fato de que nos concentramos em disputar os discursos, enquanto a materialidade do poder segue intacta. A infraestrutura das redes, os centros de dados, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, os regimes de propriedade intelectual, os acordos internacionais de segurança… Tudo isso permanece sob controle de poucos, mesmo quando a linguagem da governança soa democrática.

A pergunta, então, deixa de ser apenas “quem participa da governança da tecnologia?”, e passa a ser: Quais são as condições reais de redistribuição de poder técnico e material hoje disponíveis? E quem está disposto a arriscar privilégios para isso?

A esperança, nesse cenário, precisa ser um gesto lúcido.

É nesse ponto que experiências como as redes comunitárias, por exemplo, retornam e ganham outra camada, não como metáforas de resistência, mas como reorganizações concretas da infraestrutura e da autoridade técnica, ainda que em escala localizada. Elas nos ensinam que é possível sonhar em romper o monopólio sobre a imaginação técnica, mas que isso exige tempo, energia, engajamento político e capacidade de criar alianças, de criar redes.

Boaventura de Souza Santos nos convida a pensar em uma ecologia de saberes, e talvez essa seja uma das imagens mais potentes que temos para tensionar a monocultura técnica e epistêmica que estrutura o presente digital. Mas ecologia, aqui, não pode ser entendida apenas como convivência pacífica entre saberes diversos. Ela exige conflito, tradução, negociação e, sobretudo, compromisso institucional e político para que outros saberes não sejam apenas ouvidos, mas sustentados. Sem materialidade, a ecologia de saberes corre o risco de se tornar apenas uma retórica bonita. 

Ainda nesse sentido, Ruha Benjamin nos lembra que o futuro é (cada vez mais) projetado, codificado e vendido. E que há um certo glamour do progresso, uma estética sedutora da inovação, que nos convence de que basta um toque de diversidade aqui, uma camada de ética ali, e estaremos avançando. Mas o que se repete, sob novos nomes e interfaces, são formas de exclusão ainda mais sofisticadas, porque são mascaradas por boas intenções.

Por isso, quando falo em governança da tecnologia, não estou falando de uma mesa maior, mas construir outras mesas, com outros modos de decisão, com outras prioridades e outras linguagens. Estou falando de outras formas de nomear os problemas, de outros ritmos de deliberação, de outros critérios para decidir o que vale a pena ser feito e o que não deveria sequer estar em debate.

Não é, nesse sentido, só uma questão de “quem tem voz”, mas de quem tem o direito de sonhar um futuro diferente e de ver esse sonho atravessar o protocolo.

É aí que as perguntas voltam a nos atravessar, mais do que como provocação retórica, como um farol:

  • Quem tem acesso às ferramentas que moldam o amanhã?
  • Quem decide o que a tecnologia precisa resolver?
  • Quem limpa os rastros deixados pelas soluções mal projetadas?
  • E, talvez mais importante: quem lucra com a crença de que tudo isso é inevitável?

Se a tecnologia já governa nossas infraestruturas, nossos corpos e até nossas formas de imaginar o possível, então ela não pode continuar sendo conduzida no modo “automático”.

É preciso reprogramar o sistema, sim, mas com outros comandos, outras mãos no teclado, outros códigos (afetivos) guiando o processo.

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Graduada em Ciências Sociais pela UNESP e mestranda em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, dedica-se academicamente ao estudo da comunicação política contemporânea, com foco na plataformização da comunicação política, desinformação e instrumentalização das emoções no ambiente digital. Atua no Grupo de Trabalho de Responsabilidade de Intermediários da Internet Society capítulo Brasil (ISOC Brasil) e no Laboratório de Estudos Digitais (LED/IFCS). É alumni da Escola de Inverno em Governança da Internet e Relações Exteriores da Universidade do Chile e do Programa Youth do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), tendo sido uma das 10 jovens selecionadas para representar o Brasil no Internet Governance Forum da ONU em Quioto (2023). Seus interesses de pesquisa incluem Governança da Internet, Conectividade Significativa, Comunicação Política, Desinformação, Big Techs e Regulação de Plataformas.

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